Dia: 3 de outubro de 2011

Achei a foto bacana, ok?Sally e Somir concordam que histórias infantis em geral são um desfavor; mas ao definir qual delas é mais terrível, a confabulação vai longe. Sinta-se convidado a tomar partido ou mesmo sugerir algo ainda pior.

Tema de hoje: Qual a história infantil mais nefasta?

SOMIR

A Cigarra e a Formiga. Eu sei que não é tão explorada como tantas outras a receber o selo Disney de distorção de valores, mas essa fábula faz parte do inconsciente cultural de muita gente nesse mundo. Pode não ter tons racistas e machistas como muitas das outras possíveis para o tema desta coluna, mas tem em sua “alma” algo muito escroto para se colocar na cabeça de uma criança: Conformismo.

A versão original não é muito extensa: Conta a história da cigarra que passou o verão todo cantando enquanto as formigas trabalhavam debaixo do sol escaldante. No inverno, a cigarra se viu sem comida e abrigo, precisando da ajuda das incansáveis formigas. Ao bater na porta do formigueiro pedindo ajuda, recebe a porta na cara, não sem antes ouvir um “Não cantou o verão todo? Agora dança!”.

Evidente que o tempo cuidou de açucarar a fábula. Hoje em dia as formigas recebem a cigarra, que escapa só com uma lição de moral da rainha do formigueiro. Tempos viadinhos, os nossos. Só que não importa quanto perfume você jogue num monte de merda, ainda é um monte de merda. A versão atual consegue ser ainda pior.

Vamos tirar isso do caminho: Eu sei que é razoável ensinar responsabilidade para crianças, o senso de consequência é um dos mais complexos e demorados para se formar. E tem muitos marmanjos por aí que sequer chegam a alcançar um entendimento mínimo disso. Mas com certeza existem formas melhores de lidar com o tema, formas que não passem pela glorificação da mediocridade.

Vou me concentrar na versão moderna da história, a antiga até que tinha alguma moral com a cigarra pagando pelo seu estilo de vida. A que as crianças de hoje tem acesso elimina a consequência em prol de um “final feliz” que só ensina que é errado se destacar.

Vamos pensar nas personagens: A cigarra desenvolveu seu talento musical, o que não é fácil, e definitivamente se divertia com isso. Ninguém menciona que a cigarra ganhava alguma coisa para cantar no verão. Pode não ser a rota mais responsável, mas, porra… ela se divertia. Aposto que ela passava as noites enchendo os cornos entre as pernas de cigarras groupies.

As formigas? Elas trabalhavam o verão todo para sofrer MENOS no inverno. Passavam por um sofrimento para aguentar o próximo. As formigas vivem de problema em problema, lutando exclusivamente para aumentar suas chances de… sobrevivência. Cigarras vivem, formigas sobrevivem.

Pior, as formigas trabalham de forma ESCRAVA. Elas tem uma rainha, referenciada na versão atual da fábula. Estamos glorificando o grupo de escravos que só se fodem nessa história? A criança deve achar que as certas eram as formigas?

A rainha das formigas vem passar sermão na cigarra no final. Sendo que ela também não fez porra nenhuma na história. E com um conhecimento básico de biologia, sabe-se que rainhas formigas nascem rainhas, e operárias nascem operárias. Aposto que essa história encaixa perfeitamente na realidade social humana percebida por uma criança.

“Fedelho, você vai querer ser uma formiga, ok? E já adianto que você também não é uma rainha…”

O verão da cigarra foi do caralho. O das formigas, nem tanto. Quando chega o inverno, as coisas começam a se inverter. Ok, é inteligente se precaver, a cigarra abusou da sorte. Mas, como não se pode mais assustar criancinhas nos dias de hoje, agora as formigas recebem a cigarra, que passa o inverno quentinha e bem alimentada fazendo o que mais gosta: Cantar.

A verdadeira moral da história é que vale muito mais a pena se arriscar sendo uma cigarra do que se foder a vida toda como uma escrava trabalhando para uma rainha formiga hipócrita. Mas eu nunca vi ninguém fechando a história assim… É sempre o papinho que é importante trabalhar e ser responsável feito as formigas para não acabar como a cigarra.

