Desfavor Explica: Contando histórias.

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Não importa quem você seja, qual sua ocupação ou qual a sua classe social, se você for humano, saber contar uma boa história é fundamental: seja para convencer um juiz, seja para colocar sua filha para dormir, seja para divertir os amigos ou até para se promover de uma forma sutil. Saber contar uma história, saber deixa-la mais divertida, dramática ou palatável te abre muitas portas na vida. E é sobre isso que vamos falar hoje. Desfavor Explica : contando uma boa história.

Desde os temos das cavernas o ser humano conta histórias. Não necessariamente por diversão, mas como forma de transmitir conhecimento. Quando não havia escrita, contar uma boa história era a forma mais eficiente de transmitir conhecimento. O conhecimento puro, abstrato, pode ser chato e difícil de fixar. Mas o conhecimento inserido em uma boa história se fixa para sempre na sua cabeça. Tem uma frase de Benjamin Franklin que eu sempre tinha em mente antes de dar qualquer aula: “Fale-me e eu esquecerei. Ensine-me e eu poderei lembrar. Envolva-me e eu aprenderei”. Não tem melhor forma de transmitir conhecimento do que uma boa história.

Assim, nossos ancestrais contavam histórias com lições importantes que eram lembradas e contadas a seus filhos e aos filhos dos seus filhos: Fulano comeu tal fruta e morreu envenenado no meio de uma aventura muito divertida, por exemplo. Era a forma mais didática de mandar crianças não comerem aquela fruta. Quem tem filhos sabe que muitas vezes uma historinha vale mais do que uma ordem ou proibição. Graças a essa “tradição”, somos criaturas com cérebro equipado e propenso para ouvir histórias: só os que prestavam atenção sobreviviam.

Todo mundo sabe o tamanho da encrenca se você for levar doces para a vovozinha e desobedecer as orientações da sua mãe. Graças a Chapeuzinho Vermelho essa ideia de que desobedecer pode custar caro se fixa na mente. Todo mundo sabe que a raposa desenhou as uvas dizendo que estavam verdes porque no fundo não conseguia alcança-las (bisavô do “é a inveja”). Estas e muitas outras informações entram no inconsciente coletivo através de histórias repetidas ao longo dos séculos. Hoje, mesmo com escrita, com internet, o gosto por histórias (ainda) não desapareceu. Há quem diga ser um resquício ancestral e há quem diga que estimular nossas emoções ativaria um centro de recompensa no cérebro. O fato é que todos nós sabemos reconhecer uma boa história, mesmo sem entender exatamente porque. Daí você deve estar se perguntando como isso pode ser usado para te beneficiar. Vamos lá.

Se você quer que alguém acredite que você é uma boa pessoa, não adianta se aproximar e dizer “Oi, eu sou uma boa pessoa”. Fica artificial. O ser humano desconfia e desvaloriza tudo que lhe é dado com facilidade. Surte muito mais efeito e é muito mais sutil se você conversar e, dentro de um contexto aceitável, contar uma história sobre você, a outro pretexto, de onde se depreenda por atos seus que você é uma boa pessoa. Mas não afirmando que você é uma boa pessoa, narrando fatos ou atos de onde isso possa ser depreendido com algum esforço. Dica universal, que vale para convencer desde um juiz a uma namorada: não diga tudo, solte informações aos poucos e deixe que a pessoa pense que descobriu SOZINHA.

Qualquer ouvinte ou espectador ou leitor se sente inteligente e fica feliz quando pensa que depreendeu aquilo sozinho. O bom contador de histórias não dá o 4, ele dá o 2+2 e deixa sua audiência somar sozinha. Dar o 4 deixa a história desinteressante e tira da plateia a oportunidade de exercitar a mente e se sentir inteligente e perspicaz. Tira aquela satisfação de pensar “Ahhh! 2+2 é 4! Entendi!”. Dando apenas o 2+2 e deixando eles somarem, você agrada e muitos nem sequer percebem por quê. Quem soma o 2+2 se sente o máximo, enquanto você ri por dentro. Quando uma história sua faz a pessoa se sentir bem sobre ela mesma, ela tende a gostar de você e querer ouvir mais histórias suas. Mas tem que dar 2+2, não pode dar 87 -45 x 37 – 7%, porque se a pessoa não conseguir equacionar o resultado final, vai se sentir burra. Spoiler: cheguei a ter essa sensação em alguns Des Contos, hoje não tenho mais. Somir se corrigiu, consciente ou inconscientemente. Esse é um grande desafio: achar o 2+2 de cada ouvinte. Como fazer isso? Seguindo algumas dicas.

