Somir Surtado: Memória fotográfica.

O texto de hoje não vai ser ilustrado.

No meu campo de trabalho, é uma situação mais do que comum procurar por fotos na internet. Fotos para ilustrar ou para servir de estudo para o design de uma peça publicitária. Se o orçamento está apertado para comprar fotos profissionais, dá-lhe fuçar por todos os cantos da rede até achar alguma grátis que sirva para o propósito desejado.

Essas pesquisas são chatas, demoradas e cheias de becos sem saída. Muito por causa, acreditem se quiser, do EXCESSO de imagens disponíveis. Não importa a palavra que você digite, zilhões de fotos pulam na tela, a maioria não tendo a menor conexão com o assunto pesquisado. E sim, eu ligo o filtro para pornografia para não navegar por vinte mil fotos de sexo explícito encontradas após virtualmente qualquer palavra digitada.

Mesmo sem lidar com as táticas agressivas dos sites pornográficos, ainda restam milhares de outras fotos que também fodem, mas com a paciência. Garanto que é divertidíssimo ter que navegar por centenas de páginas de fotos pessoais inúteis de pessoas que eu não conheço e nem pretendo conhecer a cada vez que preciso de material ilustrativo. Hoje em dia TODO MUNDO tem uma ou mais câmeras digitais vomitando milhares de fotos diariamente na rede.

  • Foi para a balada? Tire umas quinhentas fotos desfocadas com seu celular e enfie todas no seu Orkut (há) para dizer que a “night bombou, uhuuu!”.
  • Participou de um churrasco? Nada pode ser mais importante do que ter cem fotos daquele seu amigo bêbado que se jogou na piscina!
  • Hora do almoço? Está na hora de ter dezenas de evidências fotográficas que seu colega fica engraçado quando come espaguete! Não se esqueça de gravar um vídeo e colocar no youtube, hein?
  • Está de bobeira em casa? Por que não explorar todos os ângulos possíveis e imagináveis do seu rosto em frente ao espelho? Lembre-se de salvar todas as fotos para mostrar as melhores depois para que as pessoas possam morrer de Enveja!

“Sua pesquisa por Revolução Russa encontrou 139.032.982 de resultados fotográficos, sendo que 99% deles não tem porra nenhuma a ver com o que você precisa. Deseja refinar a pesquisa? Foi mal, não vai adiantar.”

Quando se mistura tecnologia barata para fotografia digital, espaço praticamente ilimitado e conexão com a internet em quase qualquer lugar, o resultado não poderia ser outro.

Alguém pode me explicar qual a importância de ter registradas as imagens de praticamente todos os momentos da sua vida? Alguém realmente olha para sua coleção de 15.000 fotos pessoais tiradas no último ano e diz: “Poxa, está na hora de relembrar grandes momentos da minha vida.”?

Claro, pode-se argumentar que eu estou sendo chato e que cada um faz o que quiser da vida, inclusive documentá-la de forma doentia até o ponto onde as memórias não valem mais merda nenhuma.

E claro, a última frase foi tendenciosa. Queriam o quê num texto meu?

De qualquer forma, eu que sou um grande fã dos avanços tecnológicos e um ferrenho defensor de que as novas gerações são sim evoluções da espécie, acabei ficando para trás e não entendendo mais nada dessa mania de fotografar e filmar qualquer porcaria que acontece em sua vida.

Sinto-me completamente perdido quando alguém tenta me mostrar as dezenas de fotos que tirou seja lá de que evento de sua vida numa pequena tela de celular ou num perfil de Orkut. Eu deveria achar interessante? Outras pessoas realmente se importam com essas coisas e eu que sou a aberração?

Se você não é uma bela mulher ou tirou a foto de uma bela mulher, sinto informar que a chance de eu me interessar por uma foto sem história é nula. A pessoa lá, orgulhosa e empolgada com os registros visuais de um momento banal de sua vida, e eu sem saber o que dizer… “Bacana?”

Por mais que eu entenda que a intenção da pessoa passa longe de ser ruim, é um caso em que uma palavra vale por mil imagens. Quando uma pessoa quer dividir um momento ou uma memória, imagens tem um limite de comunicação definido. Não importa quantas fotos você tenha, nenhuma substitui uma boa história. Nenhuma foto substitui uma memória bem cuidada.