Infelizmente poucas crianças tem o discernimento necessário para sacar que as únicas se dando bem são a cigarra e a rainha das formigas. Uma por não viver uma vida medíocre e a outra por ter nascido em berço de ouro. O mundo é mantido pelas formigas operárias, mas não é desfrutado por elas.

E é justamente nessa falta de bom-senso infantil que a burrice das operárias adultas consegue o seu lugar. “Seja igual aos outros. Dever é mais importante que felicidade. Estoque para o inverno.”

Isso é balela, isso é a fundação de uma sociedade que permite exploração financeira e intelectual para sustentar uma minúscula parcela de rainhas. Sei que estou soando assustadoramente comunista agora, mas muito pelo contrário, estou defendendo liberdade e iniciativa pessoal. Se esse mundo é dominado por cigarras e rainhas, seja uma delas.

A vida já é complicada o suficiente para forçar a maioria de nós a viver enclausurados dentro dessa porra de formigueiro. É um golpe: Trabalhe o verão todo para aguentar o inverno. E se sobreviver ao inverno, parabéns! Você vai poder sofrer tudo de novo no próximo verão. A formiga corre em círculos, a vida toda.

E se é natural passarmos por fases formigas, que pelo menos fique na imaginação da criança a vontade de ser a cigarra. Deveríamos ensinar que a formiga pode ser um meio, mas jamais o fim. Se a oportunidade bater na porta, pelo menos ela não vai estar preocupada demais com a merda da fatura do cartão de crédito para perceber.

Para dizer que foi um texto excelente… se eu tivesse quinze anos de idade, para discutir se a cigarra conseguiu entrar no formigueiro oferecendo drogas, ou mesmo para dizer que acaba de entrar em depressão: somir@desfavor.com

SALLY

História infantil, no geral, é um grande desfavor. Uma lição de moral politicamente correta no final permeada por um monte de merda no meio que tiram qualquer valor didático da história. Difícil escolher qual é a história infantil mais nefasta, mas na minha opinião é a porra da Branca de Neve.

Para começo de conversa, a história se inicia com um misto de eugenia com racismo, quando uma rainha deseja que sua filha seja branca da cor da neve. Grande desfavor que faz com que todas as crianças que não são brancas como a neve sintam uma pontinha de inferioridade.

Começou mal e só vai piorando até o final. A rainha de fato tem uma filha com a pele branca da cor da neve, mas morre logo depois que ela nasce, o que é uma coisa cruel de se contar a uma criança, pois chama sua atenção para a mortalidade de sua própria mãe de uma forma bastante negativa. Algo como “tá vendo? sua mamãe pode morrer de uma hora para a outra, e se isso acontecer, você vai ver o quanto você vai se foder”.

Porque depois que a mãe da Branca de Neve morreu, seu pai se casou com uma tremenda filha da puta que maltratava sua filha com seu consentimento. A mulher fodia com a vida da filha dele e ele tolerava. Ótimo pai. Aparentemente não havia Conselho Tutelar onde eles moravam. O culto ao corpo e vaidade e futilidade exacerbadas já davam as caras na história. A rainha tinha um espelho mágico que só falava a verdade e todos os dias lhe perguntava quem era a mais bela, até que um dia o espelho respondeu que Branca de Neve era mais bela do que ela.

Se fosse uma história normal, saudável, a rainha pensaria “Ok, a filha do meu marido é mais bela do que eu, mas eu não tenho porque temer, afinal, meu marido não vai comer a própria filha, então tá joinha”. Mas não, é uma história completamente bizarra (Woody Allen feelings), a Madrasta sente toda uma concorrência e contrata um caçador para matar a Branca de Neve, o que por si só já seria muito grotesco de se contar para uma criança, mas pelo visto era pouco: ela ainda pede que mate e traga o coração de Branca de Neve para provar de fato que ela estava morta.