Quero começar dizendo que são apenas dicas. É perfeitamente possível que uma pessoa consiga contar uma boa história sem estes elementos, sem seguir estes conselhos. Mas, o texto não é para quem sabe contar uma boa história, é para quem não sabe. Para quem não quer errar ou para quem não se acha um bom contador de história estas dicas podem ser um bom ponto de partida. Nas artes, as normas foram criadas para serem desobedecidas. Aprenda bem as regras que vou passar e quando estiver craque, subverta-as para deixar tudo ainda mais interessante. Mas lembre-se: só corre quem aprendeu a andar antes.

Para contar uma boa história você tem que ter muito claro na sua cabeça exatamente o que quer contar. Se você não é uma pessoa agraciada com uma grande clareza mental e poder de síntese, é melhor que delimite fronteiras para não se perder. O erro mais comum ao contar uma história, por incrível que pareça, é se perder, divagar, fugir daquilo que é importante. Pense na história que quer contar, com início, meio e fim e resuma-a a uma frase. Isso mesmo, uma frase. É um ótimo exercício para os prolixos. Qualquer história pode ser contada em uma frase.

Quer ver? “Agente do FBI investiga serial killer e pede ajuda a psicopata canibal que está preso”. Reconheceu o Silêncio dos Inocentes? Pode me perguntar nos comentários, eu te desafio a achar uma história que eu não possa resumir em uma frase. Qualquer história tem uma essência, o esqueleto, a espinha dorsal, o que é realmente importante e vai conduzir tudo. Tenha em mente qual é o da sua. Se não tem, crie uma. Ainda está tendo dificuldade sobre a frase? Imagine que alguém ouviu sua história e quer comentar com outra pessoa sobre o que ela é: é a história de ____ . Exemplo: Noé é a história de um sujeito que constrói uma arca para salvar animais de um dilúvio. Essa frase é seu embrião. O tema da história tem que estar delimitado, e durante toda a história essa frase vai ser seu guia.

Uma história convencional consiste em um querer de um protagonista (vulgo “mocinho”), resistido pelo antagonista. O protagonista tem um objetivo a ser alcançado e algo ou alguém tenta impedi-lo. Pode ser qualquer querer, desde que isso fique bem claro para o público: salvar o mundo de um ataque alienígena ou conseguir chegar ao banheiro antes de se cagar nas calças, não importa. Importa que ele quermuito alguma coisa, e a forma como você vai narrar o sofrimento dele para obter esse querer é o que vai prender o público e determinar a grandiosidade da história, mesmo que em um primeiro momento o querer pareça bobo. Uma história bem contada te prende, te seduz, te faz torcer, independente da relevância ou da grandiosidade do querer do protagonista.

É clássico: tudo vai dar errado para o protagonista, capitaneado pelo antagonista. No final a história fecha com ele conseguindo (final feliz) ou não (final infeliz) o seu objetivo. Imagine a história como uma trilha que vai subindo, subindo, até se alcançar um topo. É assim que ela tem que ser contada, sempre para cima, sempre aumentando de intensidade e sempre conduzindo o protagonista para esse topo onde ele quer chegar. Essa é a típica história que seduz nossos cérebros. Outras também o fazem, mas são mais difíceis de contar. Se você está começando, vai nessa que não tem erro.

Quanto mais forte for o querer do protagonista, mais emocionante a história. E quanto mais compreensível for a oposição do antagonista, mais complexa e humana ela fica. Esse querer do protagonista pode ser potencializado por alguns fatores que ajudam a intensificar a história, como o fator temporal (se não conseguir desarmar a bomba em uma hora, ela explode), pelo risco de vida de alguém (se não pagar o sequestro até o fim do dia a vítima será executada) ou por qualquer outro fator que majore os danos de não alcançar o objetivo. Isso cria uma tensão que faz seu ouvinte “se viciar” na história. Abuse de recursos que potencializam as consequências e os temores, porém sempre contando uma história crível.

