Semana Anta: Judéia desvairada.

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Semana Anta 2014: estamos no ano 64; Somirius e Saella são os escritores da combalida e endividada Companhia de Teatro “Roma Imperial do Desfavor”. Inspirados pelas lendas sobre um maluco judeu, os dois escrevem uma comédia com resultados trágicos.

Roma, 13 de Julho de 64.

Em primeiro lugar, não sei por que tanto segredo. A maioria desse povo não sabe nem ler, incluindo aí uma parcela considerável dos assessores de Nero. E mesmo que tivessem a capacidade de ler, dificilmente teriam a inclinação de largar suas putas e taças o tempo suficiente para ler quatro rolos de pergaminhos. O único perigo é quando esses imbecis escutarem a história falada, e de preferência acompanhada por atuações bem explícitas dos atores da companhia. E mesmo assim…

Pois bem. Foi por esse motivo mesmo que mandei uma versão resumida da história para o palácio de Nero. Percebi que o atraso na aprovação estava sendo causado pela recusa daquele bando de degenerados de ler a peça por completo. A preocupação de vocês… quem estou enganando? A preocupação de Saella (que anda se achando filha de Minerva ultimamente) com essa versão é infundada. Coloquei todos os pontos importantes no resumo e posso provar repetindo o que enviei. Transcrevo aqui a versão que Nero recebeu.

Nascera em Belém um menino diferente. O deus dos judeus desceu à terra de seus pobres súditos com uma ideia na cabeça e fogo no ventre! Como quase todos os homens podem testemunhar, a cabeça que pensa não entra em acordo com a que age. O homem que pensa por baixo não consegue se elevar além do próprio umbigo.

Aqui um ator fantasiado de deus dos judeus ergue um pedaço de pau por debaixo das vestes e começa a correr atrás de nossa bela atriz Kelleah (que mandou beijos para vocês do palácio, por sinal). As crianças vão adorar!

Decidido a fazer um herdeiro, mas ainda inocente nas artes do amor, o deus dos judeus enamora-se por uma mulher recém-casada. O nome dela é Maria, esposa do incauto José. E qual a prova da inocência do deus dos judeus, vocês me perguntam? Oras, não é que ele queria uma concepção imaculada? Resta-nos a dizer por aqui não havia mais a barreira desejada na relação. O deus deles não é muito afeito ao amor e não sabia o que acontece na noite de núpcias. Tem muito a aprender com Dionísio, não é mesmo?

Aqui nós jogamos algumas taças de vinho na plateia. Vai ser um sucesso!

Teimoso feito um burro o deus dos judeus decide refazer a virgindade de sua escolhida, convencendo assim o esposo que não seria uma traição! Cada povo tem os deuses que merece, não? Porém, o plano não ocorre sem seus problemas: talvez na sanha de garantir a relação sagrada, reforça demais a proteção de Maria!

Essa é para fazer todo mundo rir muito: nosso ator vestido de deus dos judeus vai bater o mesmo pedaço de madeira contra uma capa de couro segura por três anões. E mesmo assim não vai conseguir perfurá-la!

Desgostoso com seu excesso de zelo pela pureza de Maria, o deus dos judeus pede ajuda para um de seus servos, um escravo mouro de quase uma vara de altura para varar o couro sagrado! Gabrel tem o instrumento ideal para a missão.

Eu já vi os ensaios, e quando Gabrel (é o nome dele mesmo, não sei se ele entende nossa língua e achei melhor manter) corre atrás de Maria com um enorme pedaço de tronco de madeira escura, ninguém consegue ficar sério.

Ainda atônito pela esposa dolorida, o judeu José pede para que seu deus recupere a pureza de sua esposa. Não é atendido, o deus dos judeus diz que depois de Gabrel seu filho sairia com muito mais facilidade. Mesmo se fossem gêmeos! Ai ai ai!

O tempo passa, José e Maria aceitam sua sina ainda na miséria. Aparentemente quando se tem filhos com o deus dos judeus não se recebe muito em troca. Deve ser costume. As estações passam até que uma estrela anuncia a chegada da criança. Num celeiro longe de tudo, com o feno como testemunha, nasce o filho do deus dos judeus sob o incrivelmente original nome de Jesus.

