Semana Anta: Fogo amigo.

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Semana Anta 2014: estamos no ano 64; Somirius e Saella são os escritores da combalida e endividada Companhia de Teatro “Roma Imperial do Desfavor”. Inspirados pelas lendas sobre um maluco judeu, os dois escrevem uma comédia com resultados trágicos.

Roma, 18 de Julho de 64 – Manhã

Chegou o grande dia. Após uma calorosa recepção por parte de Nero, a peça finalmente vai estrear. Confesso que estava com medo, pois Nero andava mal humorado, contrariado, por causa de uma reforma que pretende fazer na arquitetura de Roma, que não está saindo como planejado. Parece que desalojar as famílias de seus imóveis e mantê-las em abrigos provisórios enquanto estes são reformados custaria muito caro. Ele passou a semana toda esbravejando a respeito em público. Mas, por sorte, seu mau humor não afetou nossa peça, ela foi aprovada e elogiada. Agradou tanto que estreará hoje no Circo Máximo, esperamos lotação esgotada.

O curioso é que Nero deseja nos conhecer. Nunca tive notícias deste tipo de deferência, isso pode ser considerado uma honra! Devemos de fato ter escrito uma obra muito boa, pois recebemos uma mensagem com um pedido para não sair da cidade, pois ainda hoje seus guardas virão nos buscar e nos escoltarão à sua presença. Seremos elogiados pelo Imperador pessoalmente! Pode até soar presunçoso, mas acho que nossos nomes estão prestes a entrar para a história. Finalmente seremos reconhecidos, finalmente não se apropriarão do nosso trabalho sem os devidos créditos!

Após tanto prestígio, nos sentimos confortáveis para ousar ainda mais na peça e inserimos algumas das cenas que haviam sido cortadas por temor de que o estilo não agrade. Por exemplo, uma cena onde Jesus leva alguns homens a uma praia deserta e pede que amem uns aos outros, com demonstrações vívidas desse amor. Achamos que poderia ser considerado inapropriado ou vulgar, mas depois de constatar que estávamos no caminho certo, nos sentimos confortáveis para aprofundar o que já havia sido escrito.

Também inserimos na trama uma questão social grave: o alcoolismo. Em determinado momento Jesus se torna uma alcoólatra contumaz e passa a usar seus poderes, que a princípio seriam utilizados para fazer o bem, para transformar água em vinho e se embriagar de forma gratuita. Esperamos com isso construir uma metáfora sobre como alguns homens empenham tudo que tem de mais precioso (sua força de trabalho, seus dons) para conseguir álcool em vez de utilizar para uma causa efetivamente útil.

Agora nos resta esperar pela audiência com Nero e colher os frutos desse trabalho árduo que foi o rebaixamento intelectual ao qual nos sujeitamos. Somirius e eu já estamos planejando a destinação que daremos à fortuna que essa peça vai nos render. Pretendemos escrever um jornal provisoriamente chamado de “Desfavorum” onde faremos aquilo que realmente gostamos, transcrevendo nossos pensamentos. Em paralelo, continuaremos escrevendo peças medíocres para sustentar nossa vocação.

Roma, 18 de Julho de 64 – Tarde

Curiosamente um grupo significativo de soldados nos escoltou para o palácio de verão de Nero, localizado em Âncio. Não compreendemos porque ele se deslocara para tão longe, mas os acompanhamos. Nossa chegada foi anunciada e imediatamente fomos isolados em uma sala, onde esperamos por horas. Cansada de esperar, tentei obter informações sobre Nero do lado de fora da sala, mas a porta estava trancada. Não parecia um bom sinal.

Enquanto tentava abrir a porta, pude ouvir duas pessoas conversando. Uma delas dizia que já estava tudo pronto e a outra autorizou um comando mandando colocar em prática uma ordem de Nero. Colei o ouvido na porta e pude perceber que o que estava sendo combinado era “queimar tudo, até não sobrar nada”. Pensei que se tratava de algum escrito difamando o Imperador e continuei esperando. Mais horas se passaram e fomos levados à presença de Nero. Muito sério, ele disse que tinha uma proposta a nos fazer. Ao longe, pela janela, avistamos uma imensa nuvem de fumaça negra.

Somirius perguntou o que seria aquela fumaça e Nero respondeu com uma calma surpreendente, que Roma estava em chamas. Imediatamente exigimos voltar para a cidade, para tentar salvar os cenários, o figurino e pertences pessoais. Nero riu e disse que nada se salvaria desse incêndio. Somirius começou a perder o controle, pensando em sua biga, modelo do ano, banco de couro, que havia acabado de adquirir. Passe uma espada pela cara de Somirius, mas não mexa com sua biga! Aquela biga era tudo para ele… passava seus dias polindo aquela porcaria. Não houve diálogo possível porque Somirius estava em estado de histeria. Nero concordou em permitir que voltemos para tentar resgatar a biga, devidamente escoltados por seus soldados.