Não estou advogando que só os grandes momentos de sua vida são dignos de menção, muitas das conversas e “causos” (caipira!) mais divertidos e interessantes que já ouvi ou participei resultaram de momentos absolutamente banais da vida. Uma boa história não precisa de ilustração.

Mas aí que começa o verdadeiro problema com esse excesso de fotos e vídeos nas memórias de hoje em dia: Não é mais sobre a história, não é mais sobre dividir uma memória, não é mais sobre comunicação…

É sobre fingir que se importa com outra pessoa esperando retribuição. Narcisismo e ostentação. Eu não consigo conceber como uma pessoa pode ficar genuinamente interessada numa foto de outra pessoa numa balada, por exemplo. Não faz sentido… A não ser que essa pessoa espere ser vista também. Mostra o seu que eu mostro o meu.

É mais uma das famosas trocas de atenção tão freqüentes no dia-a-dia. Maria Ruela visita o Orkut de Zé Ruela e diz que suas fotos do churrasco do final de semana passado estavam “super legais”. Zé Ruela, em troca, vai até o álbum de Maria Ruela e diz que deve ter sido “demais” a balada onde ela e suas amigas estavam no mesmo dia.

Todos se sentem valorizados, percebidos. Mas aposto que nenhum deles realmente se importou ou achou algo demais nas fotos. (Considerem Maria e Zé Ruela como pessoas feias, para evitar a idéia de atração sexual. Outros quinhentos.)

Um massageia o ego do outro, ninguém se comunica de verdade. É bem mais fácil ficar nesse joguinho do que esperar uma das raras oportunidades onde uma pessoa com dificuldades de se expressar vai conseguir cativar outras pessoas com os acontecimentos sua vida. É o caminho mais curto.

Tenha milhares de fotos, tenha milhares de oportunidades de se comunicar mal e porcamente com outra pessoa e receber a recompensa da aceitação do jeito mais rápido possível. Poste todas essas fotos na internet, diga que é para se lembrar melhor das coisas. Todo mundo finge que acredita para poder usar a mesma desculpa depois. Estamos vivendo num mundo de gratificação instantânea, adapte-se ou fique excluído.

Eu sou um excluído. Se eu tiver mais do que cinco fotos minhas salvas no meu computador, é muito. Eu não tenho câmera digital, eu não tenho o menor interesse em ter uma. Quando eu quero me lembrar de uma pessoa querida, eu lembro. Quando eu quero me lembrar de uma cena, eu lembro. E a não ser que você tenha algum problema sério de memória, deve ter a mesma capacidade. O que eu vejo de diferente é que quando eu quero dividir algum momento da minha vida, eu tomo meu tempo e tento contar a história da melhor forma que posso. E mais importante: Eu não tenho o menor interesse em dividir essas memórias com pessoas que eu não conheço ou me importo.

Tenho plena consciência que eu sou um exagerado, mas não faço isso como forma de protesto ou algo do gênero, eu gosto mesmo da minha memória. (Até porque a única que presta aqui é a visual de longa duração. Não tenho mais nem certeza se ainda estou falando do mesmo assunto do começo do texto…)

O irônico é que as pessoas que estão criando catálogos visuais completos de sua vida estão “terceirizando” para um cartão de memória ou um site uma das coisas mais simples de se guardar na própria cabeça e jogando fora a parte mais importante de uma boa lembrança: O significado.

Lembrem-se disso: Quando todo mundo é especial, ninguém é especial.

Quando todos os momentos de sua vida merecem o mesmo destaque, quando todos os seus conhecidos tem evidências fotográficas das mesmas coisas que você, quando toda a sua memória for um amontoado de imagens usadas indiscriminadamente para chamar a atenção de gente que nem mesmo te faz diferença, você se torna uma foto sem dono. Uma imagem que depende de pessoas que não a conhecem para ter algum significado extra. Um arquivo que pode ser manipulado à vontade.

Que significados você pode dar para as imagens que fazem sua vida? Se você não souber, alguém vai fazer isso por você. E já posso adiantar que isso não tende a terminar bem.

