Semana Anta 2014: A peça que faltava.

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Semana Anta 2014: estamos no ano 64; Somirius e Saella são os escritores da combalida e endividada Companhia de Teatro “Roma Imperial do Desfavor”. Inspirados pelas lendas sobre um maluco judeu, os dois escrevem uma comédia com resultados trágicos.

Roma, 20 de Abril de 64.

Por um instante, pensei que as manchas vermelhas na camisa de Somirius fossem sangue e me assustei quando o vi entrar coberto de vermelho pelo corpo. Mas logo percebi que era tomate. Sim, tomate. Sinal de que nosso último projeto havia fracassado. Mais um fracasso para uma longa coleção. A ideia parecia boa: discursar em praça pública expondo as contradições e mentiras sociais que atrasam o desenvolvimento de Roma. Mas, na prática, se tornou um desastre. Somirius mais uma vez foi alvejado com tomates, algo rotineiro para ambos.

Eu mesma, na semana anterior, havia sido alvejada com ovos ao tentar propagar em praça pública certos aspectos não divulgados de alguns mitos romanos. Aparentemente ninguém quer saber se um poderoso teve um caso com seu cavalo, o bando enfurecido gritava “Invidia est! Invidia est!” e seguiu-se uma rajada de ovos. Se ao menos fossemos remunerados para isso… mas não, de forma gratuita compartilhamos informação e como resposta, atiram ovos e tomates! Chega, era a gota d’água. Se não querem ouvir nossa opinião, se não querem permitir que apontemos fatos muitas vezes documentados, os quais podemos provar, daremos a eles o que eles querem: mentiras. Ou melhor, não daremos mais nada, venderemos.

Não foi muito custoso convencer Somirius, quando se fala em dinheiro ele costuma ser bastante receptivo. O grande desafio foi o assunto a ser tratado. Desconhecíamos os modismos da vez e não sabíamos ao certo o quão medíocre poderia ser o Romano Médio e quão baixo teríamos que chegar para agradá-lo. Havia também a limitação personificada na forma de imperador. Nero teria que aprovar a peça e seu passado era mais sujo que pau de galinheiro: matou o irmão e a mãe, teve um caso com a esposa do seu melhor amigo. Alias, a vida amorosa do nosso imperador é um prato cheio: sua primeira esposa ele roubou de um amigo, a segunda ele “suicidou” o marido para conseguir se casar e a terceira… Bem, a terceira “esposa” teve que passar por um ritual cirúrgico, se é que vocês me entendem, para conseguir virar esposa. Dizem que seu nome era Sporus, antes de suas bolas serem cortadas.

Mesmo tirando, hipócrita e criminoso, Nero é querido pelo povo. Ele se empenha em dar migalhas aos pobres, pão e circo que os deixam contentes. Terrível um líder que compra sua popularidade com pequenos subornos se valendo de um povo humilde, civilizações mais avançadas se referirão a Roma com vergonha por conta deste suborno estatal vexatório. Em todo caso, essa disposição em fornecer circo ao povo poderia ser revertida a nosso favor: uma peça que pudesse entreter e distrair a população seria muito bem remunerada. Só era preciso ter cuidado para não tocar em algum assunto que ofendesse Nero e, graças a seu passado duvidoso, praticamente tudo ofenderia. Teríamos que ser criativos, inventivos, caso contrário acabaríamos mortos. O que esperar de um homem cujo assessor se chama Burro?

Decidimos ousar, para não correr o risco de que Nero se sinta alfinetado, optamos por criar uma obra teatral para ser encenada mesclando fantasia e realidade, burlesco e drama, tendo o absurdo como limite, em uma obra visivelmente ficcional com a qual ele jamais poderia se identificar, portanto, se ofender. Usamos como inspiração a história de vida do maluco da cidade onde nascemos, uma figura popular cuja vida, devidamente maquiada, parecia divertida.