Nessa cena, aparecem mais três homens que também se chamavam Jesus para dar presentes para a criança. Confesso que o humor desta cena é um pouco mais sutil e talvez alteremos alguns detalhes no futuro.

A notícia se espalha feito fogo no mato seco. O deus dos judeus fez um filho! E não pagou o dote! Claramente nascia um herói para aquele povo. O menino leva uma vida comum, sem grandes sinais de sua herança divina. O deus dos judeus havia pegado gosto por outra atividade que ocupara sua atenção.

O ator do deus dos judeus volta para o palco, correndo atrás da bela Kelleah novamente com um pedaço de pau por baixo das vestes. Ah sim, ela disse que tem um presente para Nero se ele aprovar a peça. Não sei o que é, ela disse que só entregaria pessoalmente…

Quando finalmente se lembra que seu filho vivia a vida de um bastardo, o deus dos judeus decide que é hora de torná-lo num emissário de seus poderes. Mas sendo o deus dos judeus, a validade desses poderes era no mínimo duvidosa.

Aqui as melhores cenas de toda a peça: Jesus dá de cara com um camelo raivoso numa de suas viagens, interpretado por um ator vestindo uma cabeça de camelo. Jesus sai correndo tão rápido que nem percebe que está passando por cima de um rio! Tão rápido que é como se andasse por cima da água. Assim que se cansa, o messias judeu afunda e tem que esperar até o camelo dormir para poder sair da água.

Logo depois ele se mete numa grande confusão depois de mexer com a esposa de um vendedor de peixes. O marido enfurecido o persegue pelas ruas da cidade numa carroça carregada dos frutos de sua pesca, até que Jesus entra numa casa com as portas abertas e o pescador força os cavalos a parar para não bater, jogando todos os peixes em cima do judeu! A cena com Jesus coberto de peixes no meio do que agora descobriram ser um velório é um dos melhores momentos de nosso ator principal!

Ainda tem a cena em que Jesus descobre que o cego da vila na verdade enxergava muito bem. O cego pede uma moeda para um nobre local e é atendido; após a partida do nobre, Jesus recolhe sorrateiramente a moeda e acaba atacado pela bengala! Judeus, não?

E quando ele se perde no deserto? O calor o faz ter várias visões inusitadas, falando bobagens e tentando agarrar mulheres que não existem! O pessoal do figurino criou uma fantasia vermelha com pequenos chifres para uma dessas visões que está de morrer de rir. Por algum motivo eu acho que vão falar dela por muito tempo ainda.

A minha preferida: Um safado chamado Lázaro se engraça com a jovem Maria Madalena, pela qual Jesus se apaixonara (sem saber que ela era mulher da vida – outra cena muito boa). Enfurecido, o messias judeu acampa diante da casa de Lázaro para ensinar-lhe uma lição. Durante quatro dias ele espera. Até que finalmente Lázaro sai… carregado por familiares. Morto! Jesus desconfia e começa a espetá-lo para ter certeza. Quando finalmente vai espetar as partes pudentas de Lázaro, este levanta berrando “Milagre, milagre”! Diante da reação efusiva da multidão, o messias judeu fica sem alternativas a não se aceitar que fora passado para trás! A cara que ele faz!

Temos mais várias dessas cenas, apenas esperando a aprovação de vocês no roteiro original para serem mostradas para o povo romano. Preparem o pão, pois nós traremos o circo!

Abençoado em confusões, Jesus ganha cada vez mais seguidores. Seu discurso sedutor arrebata multidões de judeus, carentes de melhores exemplos divinos. Doze apóstolos percorrem a Judéia junto com seu messias, vivendo grandes aventuras.

Cena incrível: Doze atores com pedaços de pau debaixo das roupas correndo para todos os lados, uns atrás dos outros, com mulheres, anões e jumentos ocupando todo o palco. Perdoem-me a falta de modéstia, mas esta pode muito bem ser nossa grande obra!

