ATENÇÃO: Este texto não foi testado para consumo humano.
Estou envergonhado. Mais de dois anos de blog e só agora me surge a idéia de escrever um texto sobre o método científico. Deveria ter sido um dos primeiros temas desta coluna, dada a relevância dele na maioria absoluta dos outros temas tratados.
O método científico não é só um jargão de nerds em laboratórios, é a melhor forma encontrada pelos seres humanos para entender o universo ao seu redor. Percebam que eu disse a melhor forma, não a forma perfeita…
Vou fazer o texto em duas partes.
Parte 1: PADRÕES E LIMÕES.
PADRÕES
Uma das maiores, senão a maior fundação da racionalidade humana é a capacidade de reconhecer padrões. Padrões, neste contexto, sendo as relações entre causas e consequências com as quais temos contato. Sim, outros animais também são capazes disso, mas sem a menor comparação no quesito complexidade, e principalmente no quesito velocidade.
Enquanto outros predadores precisaram de gerações e gerações para entender que caçar a favor do vento é uma péssima idéia, seu tata()…()ravô, Ugabuga, foi capaz de sacar isso durante sua vida. Enquanto o felino gigante teve que fazer a lenta e confusa conexão entre sentir vento no focinho e sucesso na caça, o humano teve como perceber que: 1) Cada animal tem um cheiro; 2) Outros animais podem sentir o cheiro dele; 3) O vento carrega o cheiro na direção que sopra; 4) Estar contra o vento fazia as presas não sentirem seu cheiro; 5) Era mais fácil caçar assim.
Lógica não é exclusividade da sociedade moderna. Ei, não é nem exclusividade da civilização. Isso está presente de tal forma na nossa forma de enxergar o mundo que por mais que você queira se dizer guiado por energias mágicas e emoções, está usando-a a cada minuto da sua vida.
E escrevo isso porque parece difícil de acreditar que gente que acredita em seres mágicos ou que assista BBB tem capacidade de pensamento lógico. A verdade é que elas são tão lógicas quanto intelectuais de internet como eu (e vocês). O problema é que nem sempre a lógica do reconhecimento de padrões nos leva a conclusões razoáveis. Escrevi um texto inteiro sobre falsos positivos, mas trago aqui a idéia central: Não é só porque você enxerga uma conexão entre dois acontecimentos que eles estão conectados. Pode se mentir dizendo apenas a verdade.
Querem um exemplo? (Como se vocês tivessem escolha…)
A DESCURA DO ESCORBUTO
Em 1911, dois navios disputavam uma corrida para chegar, pela primeira vez na história, ao Pólo Sul. O vencedor foi o capitaneado pelo norueguês Roald Amundsen. O seu concorrente, liderado pelo inglês Robert Falcon Scott, demorou um mês a mais para conseguir o mesmo. E uma das principais causas desse atraso foi a alta incidência de escorbuto entre os marujos. Escorbuto é uma doença causada por deficiência severa de vitamina C no corpo, mortal e típica de longas viagens marítimas há alguns séculos.
Não estou apenas aumentando a sua cultura geral, estou preparando o terreno para o mais absurdo: Um navio da marinha britânica quase perdeu todos os seus tripulantes para uma doença que a própria marinha britânica havia ajudado a praticamente erradicar. Foram os marinheiros ingleses, guiados por James Lind, médico escocês, que perceberam que havia uma conexão entre o suco de limão e a prevenção da doença. Em 1747.
E como foi que em 1911 aconteceu algo assim? Ciência sem método científico. O tempo passou desde a descoberta das propriedades do suco de limão, mas ainda não se sabia direito o porquê dessa conexão. Os barcos ganharam motores, as viagens encurtaram, mais gente se lançou ao mar. Na prática isso significou que na maioria dos casos não fazia nem diferença ingerir o suco de limão, não dava tempo do escorbuto “bater” nos marinheiros.
Tanto que começaram a usar limas, mais baratas porém bem mais pobres em vitamina C. Como as viagens estavam mais curtas e existia uma oferta maior de portos oferecendo alimentos frescos durante as viagens, criou-se o falso positivo de que limas e limões dariam no mesmo. Ei, ninguém estava com escorbuto.
Mas essa não era uma viagem qualquer. Eles iriam até o Pólo Sul, passando muito mais tempo em alto mar do que quase a totalidade dos outros navios. Exceção feita aos baleeiros, que passavam eternidades no mar caçando… baleias (essa frase não foi bem planejada). E sabem um povo que adorava caçar uma baleia naquela época? O povo norueguês. Roald e sua trupe tinham experiência, mesmo que indireta, com as precauções necessárias numa viagem polar.
