Semana Anta: Entregando para os céus.

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Semana Anta 2014: estamos no ano 64; Somirius e Saella são os escritores da combalida e endividada Companhia de Teatro “Roma Imperial do Desfavor”. Inspirados pelas lendas sobre um maluco judeu, os dois escrevem uma comédia com resultados trágicos.

Roma, 18 de Julho de 64 – Noite

Eu conhecia Saella o suficiente para prever a espécie de impropério que sairia de seus lábios nos segundos seguintes. Chame de instinto de preservação, chame de covardia…

“Inacreditável!” – Disse confiante. Saella hesitou em sua provável ofensa o tempo suficiente para acenar a cabeça em concordância comigo, esperando ansiosa minhas próximas palavras. Uma nota desafinada trouxe a melodia da lira de Nero a uma parada brusca. As lanças aproximaram-se de nossas cabeças.

“Inacreditável a genialidade de seu plano, grande imperador! Perdoe-nos a estupefação, pois somos meros plebeus diante da nobreza de tais estratagemas. Mas é claro! Roma não é digna de sua grandiosidade, deve ser reconstruída. E se ferirmos alguns judeus nesse processo, ainda melhor!” – A expressão de Saella reduz-se ao desapontamento. Com um suspiro contido, passa-me a segurança de que percebera a gravidade da situação na qual nos encontrávamos. Resignada, sorri e acompanha minha falsa expressão de encantamento.

Nero, notório ególatra, acende-se feito uma fogueira. Rosto ruborizado pelas minhas palavras elogiosas; dedilha seu instrumento musical mais uma vez e começa a se aproximar de nós, queixo erguido e olhar perdido em seu próprio senso de importância exacerbada. Com um suave acenar, faz com que todas as lanças se afastem de nossas já suadas frontes.

“Eu sabia que vocês dois tinham algo de especial. Não sei se vocês sabem, mas eu também tenho algumas habilidades artísticas… Já escrevi vários poemas…” – Nero abria sua guarda feito uma criança esperando aprovação dos pais. O caminho mais curto para angariar simpatia de um arremedo de artista feito Nero era fazê-lo sentir-se parte de nosso clube. Saella me olhava de forma desconfiada, como se estivesse fazendo senso de alguma coisa.

“A modéstia não lhe cabe, César. Todos os apreciadores da boa arte conhecem as obras que tão generosamente divide com seu povo.” – Saella abaixa a cabeça em reverência. Não consigo conter o sorriso. Estávamos enxergando as mesmas coisas ao mesmo tempo. Continuo a sessão de lisonjeiros mencionando um dos terríveis poemas que o imperador insistia em recitar em suas aparições públicas. Saella completa minhas frases, demonstrando inequivocadamente que nós dois éramos conhecedores da obra de Nero. Mal sabia ele que recitávamos esse e outros em tom de escárnio nas nossas reuniões da RID.

Roma queimava lá fora, conversávamos com o homem mais poderoso da face da Terra como se fôssemos velhos amigos. Faminto por reconhecimento de sua veia artística, Nero abre seu coração por algumas horas enquanto prestávamos atenção irrestrita a cada uma de suas palavras. O sol começa a nascer no horizonte quando o imperador finalmente acusa cansaço e nos convida a voltar para casa. Ou, pelo menos o que restou delas. As horas de proximidade nos concedem justamente o que queríamos: liberdade para reescrever nossa peça longe dali e sem supervisão da Guarda Pretoriana.

Roma, 19 de Julho de 64 – Manhã

A casa de Saella ficava num dos distritos mais atingidos. O meu resistira bem melhor ao incêndio, decidimos buscar refúgio por lá. Não trocamos uma palavra no caminho por precaução, mas ambos sorríamos de forma satisfeita o caminho todo. Já dentro da minha casa, quebro o silêncio:

“Nero quer uma versão da peça em forma de relatório”

“Mas não precisa ser a única versão…” – Saella responde.

“Os judeus podem muito bem receber uma versão especial…” – Sorrio.

“Uma que torne o maluco em emissário dos céus, um mártir contra os ricos e poderosos…” – Saella se apronta na mesa, molhando a ponta da pena.

