Desfavor Convidado: O italiano.

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Série Jornalismo Literário: O italiano.

O relato a seguir não deve ter durado mais que 3 minutos e veio de um homem que apareceu outro dia desses no terreiro. Filho de pais italianos, ele nasceu no Brasil e morou na Itália por muitos anos. Retornou ao Brasil para cuidar de seus pais, que sofriam com as mazelas da idade avançada. Mesmo eu sendo novato e um dos mais céticos da casa, por algum motivo o Pai do terreiro me indicou para apresentar as normas e obrigações para com a casa. Nesse meio tempo, esse italiano me fez um resumo de sua história e me fez recriar um passado fictício para esse homem exótico que me chamou tanto a atenção. Sendo assim, reitero que 90% do texto a seguir saiu da minha imaginação, o resto é real. Deixo para vocês pensarem o que é real e o que é fictício sobre a história e espero sinceramente que gostem.

VII

Sou filho de italianos e nasci em Salvador. Venho de uma família espírita, então desde pequeno me acostumei em ver a complexa arte que é entrar em contato com o mundo dos desencarnados. Vivíamos em um bairro de classe média afastado do centro urbano e minha casa era bem simples, mas cheia de amor e alegria. Meu pai trabalhava como representante comercial de uma marca de remédios que estava chegando ao Brasil, enquanto minha mãe se dedicava às prendas domésticas, mas também ajudava com as despesas, já que era uma costureira de mão cheia. Não haviam muitos italianos em Salvador naquela época e como meus pais só falavam um português embromado, ficava a meu cargo servir de tradutor quando a ocasião pedia. Inúmeras foram as vezes que fiquei até tarde da noite participando das mesas brancas, apenas para atuar como intermediário entre meu pai e seus consulentes. Até que um dia apareceu um homem que falava italiano fluentemente e conseguiu conversar com meu pai sem precisar de minhas intervenções. Após meia dúzia de frases, eles trocaram sorrisos, beijos e se abraçaram. Meu pai se virou para mim e disse:

_Olhe só Giorgio, esse é meu primo Paolo. Ele vem lá da nossa terra e deve fazer uns 15 anos que não nos vemos.

Paolo me deu um abraço que quase quebrou minhas costelas. Só então notei que seu corpo era puro músculos bem visíveis sob uma camiseta regata e uma bermuda jeans. Aquele dia a reunião da mesa branca acabou mais cedo e os dois ficaram conversando enquanto minha fazia uma macarronada. Resolvi ajudá-la e estava preparando o molho quando ouvimos meu pai gritar. Fomos correndo para socorrê-lo e o encontramos chorando deitado no chão sob o olhar atônito do primo:

_O que aconteceu aqui? – perguntou minha mãe em pânico.

_Minha mãe…. minha mãe morreu e nem tenho como ir até lá para velar por ela…. – respondeu papai.

Mamãe abraçou-o e eu fui buscar um copo de água. Aos poucos papai se acalmou e me pegou pelos ombros:

_Paolo trouxe dinheiro que dá para comprar apenas uma passagem. Eu não posso ir por causa de meus compromissos com a empresa e a mama odeia viajar de avião. Você terá que ir e levar nossas condolências ao túmulo da nona.

Fiz que sim e olhei para Paolo, que tinha um brilho estranho no olhar, um brilho que demonstrava profunda tristeza. Nos dias seguintes arrumei minha mala e devo ter me despedido umas vinte vezes da mama antes de realmente sair de casa. No papa dei apenas um abraço, já que nós éramos homens e seguimos aquele velho código masculino de nunca chorarmos. Hoje considero esta uma tradição tão imbecil e me arrependo de todas as vezes que devia ter chorado, mas não chorei.

Paolo e eu pegamos um voo até a Itália e perdi a conta de quantas vezes precisei vomitar durante o caminho. Ele apenas ria e me dava tapas nas costas que mais pareciam pancadas de um aríete. Quando chegamos à Itália, descemos em Roma e me maravilhei com aquelas velhas construções e ao mesmo tempo fiquei deprimido com a tamanha miséria daquele povo que tentava se recuperar de uma intensa guerra.

