Des Contos: A Estrada.

André começava a considerar as vantagens de namorar Joana. Por um lado, ela era definitivamente a mulher mais atraente que jamais dera atenção a ele. Por outro, sua ideia de diversão não se traduzia muito bem para seus gostos.

JOANA: E aí, vai ou não vai?
ANDRÉ: Hã? *voltando ao mundo real*
JOANA: Você já desceu em lugares piores. Aqui vai ser tranquilo!
ANDRÉ: Claro… claro… até parece que uma quedinha dessas vai me botar medo!
JOANA: Esse é o meu gatão corajoso! *sorrindo*

Enquanto suas ex-namoradas pareciam se contentar com voltas no shopping, Joana gostava mesmo era de passar horas e horas se embrenhando por cavernas. E quanto mais distantes e inacessíveis, melhor. André não quis dar o braço a torcer e dizer que morria de medo de ficar isolado debaixo de toneladas de rocha com apenas uma mísera lanterninha iluminando o caminho, e embora isso tenha conquistado vários pontos com sua namorada, criou uma falsa ideia de paixão compartilhada.

ANDRÉ: Bom, deixa eu me… AAAAHHH! *pulando para trás*
JOANA: Calma, foi só um morcego!
ANDRÉ: Desse tamanho? Era a porra do Batman!
JOANA: Hahahahaha! Só você para me fazer rir assim. Ele não é ótimo, Valter?
VALTER: Todo mundo adora o Prego. Agora desce logo!
JOANA: Para de chamar ele de Prego!
ANDRÉ: Deixa… deixa…
VOZ: ENTALOU NO BURACO, PREGO? *de dentro do buraco*
JOANA: NÃO CHAMA ELE ASSIM! *berrando para baixo*

Risadas podem ser ouvidas na parte de baixo da caverna. André se posiciona cuidadosamente na borda da passagem, confere mais algumas vezes se todas as cordas estão presas, respira fundo… E se solta.

ANDRÉ: Pai nosso que estais… *murmurando*

Alguns segundos depois, que André poderia jurar terem durado horas, o contato com uma superfície sólida. E úmida. O som de corredeiras ecoando pelo breu das passagens posteriores o lembra que só tem uma coisa pior que explorar cavernas: Explorar cavernas cheias d’água.

Logo a sua frente, debilmente iluminado pelo seu capacete, está Jorge. Musculatura saliente, língua afiada e uma predileção incômoda por pegar no seu pé. Isso já seria problema o suficiente sem a desconfiança que Joana já teve um caso com ele.

JORGE: Ainda não aprendeu a se soltar, Prego?
VOZ: Não chama ele de pregoooo!
JORGE: *sorrindo*
ANDRÉ: Pronto! Pronto! Não precisa, já me soltei. *irritado*

Alguns momentos depois, Joana desce soltando um grito de satisfação que André não escuta nem em seus dias mais inspirados na cama. Logo ela se junta ao grupo, formado por André, Jorge e Camila, namorada atual de Jorge e simpatizante silenciosa do desgosto de André pela espeleologia. Valter é o último a descer.

JOANA: Vamos logo!
JORGE: Calma, Jô, eu também estou empolgado, mas essa é a primeira vez que entramos nessa caverna.
VALTER: Estou achando que é a primeira vez que qualquer pessoa entra aqui…
CAMILA: Deve ser porque é muito longe… de tudo.
ANDRÉ: Se acharem um par de botas, o meu amigo Judas está procurando.
JORGE: Se não queriam vir, tinham que ter avisado antes.
JOANA: Calma, Jorginho! Eles estão só brincando. Pra onde agora?

Valter e Jorge se dividem e seguem para sentidos opostos, alguns minutos depois, os dois retornam.

ANDRÉ: Se diz Rorâima ou Roráima?
JOANA: Sei lá…
VALTER: Pra lá não tem saída.
ANDRÉ: Que pena! Bom, podemos voltar então e…
JORGE: Sem volta, Prego. Praquele lado tem uma galeria iraaaada!
JOANA: Isso! *empolgada* E não chama ele de…
JORGE: Tá, tá… Vamos!

Sem alternativas, André e o resto do grupo avançam por uma série de túneis, cada vez mais apertados e cada vez mais cheios de água gelada. Jorge e Joana tomam a dianteira e parecem encantados com as formações no caminho. Valter fica encarregado de estender a corda de segurança e mapear o trajeto. No meio do bando, André e Camila jogam conversa fora para se distrair das condições precárias da jornada.

ANDRÉ: …não acho Odisséia um filme chato. A frieza e o distanciamento são linguagens.
CAMILA: Mas se refilmassem, nunca que iam manter aquela sequência final…
ANDRÉ: Só não bato na madeira porque não tem nenhuma à vista. Imagina só fazer rema…

Joana se aproxima dos dois, claramente animada.

