Dia: 26 de janeiro de 2011

O assunto está na moda, graças à participação de um transexual naquele programa do qual nos recusamos a falar ou sequer citar o nome. Mas a gente não vai falar porque está na moda, muito menos por causa do programa. A gente vai falar porque o assunto é interessante. Já havíamos abordado o tema transexuais em um Flertando com o Desastre em 03 de março de 2010 e voltamos agora para um enfoque mais técnico.

O transexual não se confunde com o homossexual. O homossexual sente atração sexual por pessoas do mesmo sexo. O transexual sente uma sensação de inadequação com o próprio corpo, desconforto psicológico. É classificado como “doença” segundo a CID-10 (10ª Revisão da Classificação Internacional das Doenças), que corresponde ao item F64.0 e se define como: “um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para seu corpo tão congruente quanto possível com o seu sexo preferido.”

A angústia e infelicidade é tanta que muitos chegam mesmo a amputar seus pênis de forma caseira tamanho o sofrimento. Não se trata de mero capricho ou vaidade, é um sofrimento incalculável e real, a ponto da pessoa se sujeitar a uma cirurgia difícil, dolorosa e cheia de riscos. Estar preso a um corpo que não reflete sua identidade sexual é cruel. E não se trata de um erro de criação, de um desvio de caráter ou de uma fase.

Há relatos impressionantes, como um caso catalogado de um menino que já aos três anos de idade segurava o próprio pênis e chorava dizendo que aquilo não era dele, que ele não queria aquilo no seu corpo e que tinham mandado colocar aquilo nele quando ele estava dormindo. Possuir aquele pênis era um sofrimento absurdo para aquela criança. São almas de um sexo presas a um corpo de outro sexo. Não posso imaginar tortura maior do que viver assim.

E foi justamente para tentar acabar com essa agonia que se desenvolveu a cirurgia de redesignação de sexo, para tentar adequar a mente da pessoa a seu corpo. O que começou como um procedimento digno de um açougue, tosco e esteticamente insatisfatório, hoje evoluiu quase à perfeição. Muito se fala sobre cirurgia de mudança de sexo mas na prática pouco se sabe sobre o procedimento e suas implicações. Não é apenas cortar fora um pênis. Tem conseqüências para o resto da vida e demanda uma série de obrigações paralelas.

No Brasil, para realizar este tipo de cirurgia, é preciso que o paciente tenha mais de 21 anos e que tenha passado por um longo acompanhamento psicológico/médico (pelo menos dois anos). O nome técnico é Cirurgia de Redesignação Sexual mas é mais conhecida como cirurgia “de mudança de sexo”.

A cirurgia mais comum é aquela realizada em pacientes que nasceram biologicamente do sexo masculino e querem passar para o sexo feminino. É realizada com toma anestesia geral e sua duração pode ser relativamente longa (uma média de seis horas).

O médico começa fazendo um corte em forma circular que contorna a base do pênis e a parte onde os testículos se ligam ao corpo, para descolá-los do tronco. Primeiro o médico remove os testículos, o que é de grande ajuda, pois além da parte estética, nele são produzidos hormônios masculinos, que não serão mais bem vindos naquela quantidade. Não apenas porque masculinizam, mas também por causarem calvície, o que em uma mulher é um problema e tanto. Não quer ficar careca? Corte as bolinhas fora. Ficaadica.

Depois remove-se boa parte do chamado tecido cavernoso, que é a responsável pela ereção quando se enche de sangue. Sobram então a glande (vulgo cabecinha) e o nervo que liga a glande ao resto do corpo. Literalmente, o pênis fica por um fio. Daí eles pegam a pele que antes revestia o pênis e a usam para revestir o canal vaginal, de modo que a região tenha sensibilidade. Esta é uma parte especialmente difícil, pois muitos transexuais passam longos períodos de suas vidas prendendo seu pênis com adesivos (o lendário Emplastro Sabiá) para trás, de modo a que não fiquem visíveis, o que pode danificar a pele ou algumas terminações nervosas. Muitas vezes, dependendo do dano, nem mesmo é possível realizar a cirurgia ou então esta dependerá de enxerto, o que complica as coisas. Se o pênis for pequeno, também será necessário enxerto de pele. Se o bilau for pequenininho também gera dificuldades.

O próximo passo é manipular a glande, que é “empurrada para dentro”, criando uma espécie de clitóris um pouco maior que o normal. Como o nervo não foi cortado, se a glande for estimulada é possível atingir um orgasmo. Com o que resta de pele (prepúcio, saco e cia) modela-se um lábio vaginal. Eu não sabia que fazia tanta diferença, mas se a pessoa for circuncidada ou tiver feito cirurgia de fimose, pode haver uma escassez de pele que dificulta a cirurgia. Quem diria que dois dedinhos de pele poderiam fazer tanta falta!

Parece sofrido. E é. Mas isto, que parece o auge, é apenas o começo. É uma mutilação, portanto, o pós operatório é muito dolorido. Sangramentos, infecções, medicação pesada e muita paciência permeiam os dias que se seguem.