A minha crítica à futilidade (sobretudo a virtual) passa pela noção de que o “esvaziamento” da cabeça das pessoas vai tornando as relações interpessoais cada vez mais entediantes e inúteis. Milhares de amigos virtuais, milhares de fotos para exibir e nada a esconder pela simples falta de ter qualquer coisa para mostrar. É quantidade por falta de qualidade.

Não estou acusando todo mundo que tira muitas fotos de ser fútil, caso você tenha dificuldades de seguir idéias num texto. Estou dizendo sim que essa loucura de registrar tudo de forma gráfica e se limitar ao fator temporal dessas imagens é uma forma se subutilizar o seu cérebro. E em troca do quê? Tapinhas nas costas que não dependem de merecimento?

Não torne sua vida um fotolog desesperado por comentários.

Milhares de fotos podem até te fazer ser mais visto… Mas vão te fazer ser ouvido?

(Tomara que cole, pelo bem das minhas pesquisas de imagens futuras…)

Para dizer que o texto de hoje foi um samba do crioulo-doido, para dizer que por incrível que pareça entendeu do que diabos eu estava falando ou mesmo para me mandar uma foto da sua bunda que ficou “super bacana”: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Publicitário???????? Afff. Quanto te chamavam de nerd, achei que era pelo menos programador, mas esperava uma engenharia. Se bem que agora tá explicado o teu estilo de argumentação.
    Enfim, pode ficar um pouco mais calminho, porque o Google criou um jogo em que você e um amigo participam e, para cada imagem que aparece pra vocês, vocês tem que taggear com a palavra mais óbvia da imagem. Para tags iguais, vocês ganham pontos e para tags diferentes, vocês perdem. Isso é catalogar imagens, o que nem sempre é difícil, mas é demorado. E o Google tá fazendo isso sem gastar dinheiro, sem usar seus funcionários e só com pessoas voluntárias. Eles são geniais nos
    negócios do novo milênio.

  • Eu acho que o Somir apresentou um extremo. Sou do meio termo.

    Acho interessante postar fotos online mesmo que seja da balada, ou do churrasco como citado.

    Por que? Bem…Vc tem diante de si uam foto sua com outras pessoas; quem é a primeira pessoa que vc repara na foto?! Vc mesmo, claro.

    Agora imagine que alguamas pessoas não coloquem somente fotos da sua cara mudando levemente de angulo a cada 5 clicks, e coloque fotos em que esta com outras pessoas num album qualquer.

    Não vai interessar pra 100% das pessoas que vão olhar aquilo. Mas é uma ótima maneira de compartilhar estas fotos e o momento com quem estava presente. Que sempre vai gostar de ver uma foto em que aparece.

    Eu poderia então no caso só mandar uma mail ou gravar um cd e mandar somente as fotos em que aparece cada pessoa. Alem de trabalhoso, ainda excluo totalmente essa possibilidade de falsidade mútua, que apesar dos pesares, é necessaria. Ego tambem precisa ser alimentado de vez em quando.

    Bem, já 'passei do limite de 4 paragrafos', mas foi pra tentar ilustrar que existe coisa boa fora dos pensamentos extremistas.

    Até

  • João, eu tive uma certa dificuldade de fazer a conexão entre o que diabos você falou e as palavras que eu escrevi. Um de nós não deve ter prestado atenção no texto.

    A tecnologia e as fotos são alegorias para a idéia central de que estamos essencialmente repetindo padrões de bloqueio de comunicação em prol de gratificação instantânea do ego, necessidade de ostentação.

    Comportamento retrógrado apoiado por tecnologia avançada.

    Não há menções saudosistas ou reclamações sobre a tecnologia que permite esse comportamento. As pessoas viviam se agarrando a imagens vazias e troca de atenção por nada desde… sempre. Não era melhor antes, mas deveria ser melhor agora! A minha esperança de evolução que me faz exigir mais do futuro.

    Vou considerar que você não leu a "Era dos Chatos". Se quiser, clique na tag "Somir Surtado" no final do texto e leia as duas partes.

  • João, existe um meio termo entre apenas se comunicar por cartas e excesso de fotos degradantemente íntimas expostas na internet para qualquer pessoa do mundo ver… ou não?

    Eu não jogo minhas fotos ao público. Não preciso de elogios nem de aprovação.