JOANA: Vocês não vão acreditar no que o Jorge achou!
ANDRÉ: O senso de auto-preservação? Finalmente!
JOANA: Hã?
CAMILA: *risada discreta*
JOANA: Não, é a coisa mais incrível que eu já vi numa caverna!
CAMILA: Um lugar confortável?
ANDRÉ: *segurando o riso*
JOANA: Melhor! Vem! Vem logo! Valteeeer! *correndo na frente*

André, Camila e Valter seguem o caminho até encontrar um alargamento no túnel. As luzes dos equipamentos de Joana e Jorge indicam que o que quer que tenham encontrado, deveria ser por lá.

JORGE: Valter! Olha!

Iluminado pelo capacete de Jorge, uma poça d’água com alguns diminutos peixes totalmente brancos saracoteando por todos os lados. Joana ilumina uma das paredes, onde uma espécie de centopéia albina parece paralisada pelo feixe de luz colocado sobre ela.

JOANA: Nós devemos ser as primeiras pessoas a verem esses bichos!

Camila dá um passo para trás, feição incomodada pelo ser despigmentado. André esboça um sorriso amarelo, tentando demonstrar empatia para a namorada.

JORGE: E fica melhor! Por lá *iluminando uma entrada* tem mais um monte de galerias com mais desses bichos. Sorte grande, vamos passar a noite toda por aqui!

Joana sorri empolgada para André, agora com mais dificuldade de mimetizar a expressão dela. Camila, resignada, suspira e vai em direção a Jorge.

ANDRÉ: Poxa, que legal! *se aproximando de Joana*
JOANA: CUIDADO COM O BICHO!
ANDRÉ: Hã? *escorregando*

André se estabaca no chão molhado, só escapando de quebrar a cabeça numa pedra afiada por causa do capacete. Suas roupas ficam encharcadas e enlameadas, o braço esquerdo, que amortecera a queda, começa a acusar os resultados do impacto.

JORGE: Hahahahaha! Cai um Prego no chão, cuidado pra não pisar!
JOANA: Não chama ele de Prego!
ANDRÉ: … *perdendo a cabeça* Sabe do que mais? Me chamar de Prego é o menor dos problemas nessa… MERDA de caverna! Essa porra é tão longe que nem os índios sabiam direito como chegar! E aqui dentro? Grandes coisas! É igual a todas as porcarias de cavernas que eu já tive o desprazer de entrar desde que começamos a namorar. Eu ODEIO essa caverna! Eu odeio todas as malditas cavernas desse mundo!
JOANA: Eu não sabia…
ANDRÉ: Claro que não! Você não percebe mais nada nessa vida! Está mais preocupada com essas pedras do que com o namorado. Você me fez escorregar aqui para que eu não pisasse numa BOSTA de um inseto!
VALTER: Centopéia não é inseto.
ANDRÉ: FODA-SE! Foda-se essa caverna! Fodam-se esses peixinhos… *levantando* Foda-se essa merda de centopéia! *chutando a parede e esmagando o ser*
TODOS:
ANDRÉ: O quê?
CAMILA: Atrás de você…

André se volta para a parede que acabara de chutar. No lugar onde seu pé acertou a rocha, se formou uma pequena rachadura que começava a crescer. Pelas frestas, começa a escapar um facho de luz. Ao perceber que algumas pedras começavam a se soltar, André se afasta. A parede de rocha se desfaz numa abertura para outro lado da galeria, iluminado.

ANDRÉ: Que porra é essa?

Jorge é o primeiro a se destacar do grupo e explorar a passagem. A iluminação poderosa emanando de lá engolfa todo o corpo dele alguns metros na frente. Joana não tarda a seguir. Valter é o próximo. André e Camila se entreolham, num acordo implícito de que a curiosidade vence o medo num caso desses. Assim que atravessam, encontra o resto do grupo estático, olhando para o que parecia ser uma gigantesca e longa galeria cujas paredes eram formadas por cristais emanando luz própria, das mais diversas cores e formatos.

Alguns metros à frente, no chão, o que parece ser uma extensa linha de trem cujo começo e fim desembocam em túneis distantes.

VALTER: Mesmo que estivéssemos numa área habitada e não no meio do nada, isso nem parece com um túnel de metrô.
JORGE: O povo das cavernas!
ANDRÉ: Povo das cavernas?
CAMILA: Não dá corda…
JORGE: Vai duvidar agora? Quem mais construiria isso aqui? Aqui?
ANDRÉ: É tipo aqueles seres peludos que dizem que moram no subterrâneo?
JOANA: Se eles fossem peludos, você já saberia, meu amor.
ANDRÉ: Hã?
JOANA: Você já cansou de ver um deles pelado.
ANDRÉ: HÃ?
JOANA: Vai dizer que ninguém estranhou que eu soubesse como achar a caverna no meio de uma floresta fechada?
ANDRÉ: Eu achei que era o GPS…
JORGE: Peraí! Você é do povo das cavernas?
JOANA: E eu trouxe vocês aqui por um motivo.
CAMILA: Estão escutando?