Mesmo a longo prazo cuidados são necessários. Considerando que foi aberto um buraco “não natural” (e por “natural” eu quero dizer que é algo que não veio de fábrica), a tendência é que o corpo esteja para sempre em uma luta constante para tentar cicatrizar este buraco, encarado pelo organismo como uma agressão. Para evitar que este buraco feche, existem duas opções: fazer sexo todo santo dia (pelo menos vinte minutos por dia) ou então usar uma espécie de “alargador” para manter o buraco aberto. Sim, da mesma forma que muitas pessoas usam aparelhos nos dentes para dormir com a intenção de evitar que eles saiam do lugar, as pessoas que fazem esta cirurgia tem que usar o alargador para evitar que seu buraco vaginal feche.

Inicialmente se começa com um molde menorzinho, e depois, à medida que a nova vagina for “cedendo”, se aumenta o tamanho do molde. O procedimento padrão é usar o molde por aproximadamente uma hora por dia, várias vezes ao dia. Eu conheço vocês. Depois de anos, eu conheço vocês. Eu sei que vocês querem fotos. Aqui está uma foto de um molde vaginal utilizado para manter o buraco aberto e fotos de uma vaginoplastia bem sucedida. Sinceridade, quantos de vocês diriam que foi feita em uma mesa de cirurgia?

Depois desta cirurgia, também chamada de vaginoplastia, pode ser realizada outra, chamada labioplastia, para dar um aspecto ainda mais real à parte externa da genitália. Alguns cirurgiões mais cuidadosos ainda colocam uma pequena prótese de silicone ou material similar para simular o acúmulo de gordura que existe em algumas partes vagina (vulgo capô de fusca).

Um resultado final bem sucedido criará uma vagina com profundidade que pode variar entre dez e quinze centímetros, o que não difere muito da profundidade de quem veio com uma vagina de fábrica. Dá para fazer sexo numa boa em todas as posições, a menos que seu parceiro seja um tripé. Porque tem esse problema: a vagina artificial não é tão elástica quanto a vagina de fábrica, não dá para forçar muito não. A vagina de fábrica foi pensada pela mãe natureza para esticar ao ponto de passar a cabeça de um bebê se necessário, já a vagina cirúrgica tem mais limitações. Portanto, é possível que ocorra a impossibilidade de fazer sexo com homens muito bem dotados.

O pós operatório requer muita atenção. Muita coisa pode dar errado. Desde infecções simples até total perda de sensibilidade na área. Eventualmente pode ser necessária até mesmo uma colostomia. Poucos médicos são realmente capacitados para realizar esta cirurgia, mas muitos se dizem aptos. É preciso cuidado. Muitos pacientes também sentem vergonha de procurar ajuda em caso de complicações cirúrgicas. Não é fácil chegar no pronto socorro e pedir esse tipo de ajuda. Isso pode causar danos irreparáveis e até mesmo a perda da vagina, sendo necessária nova cirurgia.

Este procedimento, que era considerado o ponto final em outras épocas, hoje é só o básico do básico, o ponto de partida. Quem quer sair 100% tunado tem opções adicionais, como por exemplo fazer uma cirurgia nas cordas vocais para ficar com voz feminina. Já vi uma pessoa com as cordas vocais operadas e lhes digo uma coisa: a voz é perfeita. Uma voz feminina sem qualquer sinal de ter sido masculina um dia. Apesar de que hoje em dia, nem precisa, porque quase todas as mulheres saradas falam com voz de traveco de tanto que tomam bomba, virou normal, os homens não estranham mais.

Podem ainda fazer uma cirurgia de retirada de pomo de adão. Sim, Amigo Cueca, se vocês achavam que seu porto-seguro para identificar um ex-homem era o pomo de adão, se fode ai porque além de retirar, a cicatriz é imperceptível. E a pessoa pode alterar toda sua documentação, inclusive a certidão de nascimento, aniquilando qualquer registro de que nasceu homem. Passa a ser mulher e se tudo correr bem, não tem quem diga que um dia já foi homem. Só fazendo exames de imagem como uma ultrassonografia.

Para arrematar, é feito um tratamento hormonal com intenção de feminilizar ainda mais a paciente. Eventualmente é preciso ministrar também um pouquinho de testosterona, para quem não sabe, grande responsável pela libido feminina. Como cortaram fora os testículos, sua produção pode cair drasticamente a ponto de comprometer a vida sexual da pessoa. Por fim, tratamentos estéticos dão o toque final para que ninguém diga que aquela pessoa foi homem um dia, como por exemplo a depilação definitiva da barba com laser.

Cerca de dois meses após a cirurgia, a área já está razoavelmente recuperada e já é possível sentir sensações prazerosas. Muitos médicos inclusive recomendam que as pacientes se masturbem com freqüência não apenas para aprender o funcionamento do novo corpo como também para estimular a regeneração neural e recuperar a sensibilidade.