  • João sem Braço

    "palamor de Dio" (fazendo minha as palavras da minha avó)!

    Velho, abre a tua mente. O mundo, a comunicação, os relacionamentos interpessoais, tudo e todos mudam, evoluem. É incrível como você admite ser retrógrado e ainda assim não desenvolve sua percepção.

    Parece-me que você quer que as pessoas se comuniquem com o romantismo das cartas e que uma foto de família seja tirada em Branco e Preto a cada nascimento de uma nova geração para que estas tenham valor sentimental.

    Você é um publicitário. Não um padre que está perdendo seus fiéis para os modismos.

  • Aí, não é TODO momento que é especial, não vou tirar fotos quando tô fazendo cocô, mas das festas, das viagens, vou sim!
    Fuck-se novamente, Somir

  • Até um nerd com cara de ET do Panamá tira fotos, porque as pessoas não deveriam tirar? Só na Somirlândia que tirar fotos é brega, quem curte a vida social, gosta de ter mil fotos de um momento gostoso.
    Fuck U, Somir!

  • Acho importante documentar momentos felizes, porque só a memória não basta. É bom para, no futuro, mostrar para os netos e dizer "Olha a vovó quando não era caída nem cheia de rugas!"

    Mas o excesso e a invasão de privacidade realmente são degradantes.

    E sim, eu acho infantilóide, adolescente e cafona fazer fotolog. Muita vergonha alheia por qualquer pessoa com mais de 14 anos que tenha um fotolog. Sem contar o risco de virar um fake de alguém no orkut… hahahaha (Sally? Kelly? Oi?)

  • Somir
    Também devo concordar com suas colocações. Haja paciência para tantas imagens inúteis na rede.
    Existem pessoas que dão a vida pela atenção dos paparazzi enquanto outras (celeb) querem a morte deles.

    Quando abro minha página do Orkut (e olha que só adiciono pessoas que conheço realmente hehe) vejo a atualização desesperada de alguns contatos, com 100, 150, 200 fotos registrando tudo: do parto cesariano (sangrento e traumatizante) de gêmeos até o funeral de algum parente, com a tampa do caixão aberto com o defunto verde.

    E o que falar dos zilhões de vídeos maníacos do Youtube? E que novamente postam em redes sociais como Orkut para aparecerem nas atualizações de amigos?

  • Nossa! Concordei com o Somir!

    Mulheres com mais de 20 posando como pseudo-adolescentes em fotologs com suas carinhas em diversos ângulos achando que aquilo é interessante! Não, não se você tiver cérebro!

    Coisa de gente insegura, que se vê pelos olhos dos outros e precisa da aprovação e elogio dos outros para sobreviver. Coisa de gente com uma vida miserável, medíocre, que quer chamar a atenção desesperadamente. Sinto muita vergonha alheia quando vejo gente que tem fotolog! Coisa brega, infantil!

    Tenho um palpite: as pessoas tiram tantas fotos porque estão perdidas na vida, para ver se assim acabam se encontrando, descobrindo quem são, nem que seja pelos olhos dos outros.

  • Paulo César Nascimento

    Somir:

    Esse é o preço que se paga por um espaço que não é hierarquizado ou censurado (ou quase). Entre humanos, dar atenção às banalidades da vida alheia tem o mesmo papel que tem, entre os macacos, catar os piolhos dos outros: sociabilidade e criação de vínculos. De resto, esse registro e divulgação de todos os momentos da vida tem o papel de convencer as pessoas de que elas não são insignificantes, o que pode não ser verdade do ponto de vista da espécie, mas é fundamental para a sanidade do indivíduo.

  • É com dor no coração que digo que concordo com o Somir.

    As pessoas não tiram mais fotos para guardar de recordação de algum momento legal da sua vida, tira foto pra por no orkut. Tiram foto de tudo, como que para ilustrar tudo que fizeram na semana passada e dizer "olha mãe!!".

    Já vi foto de gente toda estrupiada (essa palavra existe?) numa cama de hospital, cheia de curativo. Nojento!

    O povo perdeu a noção, é um jogo hipócrita. Vc finge que se importa com as minhas fotos que eu comento de volta nas suas, assim todo mundo se sente amado é feliz, contente e vê poneizinhos saltitantes…

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