Exemplo prático: não se conta para um juiz que um menino roubou porque queria comprar um tênis da moda, isso não comove. Se conta de uma forma que o juiz perceba sozinho (2+2) que ele precisava pagar uma dívida com o tráfico até o final do dia, se não seria morto. Ou então que precisava desse dinheiro por um motivo muito forte e justificável que faria qualquer pessoa perder a cabeça: comprar remédios para uma mãe doente, comprar comida para seu filho, etc. Vejam que assim como o querer do protagonista, o motivo que o leva a querer também é muito importante. E ambos tem que ficar claros para quem ouve a história.

É fundamental fazer com que gostem do seu protagonista. Para isso, até hoje eu não descobri nada mais eficiente do que a identificação. Pessoas que gostam de animais torcerão com mais afinco por um protagonista que goste de animais. Então, foca no teu público: juiz, namorada, mãe, amigo, professor… dá uma estudada no perfil de quem você quer convencer e faz do protagonista da tua história alguém com muitos pontos em comum com essa pessoa. Mas novamente, olha o 2+2, não diga abertamente, MOSTRE. Uma fala, um olhar, uma camiseta, um gesto. Algo que cause um estalo de identificação.

E você tem que fazer com que as pessoas gostem do protagonista logo no começo da sua história, porque ser humano quando pega birra é teimoso. Abra sua história, seja ela para distrair, enganar, convencer ou brincar, sempre tentando dar um 2+2 que faça com que o espectador se identifique com o protagonista, o admire. Só assim vão torcer por ele. E sempre saiba qual vai ser o final que você vai dar para esse grande querer do seu protagonista. Contar uma história deixando para decidir o desfecho só no final é coisa para gente muito profissional. Sabendo qual vai ser o seu final, você pode espalhar pequenas informações, pequenos easter eggs ao longo da história que serão compreendidos no desfecho. Isso faz o cérebro humano soltar fogos de artifício. Nos tranquiliza, nos desperta uma sensação de recompensa ligar os pontos e tudo se encaixar. Ordem no caos é o orgasmo cerebral.

Uma história fica mais palatável para o grande público se existir apenas um protagonista (mocinho) e um antagonista (vilão). E fica mais rica se o mocinho não é apenas o bonzinho e o vilão apenas o malvado. Ambos devem ter lados bons e ruins e fortes motivos para se portarem assim. Não é a bondade que vai determinar quem é o seu mocinho, e sim a forma como você vai contar a história, de quem você vai querer que o ouvinte goste. O mocinho é aquele para o qual todo mundo torce. Dexter, por exemplo, era um psicopata assassino e torturador, mas era um protagonista e todo mundo torcia por ele. Isso porque a forma como foi contada a história nos fez gostar dele. Uma exata mesma história pode ser contada sem mudar um único fato, onde somente pela narrativa você inverte protagonista e antagonista. Por sinal, o primeiro texto que Somir e eu escrevemos consistia justamente em brincar com isso: uma mesma história onde se invertiam protagonista e antagonista segundo quem contava. Estava no Orkut, nem sei se ainda existe.

Um mocinho perfeitinho e um bandido malvadão compõe basicamente uma história ruim. Hoje se considera inclusive um erro de escrita quando é feito por profissionais. Observem que em muitas novelas globais os vilões acabaram sendo mais populares do que os mocinhos: Nazaré, Carminha, Félix e tantos outros. Erro grave cometido por quem insiste na fórmula mocinho bom, vilão malvado. Nunca façam do mocinho de vocês um bonzinho, quanto mais camadas, quanto mais complexo, quanto mais humano, melhor. Ainda assim, pode acontecer de um vilão roubar a cena. Aconteceu comigo: muitas pessoas torcem pelo Alicate no meu “Siago Tomir”, saiu do meu controle. É preciso ter cuidado, o vilão pode se tornar muito atraente, porque ele pode tudo, não tem limites.

Regra geral: o protagonista tem que ter inúmeras dificuldades, tem que passar por muito perrengue, até o desfecho da história. Se ele consegue o que quer de forma fácil, a história não nos ensina nada. Lembram da questão evolutiva? O grande barato que uma história causa no nosso cérebro é que a gente pode aprender valiosas lições sem precisar passar por aquele estresse todo que o protagonista está passando (acidente de avião, prédio em chamas, sequestro, etc), aprendemos apenas observando-o, sem precisar colocar nossas vidas em risco. Então, maltrate sem dó seu protagonista, tudo tem que dar muito errado para ele, e ele tem que aprender com os erros, pois se ele aprende, quem o assiste também aprende e o cérebro envia um sinal de recompensa e bate palminhas.

