Desfavor Bônus: Eu?

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Eu?

Para te dizer a verdade eu nunca pensei sobre isso tudo. Tenho medo do que eu descobriria se cavasse fundo o suficiente. Sim, eu sei… como eu posso saber, né? Mas é como se eu soubesse. Como se a minha própria cabeça disfarçasse que fica mesmo maquinando sobre esses assuntos lá no fundo: longe do meu dia-a-dia, mas perto o suficiente para que eu saiba que é melhor deixar quieto.

Sabe quando você acha que está vendo alguém fazer uma coisa horrível, mas não tem certeza? Se você não se mexer, pode se perdoar depois dizendo que não sabia. Mas se você resolver dar um passo a mais… ou mesmo mexer a cabeça para enxergar direito… você pode ver aquela coisa horrível; e essa coisa horrível torna-se parte de você. Não tem mais perdão que dê conta. Você sabia! Se você agir, assume um risco. Se você não fizer nada, vem a culpa.

Nunca tinha entendido aquela frase “Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.” até agora. É isso, né? Nem sei quem disse isso… aliás, nem sei como ela ficou guardada na minha cabeça. Juro que até hoje eu nunca tinha tido um motivo para tirar ela da gaveta. Estou me sentindo bem, acho que não vai ser tão ruim assim no final das contas. Abismo, aí vou eu!

Bom, para que você entenda por que eu faço o que faço, tem que entender por que eu sou o que sou. Quem me fez foi a vida em si, às vezes eu acho que fui plantado em algum canto e só a chuva mesmo que me regou. E pelo amor de Deus, não estou falando mal dos meus pais. Bom, pelo menos não da minha mãe… Eu sei o trabalho que deu, eu sei que ela passou fome para que eu não passasse. Mas eu também sei que por melhores que fossem suas intenções, o serviço saiu pela metade. Estou vivo, sim. Estou vivo e já até dei meus frutos nessa vida. Mas eu não acho mesmo que deu para fazer algo além disso.

Meu pai eu quase não via. Não sei até hoje se ele era uma pessoa ruim. Às vezes parecia, às vezes não. Minha mãe também parecida dividida. Quanto mais eu crescia, mais eu me sentia um incômodo para ele. Acho que ele sempre disfarçou mal, eu que fui percebendo melhor com o tempo. Depois que ele apareceu morto numa viela do bairro vizinho, descobrimos que ele tinha outra família. Acho que minha mãe sabia, mas não é como se eu tivesse muito contato com ela também. Muito por causa de ter tantos irmãos e irmãs, e mesmo com eles a relação não foi tão próxima assim, principalmente depois de adultos. Afeiçoei-me mais à irmã mais velha que fazia as vezes de mãe postiça durante as longas jornadas de trabalho da original.

Eu sobrevivi. Diante das possibilidades, não é pouca coisa. Mas viver mesmo… isso foi muito raro. Quando se é criança é mais fácil, você não espera quase nada mesmo. Correr à esmo numa rua de terra, vento no seu rosto e um mundo que não é problema seu. Eles que são grandes que resolvam tudo isso. Pior, você acredita que eles vão mesmo… Pobreza e um machucado na perna parecem ter a mesma proporção. Alguém vai passar um remédio ardido e soprar, pronto. Mas o tempo passa. Os machucados não…

Engraçado falar disso. Acho que é essa é uma das poucas conversas que tive durante a vida. Lembro de tão poucas. Falar todo mundo fala, mas… isso? Isso eu conto nos dedos. Juntei-me com uma das poucas mulheres com as quais troquei mais de meia dúzia de palavras na vida. Nem sei se eu a amo, acho que sim. Chega uma hora que você só quer saber de ter alguma pessoa viva de verdade do seu lado. Mas nenhum de nós fez a sua parte para manter esse diferencial: vieram dois filhos em muito pouco tempo e tudo parecia um sacrifício. Olhar para a cara dela me lembrava de como eu estava amarrado nisso. Conversar, então!

Se me perguntassem em qualquer outra situação se eu a amava e amava meus filhos, eu diria que sim. Agora, nesse momento… eu me acuso dos mesmos crimes que acusei meu pai. Faço o que acho que tenho que fazer e de má vontade, muito embora jamais vá admitir. Estar cercado de pessoas é a minha vida e nada disso foi a minha escolha. Usei as mesmas válvulas de escape que aprendi em casa, a verdade é que você não quer voltar. Você sabe que precisa, mas não quer voltar para casa e lidar com tudo o que ela representa.

Retiro o que disse… isso vai ser tão ruim quanto eu imaginava. Se eu colocar a família em dúvida tudo desmorona. Será que é assim que fazem com que nós fiquemos quietos? Eu falo tanto de família porque é um conceito tão estranho para mim que só funciona de forma idealizada. Quando eu critico alguém por fazer mal para a família não estou falando da minha, né? A minha já está estragada e eu fiz parte disso. Acho que quero mesmo é proteger a família de comercial de margarina, a que eu queria ter mesmo sem saber muito bem como ela funcionaria na prática.