No caminho de volta, fui conversando com um dos soldados da escolta, Amarildus. Amarildus parecia visivelmente contrariado. Começou a falar que não compactuava com uma série de coisas que Nero fazia e que não iria aceitar algumas atitudes. Adverti a Amarildus que se ele não tolerasse alguns abusos, acabaria morto. Ele não parecia ter medo. Ele me perguntou se eu não achava muita coincidência um incêndio destruir Roma justamente no momento em que Nero estava querendo reformar a cidade toda. De fato era realmente suspeito.

Mas a certeza veio quando ele nos informou da versão oficial que seria divulgada para a causa do incêndio: famílias que moravam em casas de madeira e faziam fogo para se aquecer acabaram incendiando as casas. Aquilo era simplesmente impossível, pois o caloroso verão romano jamais justificaria que algum ser vivo precise de fogo para se aquecer. Como sempre, Nero tentando colocar a culpa no próprio povo! Algo de estranho estava acontecendo. Somirius estava alheio a tudo, repetindo incessantemente a frase “Minha biga! Minha biga!”. Não conseguia pensar em mais nada.

Quando nos aproximamos é que pude perceber a dimensão do incêndio. A cidade estava literalmente em chamas. Perguntei a Amarildus onde estava o Imperador em um momento onde seu povo precisava dele, e ele me respondeu que Nero havia solicitado ser conduzido de volta ao palácio. Não conseguimos chegar até nossas casas por causa da cortina de fumaça negra. Os poucos que não morreram sufocados e conseguiam fugir, passavam por nós e eu os inquiria.

Os depoimentos foram unânimes em dizer que o incêndio foi propositado e teria começado, pasmem, no Circo Máximo. Todo nosso trabalho estava perdido: cenários, figurino e até mesmo aquele simpático bebê que havíamos deixado em uma jaula para interpretar Jesus quando criança. Seria constrangedor explicar o ocorrido para sua mãe, que gentilmente cedeu a criança para peça em troca de uma garrafa de vinho. A desconfiança plantada por Amarildus começava a ganhar força. Disposta a descobrir o que estava acontecendo, comecei a interpelar as pessoas que passavam por nós.

Soube que havia um número imenso de mortos, não tantos queimados, a maioria mortos por inalar a fumaça. Muitos ao constatarem a morte de suas famílias preferiram se suicidar do que fugir. Como sempre, Nero não deu a menor assistência a seu povo, sua escolta foi toda utilizada para jogar baldes de água no palácio e assim impedir que as chamas cheguem até lá. A segurança pública deficiente fez com que muitas famílias não consigam apagar o fogo em suas casas porque bandidos os impediam, interessados em saquear as casas abandonadas. Pessoas morreram pisoteadas pela falta de organização, pessoas morreram tentando salvar entes queridos pela falta de assistência. Uma verdadeira vergonha!

Quando tudo já fazia sentido para mim, pude avistar uma cena que me chocou: do alto do seu palácio, Nero tocava lira. A cidade em chamas, e ele indiferente tocava lira. Comentei o absurdo com Amarildus e lamentei que o incêndio tenha ocorrido justamente antes da estreia da peça. Para minha surpresa ele me disse que não haveria peça alguma, que isso já havia sido decidido. Em choque, afirmei que a peça havia sido confirmada, aprovada pelo Imperador e Amarildus riu. Ele me perguntou: “Você ainda não sabe o que vão fazer com a sua peça?”. Confusa, respondi que não, ao que outro membro da escolta se aproximou e o ameaçou.

Ele ordenou que Amarildus se cale e me disse que Nero não estava no palácio e sim combatendo o incêndio bravamente ao lado do povo. Calei-me, porque apesar de ter visto Nero no telhado de seu palácio poucos segundos atrás, sei que quem contraria a escolta de Nero aparece morto. Mas Amarildus não se calou, ele disse que contaria o que Nero havia planejado para nossa peça, pois desta vez ele havia ido longe demais matando centenas de inocentes. Amarildus foi tirado dali à força pela escolta, antes que pudesse falar, e nunca mais foi visto.

Somirius queria entrar no meio da fumaça preta, mesmo tendo a clara noção do número de mortos. Por sorte a escolta de Nero não permitiu. Ainda assim, ele passou um bom tempo tentando entrar e gritando “MINHA BIGA! MINHA BIGA!” insensível aos mortos e feridos. Um novo membro da escolta chegou e ordenou aos demais que nos conduzissem à presença de Nero. Somirius foi conduzido mediante agressão física. Verdade seja dita, a agressão física partiu de mim, que estava cansada de ter que lidar sozinha com aquela situação suspeita enquanto ele só pensava em sua biga.