Quando chegamos ao centro da cidade, um homem nos esperava. Ele se vestia inteiro de preto e nos abriu a porta de um carro também preto. Sentamos em um banco de couro macio e o motorista nos guiou em silêncio até o sul do país. Lá fui recebido com abraços e beijos no rosto. Mesmo após uma semana após a morte da nona, eles ainda velavam por ela e as mulheres choravam feito manteiga derretida. Notei que todos se vestiam de preto, até mesmo as crianças mais novinhas.

Paolo me levou até o cemitério da cidade, onde se encontrava o túmulo da nona. Chegando lá, deixei algumas flores que havia pego com as mulheres da família e depositei uma caixinha de madeira que meu pai havia me dado. Parecia uma dessas antigas caixinhas de música e estava trancada a chave. Quando chacoalhei, ouvi um tilintar e imaginei um pequeno tesouro guardado ali dentro que seria enterrado junto da nona. Um velho coveiro tomou a caixinha de minha mão e resmungou enquanto tirava a terra de cima do túmulo. Ao abrir o caixão, vi um rosto que nunca conheci e que nunca iria conhecer, já que ele estava em avançado estado de putrefação.

Saí de lá melancólico e o primo acabou me levando para um bairro de fama duvidosa. Ficamos numa boate onde dançavam meia dúzia das mulheres mais feias desse mundo, além de uma pequeno bando de bêbados, maltrapilhos e delinquentes. Impressionante que ninguém se aproximou de nós e senti que alguns olhavam com certo receio para Paolo. Ele notou que eu estava desconfiado e disse:

_Sabe, aqui depois da guerra, a única coisa que sobrou foi a família. Se não fosse a família, estaríamos todos falidos e nem mesmo você teria podido vir pra cá fazer a despedida para a nona. Não queremos nada de você, apenas se lembre disso: se um dia vier precisar da gente, estaremos aqui para lhe estender a mão.

Fiquei confuso com aquela história e no dia seguinte decidi ir embora, mas não voltei ao Brasil de imediato. Fui para Veneza, apenas para ver de perto aonde meus pais haviam se conhecido. Me sentei em um dos bancos da Praça de São Marcos e imaginei os dois ali de mãos dadas, com o amor brilhando nos olhos e juras de amor saindo de seus lábios feito favas de mel. Como eu era jovem e tomava decisões precipitadas, resolvi que iria morar ali e que só voltaria ao Brasil após me tornar um homem bem sucedido sem precisar da ajuda da família ou de meus pais.

Aluguei um quarto barato que ficava no fundo de um canal que fedia a mofo e esgoto. Comecei trabalhando em um café de quinta categoria e recebia apenas o necessário para pagar as despesas e nada mais. Escrevia mensalmente para meus pais no Brasil, que se mostraram felizes e ao mesmo tempo preocupados com minha situação, mas sempre apoiando até mesmo nos momentos mais difíceis.

Apesar de ser um local isolado, o café atraía uma série de personagens carismáticos da alta roda veneziana. Um desses personagens era Arthur, um elegante inglês que trabalhava em Milão, mas passava suas horas de folga em Veneza. Ela era estilista e adorava ocultismo, sendo que passávamos horas conversando sobre espiritualidade.

Um dia ele me convidou para trabalhar como seu secretário em Milão e me mudei na semana seguinte. Naquela época eu não entendia nada de moda e me limitava apenas a ver se as roupas caíam bem nas modelos. Uma dessas modelos era Minerva, uma linda grega de olhos azuis que balançou meu coração.

Alheio aos meus romances com suas contratadas, um dia Arthur me convidou para conhecer a Umbanda, uma religião brasileira que por ironia do destino só fui conhecer na Itália. Alguns dos adeptos da religião passariam por Milão e estariam dispostos a fazer uma pequena reunião dali a alguns dias. Ele me convidou para participar e claro que aceitei. No dia combinado, fomos de carro até a um antigo casarão onde não se via uma alma viva. Haviam várias garagens e entramos em uma delas. Ao fundo da garagem havia uma porta de madeira e entramos por ela.