Olhar para o abismo me faz perceber que eu sou um hipócrita. Palavra da qual eu finalmente extraio um significado! Defender uma coisa e fazer o oposto. Que moral eu tenho para defender família, meu Deus? Mas também, em minha defesa, eu não tenho nada além de alguns cacos na memória para restaurar esse vaso. Adorei essa coisa de analogia… por que eu nunca uso? Mas é o que eu disse: eu sobrevivi até aqui. Quando eu teria a chance de fazer algo diferente? Entre a preocupação para conseguir almoço e a de conseguir o jantar? É uma tremenda sacanagem. Eu comecei esse jogo devendo e parece que o máximo que consigo é empatar.

Já cansei de esperar até o ponto onde eu começo a viver. Existem outras formas de lidar com isso. Ajoelhado num bar ou numa igreja, são os pequenos momentos de dormência e catarse que me fazem sentir alguma coisa. Você sabe como o mundo é hostil para alguém como eu? Você sabe como é ficar com pensamentos desses te esperando numa esquina escura da mente? E pior, pensamentos que sequer sabem como se apresentar. Todos vem gritando, de surpresa, vestindo suas fantasias mais assustadoras!

E quando esses monstros berram à plenos pulmões, não há nada que abafe. Você com seus pensamentos domesticados não tem a menor ideia de como as coisas são aqui na selva. Queria ter mais tempo e capacidade de domá-los, mas a minha agenda de prioridades não tem nenhum espaço livre. Você não sabe como é o amargo fervente do ódio sobrecarregando seus sentidos e exigindo sangue como sacrifício, tal qual um deus tão insano como invencível.

Uau, ficou poético, não? Conhecia todas essas palavras, mas quase nunca as usava. Ainda mais nessa ordem. Ah sim, esses monstros vem e vão sem deixar explicação. Não sei muito bem por que exijo morte e sofrimento para marginais e depois quero clemência para mim ou para um dos meus. Não faz sentido, né? É que a vida em geral parece algo tão descartável. Já perdi amigos, namoradas, parentes… já vi seus corpos estendidos no mesmo chão de terra no qual corria quando era criança. Não é assim que é a vida de todo mundo? Que seja, a minha é. E eu vou fazer o quê? Viver a sua vida? Adoraria, é claro.

A gente acaba vivendo o que pode. Escuto a música do rádio e vejo o programa da TV. É isso o que tem pra mim. Já pensou no trabalho que dá para começar a gostar de outras coisas? O que eu aprendi nos meus poucos anos de escola resume-se agora a uma compreensão pífia de algumas poucas palavras. Prefiro quando me falam as coisas. Não que eu compreenda de forma cristalina, mas é o que tem pra mim. E quem está ao meu redor não fala de outra coisa mesmo. Vai ver eu sou burro demais mesmo para apreciar o que você aprecia, mas não é como se eu me importasse. Não vale a pena se importar. Está achando que eu tenho sequer vontade de escalar essa montanha? O começo é a parte mais difícil, eu não nasci onde já tem escada e elevador!

E outra: quem está aqui não pode distrair. Seja lá o que fizeram com a gente deu muito certo. Passamos o tempo todo brigando entre nós e deixando o povo lá de cima seguir seu caminho numa boa. Sério, o que nos adianta quando um traficante mata o outro? Ou mesmo quando um policial mata um de nós? Ninguém aprende nada. Até mesmo os agentes dos nossos donos são pobres como nós. Botaram a polícia aqui em baixo para que a briga nunca termine! Estamos em guerra e eu não estou em nenhum dos exércitos. Cada vez mais acho que ninguém está.

Já estou parecendo paranóico? Porque isso é tudo o que eu menos quero que aconteça. Começar a enxergar além do que a TV te diz é ruim, é muito ruim. É um sofrimento fazer tudo o que faço achando que é normal, imagine só percebendo que não deveria ser? Eu sei que muita gente que conseguiu escapar desse fosso joga cordas para nos ajudar a sair, mas e se eu não pegar uma delas? Imagina ficar preso aqui sabendo que tem como sair, imagina. Imagina descobrir que tem mais lá fora do que versões mais caras do que já fazemos? Pelo menos de consumir eu já entendo um pouco.

Eu acho que eu sempre vi isso, mas algo me dizia para não prestar atenção demais. A gente defende o que nos oprime e acha que tem que comprar a passagem de saída. Não nascemos livres? Não somos iguais?

Mas eu já estou me perdendo na pergunta. Por que eu me ofendi com a sua piada, certo? Ficou fácil agora: porque eu não quero olhar para o abismo.

Para dizer que detesta texto ambíguo, para reclamar que eu estou monotemático, ou mesmo para dizer que só comenta depois que alguém tomar partido: somir@desfavor.com

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