O infeliz se chamava Jesus, um nome bastante comum na nossa cidade. Jesus teve o infortúnio de nascer bastardo. Sua mãe se casou com o idiota da cidade, um rapaz com sérios problemas de atraso mental chamado José. Ela trabalhava em um prostíbulo e um dia o pai de José o levou até lá para que ele tenha sua primeira (e provavelmente única) experiência sexual. José se encantou com a moça, que se chamava Maria, e para ver seu filho feliz, o pai de José ofereceu uma pequena fortuna a Maria para que se case com ele e o atenda com exclusividade. Ocorre que meses depois o pai de Maria morreu e ela e José se encontraram em necessidades financeiras. Assim, Maria teve que passar a atender antigos clientes, em sua própria casa, enquanto José dormia. Acabou engravidando de um deles, conhecido como Alicantus.

Não era prudente falar em adultério, pois duas das esposas de Nero eram casadas quando ele iniciou o relacionamento. Ele poderia se sentir ofendido ou pior, poderia achar que estávamos chamando suas esposas de prostitutas. A história tinha que ficar menos perigosa para nós e mais palatável para o povo. De prostituta, Maria passou a ser uma mulher virgem. Em vez de receber homens no meio da madrugada em sua casa, recebeu a visita de um anjo. Sua gravidez não seria fruto de traição e sim de milagre. Chegamos a nos perguntar se não seria fantasioso demais, mas Somirius me convenceu a manter essa nova versão alegando que uma peça teatral deve ter algum conteúdo mágico para prender o espectador.

Pois bem, se Maria engravidou virgem, por um milagre, começamos a pensar quem seria o pai. Infelizmente todas as opções poderiam ofender Nero de alguma forma, pois ele transitou por todo tipo de relação adúltera, incestuosa ou bestial. Somirius se perguntava com quem Nero ainda não havia feito sexo, na esperança de encontrar uma solução para nosso roteiro, e eu, brincando, respondi que apenas com Deus. Para minha surpresa, ele se levantou e gritou “GENIAL!” e começou a escrever. Jesus seria filho de Deus, concebido por um milagre anunciado por um anjo no ventre de uma mulher casada porém virgem. Mas, para a história dar certo, era necessária uma ressalva: era filho do Deus dos JUDEUS, pois um romano se sentiria insultado em se ver retratado acreditando em um absurdo desses. Os idiotas que acreditariam nisso seriam judeus, inclusive Jesus. Para Nero, ofender judeus era um plus, principalmente depois da revolta judaica. Vespasiano se encarregou de consolidar esta inimizade, que perdura até então. Essa alfinetada agradaria nosso imperador

Na verdade, o Jesus que conhecemos nasceu um pouco prejudicado, pois sua mãe, Maria, bebia em excesso e fez uso de ervas estranhas durante a gestação. Jesus definitivamente não era normal: ouvia vozes, se sentia perseguido, tinha surtos de agressividade e nenhum senso de repressão. Uma vez o flagramos comendo seus próprios excrementos em praça pública, enquanto cantava e dançava. Jesus percorria toda a cidade de cuecas gritando um misto de pregações e impropérios, até que Maria o encontrava e o levava para casa à força, muitas vezes usando de violência. Acredito que todas aquelas pancadas na cabeça tenham contribuído para piorar seu estado, pois alguns meses depois ele começou a aparecer em público usando fraldas.

Ahhh… aquele adulto usando fraldas, como era engraçado! Implorei para Somirius manter esta informação na nossa obra, mas ele disse que seria incompatível um herói usando fraldas. Devo confessar que por um capricho pessoal meu solicitei que ele fosse desenhado com uma fralda no cartaz que ilustra a peça. Somirius só descobriria às vésperas da estréia e não poderia fazer nada para modificá-lo. Não que o Romano Médio vá reparar, mas foi divertido. Espero sinceramente que essa imagem se torne popular: Jesus exposto em seu pior momento de humilhação, crucificado, todo arrebentado e de fraldas. Mau gosto? Certamente, mas é isso que chama o povão.

Bem, como Jesus precisava virar um herói e não um idiota com problemas mentais, seria adequado colocá-lo fazendo um discurso atraente. Foi quando surgiu a dúvida: o que seria um discurso atraente na cabeça do Romano Médio? Fomos às ruas perguntar o que o povo gostaria de ouvir. A reação foi surpreendente: as pessoas estavam muito sozinhas, precisavam de um amigo, de um apoio, de uma muleta emocional que os eximisse de responsabilidade por seus erros. Era preciso encontrar alguém para conversar, para desabafar, para se sentir amparado. Somirius sugeriu um grande dragão para ser o fiel companheiro de Jesus, mas eu tenho uma forte implicância com répteis e me recusei.