Em determinado momento a história tem que se resolver. Finais abertos como o do filme “Origens” podem ser geniais, mas o que o cérebro basicão gosta mesmo é de um bom esclarecimento. Então, a menos que você esteja lidando com uma pessoa muito sofisticada, deixe claro o final – o que não quer dizer que ele precise ser feliz. No final explícito, há apenas dois caminhos possíveis: o protagonista consegue aquele seu objetivo (final feliz) ou não consegue (final infeliz). E quando o consegue, tem que ser por mérito próprio. Imagina quão frustrante seria se naquela luta entre Luke Skywalker e Darth Vader o Darth Vader morresse do coração sem a necessidade do Luke lutar com ele e derrota-lo! Não pode. O protagonista, quando vence, vence às custas de muito esforço. Não porque gostemos de sofrer, mas porque aprendemos lições sobre como superar alguns obstáculos que podem nunca acontecer, mas que agradam a um cérebro que veio moldado em uma época onde quanto mais se sabia, mais se sobrevivia.

Depois que o mocinho consegue ou não aquele seu querer que é a base da história, a história acaba. Não invente, não enrole. Pode até dar uma arrematada, mas coisa muito rápida, para não tirar o impacto do final. Se não o cérebro sente que começou uma nova história e se decepciona por ela não ter continuidade. Receitinha de bolo para iniciantes: Protagonista quer alguma coisa (e porque o quer) + antagonista tenta impedir (e porque o faz) + protagonista passa muito sufoco para conseguir seu objetivo e tudo dá errado + grande embate final entre protagonista e antagonista + desfecho claro especificando se protagonista conseguiu ou não seu querer. E toda e qualquer informação, diálogo ou descrição tem que ser fundamental para a história. Muita gente erra ao rechear a história de coisas desnecessárias. Não concorre para o objetivo do protagonista? Não serve para “empurrar a trama” para frente? Corta. Nada mais chato do que gente que não sabe contar uma história por excesso de informação e que se perde no meio dela.

Depois que você fizer isso muito bem feito, pode começar a brincar, a subverter. Mas, para começar, faça o básico.

Não deu? Ainda está confuso? Aqui vai uma dica ainda mais básica. Decida sobre o que quer falar e traduza isso em uma frase. Exemplo: Alicate é um babaca. Beleza. Agora você vai sentar e escrever quatro parágrafos: O primeiro abre apresentando a ideia inicial, sem qualquer argumentação, dizendo apenas que o Alicate é um babaca. O segundo começa a explicar porque ele é um babaca (narra as imbecilidades que ele faz, por exemplo). O terceiro acompanha o segundo, mas em um tom crescente (conta histórias piores, questiona seu caráter, fala que cometeu crimes). O quarto faz uma junção de tudo que foi dito e fecha com a mesma premissa do primeiro: “Diante de tanta falta de caráter, crimes, desconsideração, egoísmo e burrice, fica óbvio que o Alicate é um babaca”. Não tem erro, segue isso que você não vai se perder e vai proporcionar uma leitura agradável. Não enrole, nenhuma informação que não sirva para convencer de que o ALICATE É UM BABACA deve ser inserida pois distrai o leitor e faz você de perder.

– PLUS –

Um exemplo prático de tudo que foi falado até aqui. Peguei um Siago Tomir, que, para quem é leitor, é uma história conhecida. Vamos trabalhar com este episódio clássico que quem acompanha o Desfavor certamente conhece: Siago Tomir: O espancador de cães.

Descrevendo o episódio em uma frase: “Tomir adquire um cachorro de temperamento difícil e, por não conseguir educa-lo e ele se transforma em um problema”. Contou a essência da história.

A versão detalhada: “Por uma questão de segurança, Tomir decide comprar um cachorro, mas escolhe uma raça difícil de lidar. Inexperiente, ele não consegue disciplinar o cachorro e o animal sai do controle, chegando a colocar em risco sua vida. Sua namorada, preocupada com a situação, acaba matando o animal”. Pegou um esqueleto e recheou, já sabendo o final, o que permite fazer aquele afago mental que a gente conversou, de plantar dicas que serão compreendidas ao final.