Roma, 18 de Julho de 64 – Noite

Fomos conduzidos até o palácio e acomodados em sua porção mais alta, em uma grande varanda. Em pouco tempo, chega Nero, com sua lira nas mãos. Somirius e eu ficamos de pé, sem saber o que esperar. Nero então começou um discurso assustador que nos deixou atônitos. Em um primeiro momento, nos parabenizou pela obra e disse que ela era boa demais para ser usada em uma simples peça teatral. Por um momento, não compreendemos bem o que ele estava querendo dizer e, devo confessar, era melhor não compreender.

Nero não parecia preocupado em ocultar a verdade ou minimizar os fatos. Não parecia ter medo de que nós repetíssemos aquilo que estava sendo dito e nos lembrava o tempo todo de que morreríamos se não fizéssemos o que ele estava “sugerindo”. Foi uma conversa permeada por aquele gesto de mão cortando a garganta. Nero começou dizendo que a cidade precisava de uma reforma, mas que por questões burocráticas essa reforma estava se tornando inviável. O tempo todo deixava claro que era “para o bem de Roma” e que essa reforma deixaria “um legado” para o povo.

Nero já tinha em mente promover algum evento que pudesse agilizar essa reforma, mas ainda não sabia como fazê-lo sem que o povo se voltasse contra ele. Aparentemente Nero era burro, e todos aqueles que o assessoravam também, sabe como é, burros se cercam de pessoas burras. Ao ler a nossa peça, Nero vislumbrou uma maneira de acelerar a tão sonhada reforma na cidade: provocaria um incêndio que destruiria Roma e depois colocaria a culpa nos cristãos, alegando que aqueles escritos eram, na verdade, informações colhidas por espiões romanos. Somirius e eu nos olhamos atônitos. Quem em sã consciência acreditaria que aqueles absurdos que escrevemos eram verdade? Aparentemente, o Romano Médio.

Nero informou que, “pelo bem de Roma”, incendiara Roma e que nós deveríamos silenciar a respeito da elaboração dessa peça teatral. Mais: ele só nos manteve vivos por uma razão: não poderia apresentar um escrito em formato de roteiro como sendo um documento de espionagem. Nero queria que elaboremos a mesma história, mas no formato de relatórios de espionagem em vez de um roteiro de teatro. Isso mesmo, ele queria que transformássemos nossos escritos em documentos oficiais, adaptando a partir do roteiro teatral.

Para piorar a situação, informou que como a peça não seria encenada, e portanto, não renderia lucro de público pagante, nossa remuneração seria menor. Complementou dizendo que de certa forma nosso pagamento seria até maior, pois nos daria a dádiva da vida. Finalizou dizendo que caso não aceitássemos seria muito triste, fazendo o gesto de um dedo cortando o pescoço.

Somirius e eu nos entreolhamos. Depois olhamos para Roma, muitos metros abaixo de onde estávamos, queimando sem parar. Aquele incêndio duraria dias. Boa parte da população morreria. Nero conseguiria finalmente fazer sua tão sonhada reforma, com um orçamento bem acima dos gastos reais, embolsando rios de dinheiro e deixando um “legado” inútil para o povo de Roma.

Nero estalou os dedos. Imediatamente sua escolta nos cercou, apontando suas lanças. Nero voltou a tocar sua lira por alguns minutos, depois voltou-se para nós e disse: “Então, Senhores, qual é a sua resposta?”

Para fazer algum trocadilho envolvendo fogo, para se arrepender do final que escolheu na segunda ou para reclamar que semana temática é chata: Saella, encurralada no palácio, possivelmente morta.

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Comments (12)

      • Dá pra tentar fazer uma negociação.. vocês não tem garantia que Nero não os matará caso algo dê errado e descubram a verdade.. Só não consigo pensar numa história linear..

  • Estimada Saella

    Se o Louco assim deseja, que seja feito.
    Sugiro incluir mais elementos fantasiosos nesta estória.
    Um ou outro cidadão menos imbecilizado irá notar o absurdo da coisa.
    Algo como carruagens de fogo, homens que passam 7 dias dentro da barriga de um peixe, senhores que se deitam com empregadas como se nada, valentões que viram fracotes quando tem seu cabelo cortado e outras fantasias que sua imaginação ditar.

    • Achei de muita valia as sugestões, apesar de que um tanto quanto absurdas. Vamos considerar inseri-las caso aceitemos o projeto

    • Não, não, deve ser um mal entendido. Não faria sentido após séculos de evolução que os políticos continuem se portando desta forma…

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