Mas os ingleses… Ah, os ingleses caíram vítimas da ciência ruim. Era uma época meio complicada para a medicina, estavam começando a entender que sangrar pessoas não era a resposta para tudo, e sequer se sabia da existência da vitamina C. O escorbuto, considerado quase erradicado, resolveu voltar no fim do século XIX, muito por causa das péssimas condições de armazenamento e preparação dos alimentos na Europa civilizada. Vitamina C está presente na maioria dos alimentos, mas é muito sensível. O povo comia poucos alimentos frescos, assim como os marinheiros de antigamente.
Como o escorbuto começou a aparecer em terra, alguns “cientistas” (honestamente, naquela época ainda não dava para chamar muita gente de cientista sem aspas e mais aspas…) resolveram ignorar todo o conhecimento acumulado pelos marinheiros e começar uma nova teoria sobre a causa da doença.
Um deles era o “médico” (mesmo caso) que aconselhou Robert Falcon Scott antes de começar sua viagem. Usando o famoso discurso de autoridade médica, ele convenceu capitão e tripulação que o escorbuto era uma inflamação ácida do sangue causada por bactérias.
Bactérias eram a coqueluche da ciência na época (ha!). Neguinho queria porque queria achar doenças que eram causadas por essa novidade. Ainda falo mais sobre isso na Parte 2, mas o ego tem um grande papel nas teorias idiotas que queimam o filme da ciência.
A idéia por trás das teoria do escorbuto causado por bactérias era bem lógica, mas completamente errada. Na cabeça desses médicos, era a carne infectada pelas bactérias que causava a doença. Resultado óbvio de armazenagem errada… óbvio. Compararam viagens com incidência de escorbuto (longas, depósitos cheios de carne salgada) e sem casos da doença (curtas, alimentação fresca). A lógica estava lá! Na cara deles. Só podia ser a carne mal armazenada!
E o suco de limão? Eles também sabiam explicar: O suco ácido do limão matava as bactérias, por isso prevenia a doença. Para complicar mais ainda, começavam a pipocar mais e mais casos da doença, mesmo com a obrigatoriedade de levar o suco nas viagens. Ao invés de culpar a lima ou de perceber que armazenar suco de fruta em barril por meses meio que estraga a função deles, acreditaram que se fossem muitas bactérias na carne, nem o limão (ou lima) resolveriam.
Sem a menor preocupação com comprovação, lá se foi Scott e companhia para o Pólo Sul munidos de carne seca, rum e muitas limas (as colônias inglesas produziam mais lima que limão, era obrigatório levar também por questões econômicas…).
Uma dose de rum para quem adivinhas o resultado…
Hemorragia e inchaço das gengivas, dores pelo corpo, feridas que não fecham e a queda dos dentes. Passe muito tempo assim e você morre. Incontáveis navios perderam quase toda a tripulação para a doença na nossa história.
Deve ter sido uma viagem pra lá de agradável. A carne seca armazenada da forma mais cuidadosa possível e um mar de homens cuspindo sangue e dentes pelo convés. Para ajudar, o suco de lima, que já é fraco para prevenir a doença naturalmente, já estava pra lá de inutilizado quando os casos começaram a pipocar. O corpo humano consegue armazenar vitamina C por mais ou menos seis meses, então eles já estavam bem enfiados no gelo polar quando a teoria dos médicos/açougueiros ingleses foi posta à prova.
E sem ninguém para explicar o que realmente acontecia, a tripulação tentava se livrar das bactérias ao invés de comer um pouquinho que seja de carne fresca (prato do dia: urso polar) como fizeram os noruegueses. Até que pelos motivos errados eles fizeram uma coisa certa: Com a certeza que a carne do navio estava totalmente perdida para as bactérias, Scott manda sua trupe caçar focas e pinguins para alimentar os inúmeros doentes.
Carne fresca, vitamina C, problema resolvido? Não totalmente. Para evitar que as bactérias estragassem a carne da caça recente, ela foi fervida seguidas vezes. E vitamina C, como eu já disse, é bem sensível. Os poucos que sobreviveram para fazer a viagem de volta (Scott não foi um deles) aproveitaram muito mais escorbuto no caminho.
É importante notar como havia sim uma lógica na teoria do médico que mandou uma tripulação inteira para se foder com uma doença que JÁ havia sido considerada “vencida” há mais de um século. E havia também uma parte do método científico… Mas uma parte do método não se compara com o método todo.
NO PRÓXIMO CAPÍTULO
Observar relações entre causa e consequência NÃO equivale a testar relações entre causa e consequência.
Lind, o escocês que recomendou suco de limão no século XVIII, fez vários experimentos com cobaias animais e humanas até ter certeza que tinha descoberto uma dessas relações.
Os médicos ingleses do começo do século XX por trás da teoria que ajudou a matar boa parte de uma tripulação chutaram uma teoria baseada apenas no que eles julgavam lógico.
Saber a diferença entre ciência e chute (pseudociência) pode salvar sua vida. Mas como conhecimento é poder, posso esperar até semana que vem para continuar o assunto. Sim, eu sei que vocês vão se descabelar com a expectativa…