Atentem que em momento algum da história ela (mandante do crime) ou o caçador (executor) são punidos de forma direta por essa atrocidade. Alias, em momento algum se deixa claro que isso é absolutamente bizarro e ilegal. O caçador vai lá, na intenção de matar Branca de Neve, mas quando se depara com ela, desiste, devido a sua beleza. Tipo, se fosse feia, estava morta. Ele não desiste porque é uma barbarie, um crime desumano, ele desiste porque ela é bonita. E isso é contado para as crianças. A solução proposta pelo caçador também é de foder: que ela fuja para a floresta. O caçador volta e engana a Madrasta dizendo que matou Branca de Neve e lhe mostra o coração de um veado. Sobrou para o coitado do veado. O caçador matou o Bambi e ninguém fica indignado. Super ecológico.

O bacana é a atitude da Branca de Neve. Contar para o pai dela nem pensar, né? “Papai, sua esposa mandou me matar e arrancar meu coração”. Não, crianças. Se um adulto ameaçar ou tentar te fazer mal, o certo não é contar para seus pais e sim FUGIR. Uma belíssima lição. Branca de Neve foge para a floresta. Encontrou uma casa e entrou. Outra atitude bizarra. Se você encontra uma casa, pode entrar. Tá tudo bem em sair invadindo a propriedade alheia. Não contente em entrar, a filha da puta ainda revirou a casa toda, mandou uma faxina e tirou uma sonequinha na cama. Faz isso mesmo, entra em uma casa estranha e tira um cochilo. Excelente mensagem!

A casa pertencia a sete anões (pelo visto era um reduto de pessoas discriminadas). Ao chegarem em casa eles se assustaram, mas logo se acalmaram quando perceberam que tinha rolado uma faxina e era apenas uma bela moça que dormia ali ficaram contentes e a acolheram. Novamente neguinha abrindo portas com sua beleza. Se for jeitosinha tá legal entrar na casa dos outros e tirar um cochilo. Branca de Neve passou a morar com os anões. Só em uma história infantil mentirosa uma bela mulher mora com sete homens adultos e nenhum deles força uma barra para comê-la. Detalhe sórdido: os anões deixaram a Branca de Neve morar com eles com a condição de que ela fizesse os serviços domésticos. Mais degradante impossível.

A Madrasta acabou descobrindo através do espelho sincericida que Branca de Neve estava viva e insistiu no homicídio. Só que desta vez ela própria decidiu executar. Acabou por oferecer uma maçã com um feitiço/envenenada, aceita por Branca de Neve. Quando os anões chegaram, a encontraram caída no chão. Enterrar? Não, nem pensar. Eles achavam ela tão bonita que resolveram mantê-la na casa como adorno, porque é super saudável você exibir uma pessoa morta na sala da sua casa. Tudo super normal, até que um dia, um príncipe que por ali passava se encantou por ela. Necrofilia? Oi?

Aqui a história tem várias versões. Apesar da versão original ser a mais bizarra, vou narrar a versão que é a mais difundida. O príncipe que se encantou com o corpo MORTO e INERTE da Branca de Neve achou que nutrir desejo por uma pessoa morta era pouco e se sentiu no direito de vilipendiar o cadáver. O cara simplesmente vai e me dá um FUCKIN’ BEIJO em uma mulher que estava morta, dentro de um caixão, que ele sequer conhecia. Sim, este tipo de coisa é contada para crianças, depois querem culpar as drogas e os video-games pela cabecinha fodida da juventude.

Quando o príncipe beija Branca de Neve, ele quebra o feitiço da maçã envenenada, ela cospe a maçã e acorda, porque homem é essencial e indispensável na vida da mulher, ele nos salva de todos os males. Após um beijo, o príncipe a pede em casamento (hahahahaha), os dois realmente casam (HAHAHAHA) sem nem se conhecer direito e são felizes para sempre (HAHAHAHAHAHAHAHA). Ou seja, incute na cabeça das meninas que todo homem que se aproxima de você vai querer algo sério e pior, que basta um encantamento inicial para justificar e fazer durar um casamento. Mas que caralho de história de merda, viu?

Para dizer que em matéria de machismo a Bela Adormecida é ainda pior, para dizer que acha Alice no País das Maravilhas uma clara alusão a drogas ou ainda para dizer que o bacana é criar as filhas lendo Siago Tomir antes de dormir, assim elas já vão se acostumando com a dura realidade: sally@desfavor.com