Me impressionei com aquela reunião, nunca tinha visto algo parecido com aquilo. Com tambores e alegria, fui recebido com muito carinho. Me identifiquei na hora e fiz amizade com um diplomata brasileiro. Após algum tempo ele me convidou para trabalhar no escritório da embaixada italiana no Brasil e lá fui eu, mesmo sem entender nada de política internacional.

Achei que com a diplomacia eu seria capaz de levar a paz e divulgar a caridade, mas a verdade é que fiquei em uma sinuca de bico: por um lado tinha que evitar que pequenas intrigas se transformassem em crises internacionais, por outro tinha que negociar com a máfia que crescia cada vez mais. Por sorte os mafiosos preferiam imigrar mais para os Estados Unidos do que para o Brasil. Paolo foi um desses que foram buscar a sorte grande na América. Três meses depois ele voltou em um caixão.

Além disso, a diplomacia tomava muito do meu tempo e acabei me distanciando dos meus pais. Só voltei a ter tempo para eles quando já estavam velhos e doentes. Voltei a morar no Brasil para cuidar deles e acompanhei meu pai definhar por causa de um câncer. Mesmo depois de tanto tempo separados, ele me recebeu como se tivéssemos nos visto no dia anterior.

Ele ficou internado no hospital por muito tempo e foi a mim que chamou para conversar quando sentiu que ia partir desse mundo. Naquele dia ele me deu a benção, beijou minha testa e me agradeceu por estar ali. Fui a última pessoa a vê-lo vivo e agradeço a Deus todos os dias por ter tido essa oportunidade de me despedir dele.

Chester Chenson

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Comments (21)

  • Uma coisa pra se pensar – ou pelo menos que me despertou atenção neste sentido – que o texto trás: as vezes a gente esquece da família, vai pra longe fazer carreira, subir na vida e tals… e só lembramos e passamos a dar verdadeiro valor quando os pais/parentes já estão em fase terminal… foda isso!

  • Revelando as verdades e ficções da história:

    – O italiano existe – verdade
    – Ele nasceu no Brasil – verdade
    – Foi morar na Itália – verdade
    – Trabalhou na embaixada – verdade
    – Voltou para o Brasil e cuidou de seus pais doentes – verdade
    – Foi o último a ver seu pai vivo – verdade

    – Tem parte da família trabalhando na máfia – ficção (mas lá no sul da Itália todo mundo é meio mafioso, então…)
    – Trabalhou para um estilista em Milão (ficção, ele apenas conheceu um estilista que acabou levando-o para a Umbanda, mas nunca trabalhou com ele)
    – Foi para a Itália para homenagear a nona (ficção, ele não me contou porque foi para a Itália, mas deve ser algo relacionado com a família ou com o trabalho diplomático)
    – Conheceu a Umbanda na Itália (ficção, ele já sabia da existência da Umbanda enquanto morava no Brasil, mas em Salvador o Candomblé era mais forte e ele não teve a oportunidade de conhecer uma gira de Umbanda de perto. Foi ter essa oportunidade apenas na Europa).

  • “Não queremos nada de você, apenas se lembre disso: se um dia vier precisar da gente, estaremos aqui para lhe estender a mão.” Esta, com certeza, é a parte duvidosa da história.

    • Duvidosa mas diga-se de passagem família italiana é meio assim né? Tem os tais “clãs” dentro da família: ou tu ama pra valer ou te odeiam por completo! Falo isso pois também sou de família italiana, minha vó no caso é italiana, veio pro Brasil pós 2a guerra então..

  • Excelente estória, gostei bastante Chester, e realmente fiquei pensando qual parte é verdade e qual é ficção!? Será que a parte da máfia é ficticia?, a parte do estilista e das modelos e o da embaixada italiana também parecem um pouco improváveis, visto que o personagem da sua narrativa não tinha requisitos para os cargos.

    • a parte da embaixada é verdade…. depois ele cursou direito internacional e se especializou em direito romano… hoje em dia dá aula de direito internacional em uma universidade…

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