O som característico de um trem começa a se aproximar por um dos túneis. Antes mesmo de qualquer reação ser esboçada, uma locomotiva com visual antigo, puxando um único vagão, cruza a boca do túnel em alta velocidade, apenas para começar um barulhento processo de frenagem.

JOANA: Vocês tem a chance única de se unirem ao povo das cavernas e vivenciarem as maravilhas de nossas civilização.

A locomotiva finalmente para. Joana se dirige até o vagão de passageiros.

JOANA: Essa viagem não tem volta. Vocês podem escolher me acompanhar agora ou voltar por onde vieram. Mas eu aviso: Esta caverna não estará aqui quando vocês voltarem.

Jorge é o primeiro a entrar, Valter o segue. Camila e André parecem mais receosos. Joana encara André de forma inquisitiva.

ANDRÉ: E no seu… reino… é mais um monte de cavernas?
JOANA: Milhares e milhares de quilômetros. Habitados por seres que nenhum humano jamais viu.
CAMILA: Acorda… acorda… acorda…
ANDRÉ: Hein?
CAMILA: Sei lá, vai que funciona?
ANDRÉ: Vocês tem cinema por lá?
JOANA: Não.
JORGE: Prego, larga de ser prego e se decide de uma vez!
ANDRÉ: Internet?
JOANA:
ANDRÉ: Não é você, sabe? Sou eu. Não teria dado certo entre a gente mesmo e…
JOANA: Você está terminando comigo?
ANDRÉ: Olha, do jeito que eu vejo, você escondeu uma informação essencial de mim na nossa relação. Se eu não fosse humano, eu te contaria… Não faz sentido? *olhando para Camila*
JOANA: Você está terminando com a senhora do subterrâneo?
ANDRÉ: Ah lá! Também não disse que era rainha de um povo! Cadê a comunicação? Sem comunicação não tem amor que baste!
JOANA: *expressão irritada*

O chão começa a tremer.

ANDRÉ: Mas nós ainda podemos ser amigos….

Camila dá um tapa na própria testa. Os tremores se intensificam.

ANDRÉ: Eu… te escrevo… a gente não precisa perder o contato… se bem que eu não sei se o correio chega até aqui, né? Hehe… Mas você sabe onde eu moro, quem sabe um dia o seu povo… não constrói uma estação perto de algum metrô que eu pego e…

Vários cristais das paredes e do teto começam a quebrar e cair.

CAMILA: Cala a boca e corre!

André e Camila começam a voltar pela caverna, seguindo a corda deixada por Valter. Podem ouvir ao fundo o som de rochas e cristais desmoronando. Depois de um dia de caminhada pela floresta, os dois encontram a aldeia indígena onde os carros do grupo ficaram. A proximidade e as circunstâncias explicitam a atração que um sentia pelo outro, mas que nunca havia sido demonstrada na presença de seus ex-namorados.

Logo na volta para a cidade, uma surpresa: Circunstâncias obscuras fazem todo o prédio onde André tinha seu apartamento ter suas fundações abaladas ao ponto de ser interditado por tempo indeterminado. Camila oferece sua casa como estadia para ambos. André aceita. No táxi que o casal divide:

CAMILA: Acho que foi um sinal para nós dois.
ANDRÉ: Pois é… caverna nunca mais!
CAMILA: Nem me diga. Agora nós podemos fazer coisas que tem mais a nossa cara!
ANDRÉ: Alguma sugestão? *sorriso maroto*

Alguns dias depois:

CAMILA: O que aconteceu, Paulão?
PAULÃO: O Prego não quer ir!
CAMILA: Não chama ele de Prego!
ANDRÉ: Tudo bem… tudo bem…
PAULÃO: Eu não vim aqui para desistir por sua causa! Vai por bem ou vai por…
ANDRÉ: AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!

André só abre os olhos quando sente o chão sob os pés novamente. Camila chega logo depois.

CAMILA: E aí, pular de paraquedas não é a coisa mais incrível do mundo?
ANDRÉ: A-a-a-do… adorei! *sorriso amarelo*

Moral da história: Não seja um Prego.

FIM

Para dizer que adorou o elemento fantástico desnecessário, para dizer que odiou o elemento fantástico desnecessário, ou mesmo para me chamar de Prego: somir@desfavor.com

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Comments (17)

    • Se eu não me engano tem uma versão mobile que é gerada automaticamente a partir do layout.

      Nunca me interessei em ver, e me faz feliz não dar suporte algum para quem use essa modalidade. Assim que eu descobrir como, o desfavor vai abrir num site pornô gay para quem quer que esteja acessando por qualquer produto Apple.

  • bibliotecário

    E não é que cada ver mais os comandantes dessa república ficam parecidos.

    Imagino que um Des Contos escrito pela Sally seja algo parecidíssimo com esse texto, mas sem o “elemento fantástico desnecessário”.

    No mais, quem, hoje em dia, escolheria viver pra sempre sem Internet?

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