“Alguém que inflame aqueles párias e faça renascer em seus corações a crença que são sim o povo escolhido… Um símbolo.” – Faço o mesmo.

O sono e a fumaça invadindo minha casa de tempos em tempos não é suficiente para controlar nossa sanha de reescrever a história. Nero podia ser poderoso demais para receber uma vingança direta por nossa parte, mas se fosse algoz de um grupo poderoso e organizado, sua memória seria enlameada pela eternidade. A relação que mantinha com a parcela mais pobre da população estremeceria caso a Judéia se transformasse em território revolto e fossem obrigados a se juntar ao exército, generais e governadores locais com mais material humano por causa dos esforços militares poderiam se encher da coragem necessária para disputar o trono.

Revezamo-nos nas versões. Ora eu escrevia pedaços do relatório feito para culpar os cristãos, ora a versão fantasiosa e elogiosa para com o insano Jesus. Cunhamos várias frases de efeito, tocando o coração de possíveis leitores como se fosse uma lira. As piadas baratas tornaram-se em metáforas profundas e demonstrações explícitas de poder divino. Saella e eu ríamos enquanto comparávamos as duas versões, debochando dos incautos que tomassem tanto uma quanto outra como verdade.

Sugeri esticar bastante toda aquela parte sobre as torturas para gerar ainda mais identificação com as condições terríveis de vida dos judeus, Saella concordou e adicionou um foco especial na crucificação. Contestei inicialmente, já que era uma punição extremamente banal. Quando ela mencionou o potencial para transformar aquilo num símbolo, fui arrebatado: imaginamos milhares de cristãos usando cruzes como amuletos, com a estúpida ideia de que sofrimento enobrece alimentando as chamas de sua revolta contra o governo romano.

Acredito que nunca escrevemos tanto, tão rápido. Foi apenas a falta de tinta que nos apontou a hora de terminar as duas versões.

Roma, 19 de Julho de 64 – Noite

Sabendo o que aconteceria nos dias seguintes, corri até o prostíbulo em busca do velho Pedro. Pedro, um dos malucos que acompanharam Jesus durante sua vida, desgostoso com o pouco alcance da religião que tentava alavancar, decidira passar sua velhice entre vinhos e vadias nos distritos pobres de Roma. Como esperado, ele estava por lá.

Após alguma dificuldade de tirá-lo dos braços de uma das infestadas trabalhadoras locais, apresentei-o os nossos escritos. Evidentemente, a versão fantástica e açucarada sobre a vida de Cristo. Pedro chorou após a leitura. Disse que aquilo era perfeito! Auto-denominado bispo da Igreja de Roma, tinha extrema dificuldade de defender os ensinamentos de um homem que frequentemente não concatenava duas frases sem babar.

Pedi para que fizesse várias cópias e mandasse várias para a terra dos judeus. Ele até tentou me vender uma participação na sua instituição, mas convenhamos: a chance dessa tal de Igreja de Roma amealhar alguma riqueza é basicamente nula! Pedro teria que inverter completamente sua visão sobre diversão e sexo para ser vendável para esse povinho masoquista e hipócrita que parecia mais avesso aos deuses romanos. De qualquer forma, o que me importava de verdade estava prometido. Na manhã seguinte cópias desse material já estavam seguindo rumo à Judéia.

Recebido com impaciência por Saella, disse que nosso plano já havia começado e que deveríamos descansar antes de entregar a versão de Nero, pela manhã.

Roma, 20 de Julho de 64

Dia proveitoso. Nero encantou-se pela nossa versão. Mantivemos a estratégia de afagar seu ego artístico, até conseguindo que ele desse suporte para vários dos desabrigados por seu incêndio criminoso. Tudo sob a ideia de que o povo precisava de um teto e pão para poder apreciar suas longas e pouco inspiradas composições de lira. Saella pegou gosto pela capacidade de influenciar o imperador, empurrando até mesmo um plano de reconstrução da cidade muito mais inteligente do que “palácios para Nero”, como originalmente pensado.