E quem é o protagonista: Siago Tomir. Vamos descobrindo aos poucos quem ele é por seus atos. Ele escolhe um filhote que claramente é problemático, ele se recusa a ouvir conselhos, ele vai dando indícios através de atos, ninguém narra dizendo que ele é assim, assim assado e por isso o cachorro é um mal educado. Mostrar é melhor do que descrever. As atitudes de Siago Tomir mostram seu perfil. A gente gosta dele logo de cara, pois quem de nós nunca tomou uma decisão errada, não agiu por impulso? Siago Tomir não estava mal intencionado, ele apenas desconhecia e teimava. Ele se colocou em uma situação de se apegar a um cachorro que acabou se tornando um perigo para ele. O antagonista, Satanás, também tem seus motivos. Ele não é um cachorro escroto qualquer, que sai mordendo. Houve um forte motivo para ele chegar a esse ponto, que foram os erros de Siago Tomir.

O querer: O querer de Siago Tomir é ter um cachorro bacana sem precisar ter o trabalho de educa-lo. O querer de Satanás é matar Siago Tomir. Spoiler: quase sempre os quereres de Siago Tomir são irracionais, impossíveis ou nocivos para ele mesmo. Isso permite que se faça uma pequena jogada, um bug mental, jogando um final infeliz que na verdade é feliz. Eu não escrevo para brasileiro médio, posso fazer uma gracinha dessas. Ainda assim, ainda com um querer pouco razoável, muita gente sempre torce para ele. Tudo é a forma como se apresenta o personagem. Somos todos manipuláveis. Teve quem torça para que todo mundo consiga fugir do dono da Julieta, teve quem torça para que o Somir consiga fugir da ressonância magnética… enfim, quereres que são irracionais, mas quando você se afeiçoa ao personagem, é manipulado a torcer por ele.

A trama: Não se falou se ele tinha que cortar as unhas ou não. Não se falou se ele estava com problemas no trabalho. Tudo que é colocado ali empurra a trama para frente, que é a situação insustentável com Satanás, que culmina na sua morte. A história está sequinha, enxuta: fala só sobre fatos relacionados à relação entreSiagoTomir e Satanás e mostra, de forma crescente, os problemas aumentando em intensidade, até que a história se resolve. O protagonista passa por maus momentos e ao final aprende algo.

O final: O final é infeliz, não porque o cachorro morre (em “Cujo” o cachorro morre e é um final feliz!), mas sim porque o protagonista não conseguiu seu grande querer. Mas observem que muitos sentirão alívio neste final, pois apesar de ser infeliz para o protagonista, quem tem cérebro sabe que foi melhor para ele. Isso acontece porque o protagonista é meio sem noção e vive se metendo em encrenca, logo, o seu querer é sempre meio truncado. É uma assinatura minha que geralmente está presente nos SiagoTomir, uma ironia para que as pessoas desapeguem da ideia de final feliz (essa porra de “e viveram felizes para sempre” é um veneno) e percebam, de alguma forma, mesmo que sem querer, que um final infeliz pode, olhando de forma mais ampla, ser melhor e até implicar em um final maior e feliz.

A transformação: O protagonista se transforma depois de passar por muito sufoco, ele aprende algo, e a gente aprende junto com ele: cães precisam ser educados, e não na base da violência. Cães dão trabalho. Cães podem se voltar contra seus donos. Não se briga com um cão por algo que ele fez horas atrás porque ele não vai entender,etc, etc. Siago Tomir muda, passa a criar apenas gatos.

Para fechar o texto de hoje, quero dizer que tudo que eu disse aqui se aplica à vida profissional, pessoal e a entretenimento. Seja em uma reunião de negócios onde você quer vender um produto, seja em um julgamento, seja na hora de botar seu filho para dormir: o cérebro humano gosta de colocar ordem no caos. Apresente algo confuso, fora de ordem, prolixo e seu interlocutor vai perder o interesse. Apresente algo redondinho, crescente e nesses moldes e veja as pessoas serem seduzidas. Façam o teste em qualquer área e eu lhes garanto que vocês vão sentir a diferença. Vocês serão melhor ouvidos e passarão melhor uma mensagem se contarem bem uma história. O mundo mudou muito nos últimos séculos, mas essa é uma coisa que não muda: o ser humano adora uma boa história e se rende a ela.

Para dizer que eu quebrei seu brinquedo e que agora vai ficar analisando friamente tudo quanto é história, para dizer que eu sou burra de não escrever um livro de autoajuda sobre “O poder de contar uma história” em vez de jogar isso de graça aqui ou ainda para imaginar que espetáculo devo ser eu contando uma história para uma criança dormir: sally@desfavor.com

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Comments (59)

  • Mesmo que o querer do protagonista estiver relacionado com sua propria morte? Imagina se o bixo voasse na jugular…Para mim, o final foi feliz por ele se manter vivo. Sobre a criacao de personagens, já tentei aquele metodo de usar pessoas reais, mudando o nome…mas daí surge o problema do enredo. Admiro quem consegue criar uma historia interessante. Sim, Sally, ótima sugestão. Vou estudar um pouco de psicologia.