Mas os dias de alegria de Jesus estavam contados. Suas falas inflamadas contra o acúmulo de riquezas incomodavam cada vez mais seus conterrâneos. Principalmente porque o filho do deus dos judeus e seus companheiros alegres cobravam preços cada vez maiores pelos seus supostos milagres. Evidente que não chamavam de pagamento… chamavam de ajuda.

Ajuda aqui, ajuda ali… Ajudas e mais ajudas, nenhuma delas declarada para nós, os romanos, donos por justiça daquela terra seca e esturricada. Os outros judeus – obrigados a pagar sua parcela para manter a prosperidade regional – não gostavam nada nisso. Nem um pouco. Jesus e seus companheiros acabaram denunciados pelo seu próprio povo. E como gastavam quase tudo com diversões mundanas e fartas ceias, foram pegos com apenas 30 moedas de prata não declaradas! Jesus acabou traído pelas ajudas por apenas 30 moedas de prata, pensem nisso.

Caso não tenha a honra de ter esta carta lida por Nero em pessoa, favor informá-lo que vamos dar muita atenção às penalidades sofridas por quem não paga seus impostos. Oferecemos entretenimento passando boas mensagens, certo?

Traído por seu povo e nas mãos dos poderosos romanos, Jesus é torturado por vários dias e finalmente colocado numa cruz.

Pensando nas crianças, colocamos uma série de cenas bem sanguinolentas no final da peça. Nunca tínhamos percebido como a cruz faz uma cena tão dramática até vermos os ensaios da peça. Com certeza vai passar uma mensagem bem forte para quem quer que esteja pensando em enganar nosso querido César.

Mas o deus dos judeus não se dá por vencido tão facilmente. Jesus é colocado morto numa caverna, apenas para recuperar miraculosamente sua vida três dias depois! E antes de deixar nossas terras, ele faz uma ameaça: Ele voltará para julgar as pessoas e o mundo queimará sob sua ira!

Chamamos vários cuspidores de fogo para o palco no final. O ator que interpreta Jesus ri de forma maníaca! Esperamos assustar todos para enfraquecer ainda mais o já anêmico suporte à sua causa. Podem apostar que ninguém mais vai querer se denominar cristão depois de nossa peça.

Espero que esta humilde tragicomédia os agrade. Estamos esperando a aprovação do Imperador para começar a produzi-la o quanto antes. Esperamos estar prontos para exibi-la dia 18 de Julho, se, é claro, César assim o quiser.

Tudo bem, eu entendo que possa ter exagerado um pouco em mostrar só as partes engraçadas e inflamatórias contras judeus e cristãos nesse resumo, mas nós vamos montar o texto completo com toda a baboseira sentimental para o carente romano médio. Ter duas versões só nos traz vantagens! E nós vamos ter o controle sobre quem escuta qual, certo?

Reitero: vocês se preocupam demais. Roma não foi construída num dia, Roma não vai ser destruída num dia. Tudo é um processo. Aposto que a versão curta passará rapidamente pelos censores de Nero – e cá entre nós, muito brega isso de querer ser chamado de César como título, espero que não pegue – e daqui a poucos dias estaremos escrevendo história com a lenda do judeu maluco.

O que pode dar errado?

Para dizer que achou o humor raso e chulo (oras, é o que o povo gosta), para dizer que fica muito confuso com tanta coisa acontecendo, ou mesmo para dizer que precisa de uma ajudas: Somirius Silvus, última casa da rua do prostíbulo (antes era um vomitório, melhorou!).

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Comments (4)

  • Prezado amigo Somirius

    Para suas próximas versões, sugiro incluir uma parábola sobre uma possível prole deixada pelo Judeu maluco. Sabe como é. Aquele pessoal da Galiléia adora uma fofoca.

    De quebra ainda fornece um pequeno incentivo para que os romanos passem a dar cabo dos pequenos coquinhos adornados por kipás. Quase posso ouvir as gargalhadas de Nero, delirantes de extâse com esta ideia.

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