Dia: 2 de abril de 2010

Tipo, não é alucinógeno, senhor elefante cor-de-rosa.

Após o assassinato do cartunista Glauco Villas Boas por um praticante (ou seria usuário?) do Santo Daime, recomeça uma discussão: deve ser permitido o uso de drogas para fins “religiosos” no Brasil? O Santo Daime é um perigo para a coletividade? O chá utilizado nos rituais é uma droga?

Pesquisei bastante para escrever este Desfavor Explica, tanto é que não deu tempo de publicá-lo logo após o crime, como de costume. Fiz questão de presenciar uma cerimônia do Santo Daime – porém adianto que não tomei o chá, porque abomino substâncias que alterem minha consciência.

O Santo Daime é uma “religião” (eles negam) tem aproximadamente 10.000 seguidores pelo Brasil e pelo mundo. O Brasil não é o único país a realizar os rituais, outros países como Espanha e Holanda, Estados Unidos, Japão, Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela e Portugal também seriam adeptos. Ele não gostam de ser chamados de “religião”. Mas me parece uma doutrina religiosa, uma vez que eles seguem rituais, possuem regras e restrições nos moldes das religiões em geral. Por exemplo, há restrições a algumas vestimentas para aqueles que participam dos rituais.

Esta “religião” (eles vão morrer negando que seja religião) surgiu na região amazônica, mãos precisamente no Acre (confessa que é a primeira vez que você tem notícia de algo que surgiu no Acre!) e a princípio prega princípios bacanas. A grande polêmica é um ritual que promovem, onde se bebe um chá conhecido como ayahuasca, feita à base de duas plantas encontradas na floresta amazônica. Este chá é “alucinógeno” (eles negam também), entretando, os praticantes do Daime preferem dizer que ele tem efeitos “enteógeno”, ou seja, provoca um “estado xamânico de êxtase” (wat), algo que leva a revelações e reflexões interiores que não seriam alucinações.

O Santo Daime prega a evolução pelo autoconhecimento, obtido através da experiência vivenciada com a ingestão desse chá. As “alucinações” (que eles insistem em dizer que não são alucinações) trariam uma evolução, fariam com que a pessoa se conheça melhor, lide melhor com seus problemas e perceba o mundo de uma forma diferente, uma espécie de “hiperlucidez”, ou seja, você vê além, amplia sua percepção, acessa níveis psiquicos subconscientes e tem outra percepção da realidade, mas sempre muito consciente do que acontece. Bom, se vocês acham que uma árvore ou uma pedra conversando com vocês é ampliar a percepção, eu acho alucinação. Questão de ponto de vista. Minto, questão de bom senso e sanidade mental.

O fundador do Santo Daime foi um lavrador chamado Raimundo Irineu Serra (vulgo Mestre Irineu). Bacana que é uma religião fundada por um popular, não é todo dia que se vê algo tão democrático. Começou assim: Raimundão tava passeando na mata (salvo engano era seringueirio) foi apresentado ao chazinho por nativos da região e ao tomá-lo teve uma visão de uma entidade divina (tipo um genérico da Virgem Maria) mandando-o fundar o Santo Daime e divulgá-lo. Já pensou se cada ser humano que ingere algo alucinógeno e tem uma visão fundar uma religião? Porque, na boa, quando você toma uma porra dessas, pode aparecer qualquer coisa na sua frente. O fato de ter uma alucinação não te faz especial, nem escolhido, nem enviado nem nada de mais, a menos que você seja carente e desconheça que é apenas uma reação bioquímica do seu cérebro.

Raimundão não era uma mente brilhante, mas ainda assim, fundou uma religião se achando “o escolhido” e atraiu muita gente. Se fosse nos dias de hoje, em uma grande cidade, perigava Raimundão estar internado em um hospício ao fazer esse discurso de aparição, escolhido e etc. Sério. Serinho. Olha o layout de Raimundão. Você seguiria Raimundão?

You gonna get...

Mas enfim, pedradas a parte, Raimundão se achou o escolhido depois desta aparição e convenceu um monte de gente (no Acre… grandes merda) que era.

Daí Raimundão começou a estabelecer todo um ritual em torno da bebida, para que ela ficasse socialmente aceita. Homens: quando vocês querem comer uma mulher, vocês gostam de ter que levar ela no cinema, para jantar, para passear, para conversar…? Não, né? Mas o fazem, para conseguir chegar nos finalmente. Pois é, é isso aí. Neguinho canta, dança, faz toda uma firula para no fim das contas se drog… ingerir o chá.

Passou o tempo, Raimundão faleceu. O Santo Daime cresceu. Surgiram várias correntes dentro desta religião. Hoje em dia, nem precisa praticar os rituais para ter acesso ao chá, você pode comprar pela internet que eles entregam na sua casa e você pode se poupar do circo e da cantoria. E não se preocupe, o Conselho Nacional Anti-Drogas, CONAD, retirou a ayahuasca da lista de drogas alucinógenas. Você pode tomar o chá e ver o Raul Seixas dançando axé pelado com uma rosa na boca, mas não é alucinógeno. Ahãn. Legalmente, o chá só é permitido para fins religiosos, não pode ser comercializado com fins lucrativos. Se for comprar, já sabe, né? Era para fins religiosos, você ia fazer todo o ritual.