Novamente estávamos cerceados pelo temor a Nero. Esse amigo que acompanhava Jesus poderia denotar uma conspiração: um vizinho, um professor, um mendigo que fosse, Nero poderia visualizar uma conspiração judaica ali. Pensamos em colocar como amigo um cão, afinal é notório que qualquer personagem com um cão angaria simpatia. Mas os baixos recursos orçamentários da peça nos obrigaram a ser inventivos: Jesus teria um amigo imaginário que seria seu próprio pai, o Deus dos Judeus, que falaria com ele e estaria sempre com ele onde quer que ele fosse. Assim, só precisaríamos fazer a voz desse Deus atrás das cortinas, não seria necessário contratar mais um ator.

Na história real, Jesus vagava sujo e de fraldas gritando suas insanidades pelas ruas. Não era um maluco perigoso, era quase que o mascote da cidade. Um pouco por pena, um pouco por conveniência, ele era mantido por perto, afinal, quando há um maluco com alto grau de loucura como referência, a loucura do resto dos habitantes era ofuscada. Tudo ia bem, até que um dia passaram pela cidade um importante governador romano e sua esposa, Maria Madalena. Ela desconhecia o fato de Jesus ser um louco varrido e de alguma forma se encantou pelo seu discurso, que ela julgou ter caráter poético. Aparentemente as damas da alta sociedade tem um estranho fascínio por esse tipo de poeta/maluco/pregador. Uma falha grave da sociedade romana, que espero que futuras gerações consigam superar. Obviamente, como em qualquer cidade pequena, não foi possível manter segredo e o governador descobriu o caso. Contribuiu para isso o fato de Jesus ter ficado na porta da hospedagem deles gritando o nome de Maria Madalena e fazendo movimento copulatórios. Foi condenado à morte.

Não seria inteligente colocar um político poderoso em uma situação humilhante na nossa peça de teatro, todos sabemos de onde vem o dinheiro que financia as artes. Aliás, esta é outra falha grave da sociedade romana: a política interfere diretamente nas artes, selecionando o que pode e o que não pode ser dito de acordo com seus interesses e patrocinando aquilo que lhe convém. Espero que no futuro gerações mais evoluídas repudiem esse tipo de coisa. Fato é que um governador não poderia ser apresentado como corno. Jesus teria que ser condenado à morte por algum motivo que não desabone a honra de um governador.

O inimigo do meu inimigo é meu amigo. Era hora de bater em alguém que Nero desgostasse. Era hora de bater nos judeus. Os judeus condenariam Jesus à morte. Era preciso pintá-los como egoístas, intolerantes, mesquinhos e violentos. Em contrapartida, Jesus deveria ser bondoso, generoso e altruísta. Regra básica de qualquer roteiro: o público deve simpatizar com o protagonista e odiar o antagonista. Partindo deste esqueleto básico, era preciso construir uma história detalhada onde Jesus fosse apenas bondade e os judeus os vilões. E também era preciso inserir algum alívio cômico na peça, pois o Romano Médio tem a concentração de um peixinho dourado, não suporta por muito tempo uma história séria. Não seria problema, partindo dessa história-base poderíamos criar qualquer coisa, afinal, Jesus tinha poderes mágicos. E debochar de judeus era sempre muito bem visto, era preciso colocar Jesus em situações ridículas.

Olhei para Somirius e ele roncava com a cabeça encostada na mesa. Era hora de parar, amanhã continuaremos a escrever e terminaremos a peça. Tendo em mãos a história básica não será difícil inserir piadas e um final bem popular. Sim, nossa peça é medíocre mas será um sucesso, pois tem os ingredientes que o povo quer ver. Não duvido nada que nossa peça sobreviva ao longo das décadas e seja encenada por gerações, afinal, ela tem todo tipo de porcaria mentirosa e alienante que o povão gosta. Vamos ficar ricos…

Para dizer que desejaremos nunca ter escrito algo com apelo tão popular, para pedir que disponibilizemos um roteiro contando a história original de Jesus ou ainda para avisar que a coisa vai pegar fogo: Saella Somirius, casa 4, ao lado da amoreira.

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