Agora, nossa maior vitória foi convencê-lo a suprimir nossos nomes do documento final, alegando que espiões não podem ser revelados. Nero mesmo assinara o relato, provavelmente sem ler mais do que algumas linhas… Ansioso pelo reconhecimento por um texto extremamente mais complexo que suas infantilóides poesias, Nero não percebera que assumir o texto era basicamente como assumir que estava acobertando ele mesmo a culpa pelo incêndio. Ele estava pedindo para ser odiado pelos cristãos ao mesmo tempo que mantinha sobre si a maior parte das suspeitas pelo incêndio. Um homem pode até ser conquistado pelo estômago, mas a ruína sempre passa pelo ego.

Roma, 21 de Dezembro de 64

A proximidade com o imperador nos custara caro: ele assumira a direção de nossa companhia e dava ideias cada vez piores para nossas peças. Sem ninguém para lhe dizer a verdade, os fracassos recorrentes de público começavam a fazê-lo voltar sua atenção para nós. Levamos a culpa e acabamos demitidos de nossa própria criação, ainda mais depois de um surto de honestidade de Saella.

Não a culpo. Precisávamos mesmo de novos ares e a frustração de ter um chefe incompetente estava nos consumindo a criatividade. Saímos de Roma a toque de caixa, deixando para trás quase todas nossas posses. Mas deixamos por lá uma certeza: a de que Nero pagaria ainda em vida pelo incêndio… pela nossa companhia e mais do que tudo… pela MINHA BIGA!

Roma, 10 de Junho de 68

Os cristãos sofreram, os judeus rebelaram-se, guerras e revoltas desenrolaram-se por toda Roma. Mas Nero não está mais entre nós. Morto feito gado pelas mãos de seu secretário, assustado com o império em chamas que fora incapaz de controlar. O conhecimento do agora ex-imperador foi essencial para fazê-lo afogar-se em sua própria paranoia e insegurança.

Vespasiano ganhou imenso poder controlando uma zona de guerra na Judéia, guerra criada por um senso de orgulho popular inédito entre os judeus e os cristãos. Apostamos nele (e inclusive passamos algumas informações privilegiadas) para cobiçar o trono e marchar até Roma com o intuito de trazer a cabeça de Nero num espeto, mas achamos que um suicídio covarde também se presta a terminar essa história numa nota positiva.

Saella e eu retornamos à capital, bolsos pesados pelas “ajudas” angariadas durante nosso exílio em território judeu. Vamos recriar nossa companhia e também distribuir boletins de notícias e opiniões entre o povo, de graça. Além de não querer que tiranos feito Nero continuem tendo reino livre contra nós, os plebeus, ainda precisamos derrubar um pouco a popularidade da história de Jesus. Temos impressão que ela está ganhando mais e mais seguidores a cada dia, inclusive entre quem nunca sequer botou os pés onde ele viveu. Principalmente por causa da versão de Pedro sobre nossa história.

Temos a impressão de que no final das contas, entregar o texto para Pedro foi o nosso maior crime…

Para dizer que a semana foi bem menos herege do que você esperava (o diabo está, como sempre, nos detalhes), para perguntar se o final foi feliz, ou mesmo para dizer que muito ajuda quem não atrapalha: Somirius Silvus, última casa na rua da Igreja de Roma (antigo prostíbulo).

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Comments (9)

  • Em meus 45 anos recém completos, nunca tive uma semana santa tão… emocionante!
    A-DO-REI!!!
    Até toparia voltar a assistir tv se fosse por vcs!
    beijossssssssssssss

    • Lela, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que alguém nos colocar como roteiristas de programa de TV, mas fiquei muito feliz com o elogio!

  • Diabus Trollus

    A heresia foi na medida certa, apesar de eu preferir a programação normal, talvez porque em semana temática não tem tiro porrada e bomba nos comentários.
    Ainda mais porque o texto é de época e Saella e Somirius morreram antes de eu nascer, então não poderiam interagir nos comentários.

  • Somirius e Saella,
    Gostei muito dessa semana temática (muito mesmo) e quero deixar registrado isso. Espero que o baixo movimento em responder suas cartas não os desmotivem para outras.

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