FAQB – Perguntas Frequentes e Bizarras dos leitores

“Mas Sally, sem querer ser preconceituoso, a situação é desesperadora! Não tem mais como identificar um transexual de uma mulher! Eu não quero fazer sexo com um transexual!”. Primeiro, um esporrinho para você: se você ama alguém, não deveria se preocupar com isso, amam-se pessoas e não um gênero. E se você sai fazendo sexo com pessoas que mal conhece, bem, é um risco que você corre, se fode ai que eu vou é achar graça se você levar gato pro lebre. Faz tanta diferença assim o passado da pessoa? Mas Desfavor quebra seu galho e te ensina o pulo do gato: a única coisa que ainda não conseguiram fazer foi a lubrificação natural da mulher. Transexuais podem até ter alguma lubrificação, mas geralmente ela não é suficiente e eles tem que recorrer a lubrificantes artificiais. Fique de olho nisso.

“Sally, um transexual mija sentado?”. SentadA. Porque sim, passa a ser considerada legalmente do sexo feminino, goste você ou não. Sim, elas mijam sentadas, apesar de que é um processo de difícil adaptação, no começo há problemas técnicos que só são ultrapassados após muita prática. Os relatos são muito engraçados.

“Sally, para onde vai o esperma?”. Para lugar nenhum, porque o buraco não tem conexão com nenhuma parte interna. É uma rua sem saída. Justamente por isso a higiene depende de um procedimento especial, pois é preciso alcançar o final desta rua sem saída e limpar todos os resíduos que por ventura venham a se depositar ali.

“Faz diferença na sensação que o homem experimenta ao comparar sexo com uma mulher e sexo com uma transexual?”. Sim, e esta resposta vem com base no relato de um homem que teve ambas as experiências. Transexuais são mais “apertadas”, portanto, podem até ser consideradas melhores.

“O que é melhor para um transexual, um orgasmo como homem ou como mulher”. Relatam ser como mulher porque dizem que sem a ejaculação a brincadeira não acaba e pode durar mais tempo.

Pasmem. Já vem sendo feita cirurgia de mudança de sexo em mulheres que querem ser homens. É um procedimento novo, menos comum e mais difícil, mas já está disponível. Consiste no seguinte: a paciente começa a tomar doses massivas de testosterona, o que acaba gerando o crescimento de seu clitóris. Quando ele cresce razoavelmente (em torno de 5 ou 6 cm) ele é descolado do púbis e ganha autonomia de movimento. Nesta cirurgia, pegam um pedaço do tecido da antiga vagina e fazem uma gambiarra aumentando o tamanho da uretra para que a paciente possa mijar de pé.

Com a pele retirada dos grandes lábios são feitas bolsas escrotais que serão recheadas com duas bolinhas de silicone meramente decorativas. O grande problema é o tamanho final do pênis, porque por mais que você force a barra, dificilmente se consegue um tamanho razoável. É mais pela questão estética do que pela funcionalidade. Não entendo porque ainda não fizeram implante de pênis. Se fazem até implante de face, acredito que em breve isto seja possível. Ou então fazer um aumento peniano, como fazem nos homens mal dotados. Fica a sugestão de uma completa leiga.

A transexual mais famosa do Brasil é Roberta Close. Pioneira, fez a cirurgia de redesignação sexual em 1989, na Inglaterra. Para quem estiver curioso, já posou nua. Google it!

Sim, é uma cirurgia invasiva. Sim, é uma mutilação. Mas é a única forma destas pessoas levarem uma vida feliz e não é opção delas ser assim. Assim como aceitamos com tranqüilidade que uma mulher coloque silicone nos seios ou que faça uma lipo, a tendência é que, com o tempo, aceitemos com naturalidade a cirurgia de redesignação sexual.

Nada como se colocar no lugar do outro antes de falar. Você, Homem, imagine se acordasse no corpo de uma mulher e não tivesse pênis. Não faria de tudo para tentar obter um? E você, mulher, imagine se amanhã acordasse em um corpo peludo, barbado e com um pênis enorme, se sentiria feliz? Não faria o que estivesse ao seu alcance para que seu corpo corresponda à sua alma?

Olha, se houvesse outra forma, eu até seria contra uma cirurgia tão invasiva e mutiladora (vide meus argumentos no texto de segunda-feira), mas acreditem, não há. Ninguém deixa de ser o que é. Não me parece ser uma “doença”, tal qual é catalogada. É apenas uma pisada de bola da mãe natureza que colocou o conteúdo no recipiente errado. Quando a mãe natureza pisou na bola comigo e me programou para morrer aos 25 anos, eu fiquei muito feliz por um médico ter realizado um procedimento cirúrgico mutilador e invasivo que me salvou. Seria hipócrita negar este direito a outras pessoas, quando este é o único caminho para uma vida plena.

Para dizer que acha a redução de estômago da segunda-feira mais aceitável do que esta cirurgia, para dizer que está mesmo na hora do Somir voltar ou ainda para dizer que vai passar a pedir uma ultrassonografia das mulheres antes de ficar com elas: sally@desfavor.com