Os rituais do Santo Daime podem ser divididos basicamente em três categorias: Concentração, Festejos (ou bailados) e feitio.

A Concentração costuma ser realizada nos dias 15 e/ou 30 de cada mês (essas datas espaçadas foderam com a data da postagem!), nos templos, igrejas ou sei lá qual é o nome que se dê ao local de reunião. Cantam-se hinos (eles tem mais de 80 hinos!), rezam-se Pai Nosso, Ave Maria e outros que agora não lembro e, claro, toma-se o chá. Fiz questão de perguntar, assim, como quem não quer nada, com cara de meiga boba-alegre, quantos seguidores iriam ali fazer aquela cantoria e reza-reza se não houvesse chá. Resultado? ZERO. Sabe aquele seu amigo que diz que bebe cerveja porque gosta do gosto e nao pela onda de ficar bêbado e depois de recusa a beber cerveja sem alcool? Neguinho gosta é dos efeitos da parada. Mas não assume nem a pau.

Os Festejos são festas comemorativas mesmo, com direito a dança e tudo. Curiosidade: eles comemoram natal, dia dos pais, dia das mães e outras datas populares nesses festejos.

O feitio é o ritual onde se produz o chá alucinógeno (lembrando sempre que eles negam que seja alucinógeno), misturando duas ervas, o banisteriopsis caapi e a psicotria viridis (cada uma delas tem trocentos nomes populares, um pior que o outro). Não ficou muito claro extamanete como proceder no preparo, o que posso dizer é que eles porram algumas folhas com um pedaço de pau enquanto outras são limpas e misturadas. Depois rola um cozimento em água fervendo. Daí tem uma segunda leva de folhas, com mais cozimento e tá pronto o chá. Os homens porram as ervas e as mulheres limpam umas folhas.

O tempo todo, a mesma pergunta me vinha à mente: será que estas pessoas fazem tudo isto por fé ou por causa do chá? Suprime o chá do ritual e vamos ver quantos voltam…

Vocês devem estar se perguntando como este ritual é permitido uma vez que envolve o uso de uma substância que altera a consciência. Esta permissão de uso de uma substância que altera a consciência tem por base a liberdade religiosa. Se eu fosse um pouco mais escrota do que já sou, só mais um pouquinho, fundava a Santa Igreja do Pó dos Últimos Dias, com direito a altar e escultura do Maradona segurando o Pilha desmaiado em seus braços, tal qual a Pietá de Michelangelo. O ritual da minha igreja seria cheirar cocaína para elevar a percepção interior e sabedoria e entrar em comunhão com o mundo do nosso Deus, Maradona. Liberdade religiosa deve se sobrepor ao bem estar da coletividade? Qualquer igreja pode fornecer substâncias que alterem o estado de consciência de seus seguidores a título de liberdade religiosa? Quem é que vai me assegurar o que é uma substância segura e o que não é?

Tudo bem, tenho obrigação moral de dizer que em todos os cultos em que frequentei tive uma ótima impressão dos participantes: pareciam pessoas calmas, do bem, em comunhão. Entretanto, isso não apaga o risco de se permitir uso não controlado de alucinógeno/enterógno por aí. Uma hora dá errado. No meio dos dez mil participantes do Santo Daime, não tem nenhum que acabe reagindo mal a esse chá? Será?

Algumas vezes faltava bom senso dos adeptos. Falaram muita bobagem com uma certeza digna de Somir. Uma coisa que me aborreceu profundamente e que eu escutei demais entrevistando praticantes do Daime: eles juram que o chá cura dependencia química de outras drogas. Duvidei. Mas, como sou leiga no assunto, perguntei não a um, mas a três psiquiatras o que eles achavam desta afirmação. Todos concordaram com aquilo que eu já pensava: cura porra nenhuma. Quando uma pessoa tem uma propensão so vício e acaba por se viciar em alguma substância que altera seu estado de consciência, ela pode simplesmente usar o Daime para suprir este desejo por uma alteraçao de consciencia, ou seja, “substituir” uma “droga” por outra. É a mesma coisa que dizer que conseguiu curar seu vício em cafeína trocando o café por chá verde. Dããã. A ayahuasca não costuma causar dependência física, entretanto, quem tem essa necessidade de se entorpecer pode desenvolver uma dependência psicológica. Tem pessoas que precisam se desconectar da realidade, pelos mais diversos motivos. E é aí que mora o perigo, porque tem uma diferença grande em querer eventualmente se desconectar e PRECISAR se desconectar com uma frequencia razoável.

Quero deixar uma coisa clara: nada contra quem se tranca em um templo qualquer e se dopa até o cu bater palminha, fica conversando com a própria mão até o efeito passar e vai para casa trabalhar. Eu, pessoalmente acho ridículo, acho uma muleta se entorpecer, seja com Daime, com maconha ou com alcool. – mas acho que eles também me achariam ridícula se me vissem dançando axé. Cada um no seu quadrado. Meu problema todo é com pessoas que fazem uso da ayahuasca e depois vão para a rua dirigir, trabalhar, interagir com a sociedade. Meu problema é também com aquelas que fazem uso e não voltam mais, tem surtos psicóticos ou qualquer outro problema que as torne um risco social. Meu problema é com a propaganda do Daime como se fosse a cura para todos os males, o caminho da verdade e da libertação – pior, o ÚNICO caminho, porque essa merda não é tão inofensiva assim e definitivamente não é para todos.

Os globais são sempre um desfavor, nos mais diversos sentidos. Claro que tem uma meia dúzia de globais falando maravilhas do Santo Daime. Maitê Proença, por exemplo, que é a maior estelionatária intelectual que eu já vi, teria dito que, para ela, o tal chazinho alucinógeno faz mais efeito do que anos de terapia. Acho que ela não tem muita consciência da realidade social do país para o qual ela disse esta frase, porque bem ou mal, ela pode ser formadora de opinião. Você faria terapia depois de ouvir uma coisa dessas de um ídolo seu se não fosse uma pessoa esclarecida? Você não correria para tentar solucionar seus conflitos interiores com o tal chá, quase mágico?

Ela afirmou isso de forma pública, em entrevistas. Sem noção? Oi? Talvez se meu pai tivesse assassinado minha mãe na minha frente eu também me afundasse em um chá que faz a maçaneta conversar comigo, mas teria vergonha de fazer propaganda em um país onde a população é ignorante e imita os ídolos feito macacos de auditório. É tentador, não é mesmo? Um chá em vez de anos de terapia! Mais fácil, mais barato e menos trabalhoso. Uma pena que existam formadores de opinião estimulando o uso deste chá como forma de superar problemas na vida, que com certeza não é para todos.

O então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, um desfavor ambulante, encaminhou processo sugerindo que este chá seja declarado patrimônio imaterial da cultura brasileira. Como a gente passa vergonha neste páis, puta merda! O que esperar deste ser humano, que entre outras coisas, fez questão de declarar que fumou maconha a vida toda e virou Ministro, sendo um sucesso na vida. Isso é coisa que se diga para a massa?

Repito: o chá não é tão inofensivo assim. O uso desta bebida pode desencadear quadros psicóticos em pessoas que já tinham uma propensão a estas doenças – e como saber se temos ou não? Muitos que usaram não voltaram, ficaram no lindo mundo da imaginação, onde objetos inanimados falam e dançam. Já pensou que merda? É como viver no desenho A Bela e a Fera para sempre. Um pau no cu acordar todo dia e a xícara te dar bom dia! Sem contar que o chá pode se combinar de forma perigosa com alguns remédios que a pessoa esteja tomando. Isso é especialmente perigoso em um mundo como o de hoje, onde ninguén segura mais o rojão de qualquer sofrimento e por qualquer merdinha de mal estar interior toma fluoxetina. Até mesmo uma combinação com anti-histamínicos pode ser perigosa.

No caso do assassinato do cartunista Galuco, que fundou um Centro onde se praticavam os rituais do Santo Daime, pelo que foi divulgado até agora, tudo indica que o infeliz que o assassinou teve um surto psicótico atribuído ao uso da ayahuasca. Se foi isso mesmo, não quero ouvir um pio sobre fatalidade. Fatalidade? Não, não. Risco do negócio. É sabido que tem uns que vão e não voltam. Você quer estar em um lugar onde pode acontecer de um ir e não voltar? Você quer estar em um lugar com um psicótico em surto? Eu é que não me coloco nessa situação, eu me gosto muito para isso!

Quem me garante que as pessoas não usarão este chá e sairão dirigindo pelas ruas? “Mas Sally, as pessoas bebem e dirigem!”. E eu acho uma bosta que bebam e dirijam, mas ao menos no caso do alcool, temos o bafômetro ou etilômetro para tentar controlar. Vão inventar um “Daimômetro” para impedir que médicos operem, motoristas dirijam e professores lecionem sob efeitos do chá?

Mais do que o chá, o problema é COMO as pessoas fazem uso dele. Porque usar algo para se entorpecer é uma coisa, para tentar ter uma experiência pessoal é outra. Quem vai controlar? Porque só se pode ter essa experiência pessoal com o chá e não com outras substâncias que provocam alterações na consciência?

Não gosto. Não tenho a pretensão de convencer ninguém, mas acho que é um assunto que merece ser discutido. Eu tenho birra com qualquer substância que altere o estado de consciência. Eu me gosto muito do jeitinho que eu sou e estou hoje, obrigada. Não vai ser uma planta, uma árvore ou uma maçaneta que vão me trazer “revelações profundas” sobre mim mesma. O caminho fácil não costuma ser o melhor e malandro que pega atalho geralmente se fode.

Para perguntar qual é a coerência em permitir o Daime e não permitir a maconha, para dizer que você já bebeu o chá, viu um elefante rosa dançando macarena mas que o chá não é alucinógeno e para dizer que faz mais sentido seguir um popular do Acre do que um filho de mãe virgem que morre e volta depois de três dias: sally@desfavor.com