    • O final é feliz ou infeliz de acordo com o querer do personagem. Olha um exemplo: Thelma & Loise. Qual é o querer das protagonistas? Fugir daquelas rotina chata, fugir da polícia, fugir de um marido chato. Elas conseguem? Sim. Mas morrem. Porém escolhem se matar, concordam em se matar. Protagonista morre e é final feliz.

  • Mesmo que o querer do protagonista estiver relacionado com sua propria morte? Imagina se o bixo voasse na jugular…Para mim, o final foi feliz por ele se manter vivo. Sobre a criacao de personagens, já tentei aquele metodo de usar pessoas reais, mudando o nome…mas daí surge o problema do enredo. Admiro quem consegue criar uma historia interessante.

    • Sim, uma história onde o querer do protagonista é se matar, tem final feliz se ele consegue e final infeliz se ele não consegue. O problema é: como fazer o público torcer por um protagonista maluco que quer se matar? Identificação, dando um bom motivo: coloca uma doença terminal degenerativa no protagonista e faz ele discursas dizendo que quer se matar para ter uma morte digna, que não quer ficar entrevado, etc, etc. Se você não der ao público um motivo muito forte e muito compreensível para que o querer do protagonista seja a morte, eles não vão se envolver com a história nem torcer por ele.

      TUDO é como se apresenta o personagem. Apresente da forma certa, justifique de forma plausível seu querer e o público torce a favor de qualquer coisa.

  • Sempre tive muita dificuldade pra criar personagens, enredo. No entanto, sou um prolixo dialoguista (acabei de criar esta palavra), tenho inclinação para o roteiro. Discordo que o final do Siago Tomir foi infeliz. A menos que o dono de Satanás fosse o Alicate.

    • Sabe o que ajuda na criação de personagens? Estudar um pouco de psicologia. Coisa básica mesmo. Eu reparei que os livros de ficção escritos por psicólogos tem personagens maravilhosos, complexos, contraditórios, humanos e fascinantes. Eles conhecem a essência do ser humano. Vale a pena dar uma olhada.

      Porque você acha que a morte do cão amado por Siago Tomir, do qual ele não queria se desfazer por nada no mundo é um final feliz? O conflito da história era eu não querendo Satanás e ele querendo. O grande querer do protagonista era ficar com seu cachorro. Só não é final infeliz se você me exergar como protagonista…

  • É Sally… eu até já sabia dessas estratégias de montagem de roteiros, mas confesso: acho que não sou lá bom contador de histórias por não treinar isso e também por me faltar lá certa criatividade. Meu negócio é mais criticar mesmo! E sair por aí analisando toda estrutura e bla bla bla das entrelinhas!

    No mais, interessante o que tu falou no começo do texto: realmente, desde tempos imemoriais nosso cérebro funciona baseado em memorização e repetição, e o contar de histórias serve como uma boa ferramenta para aprendizado e transmissão de conhecimento. Isso me lembra em certo aspecto a tradição oral que é extremamente forte no contexto da África até hoje!

    • Não, não. Roteiro o buraco é bem mais embaixo. A gente teria que falar na Jornada do Herói, em Plot Point e em outras coisas bem mais complexas. Se fizer um roteiro só com o que eu falei fica uma merda. Isso só serve para contar uma historinha e envolver o espectador…

  • Outra coisa… Enquanto lia o texto, lembrei do seriado “Revenge”. Seriado envolvente, personagens geniais, complexos. Tá na terceira temporada ainda. Fica a dica pros impopulares. Adoraria discutir sobre com você, Sally, e com os respectivos impopulares.

  • Eu tô confuso… tema bastante complexo. Eu li Hemingway, um livro que tratava de relacionamentos humanos e da vida boêmia da geração entre guerra… não me envolveu, acho que pelo cenário de touradas da Espanha… Isso quer dizer que o “2+2” dele é diferente do meu?

    • Geralmente o erro quando um texto não te envolve é no protagonista. Ele não conseguiu fazer você gostar do protagonista. Um exemplo: mesmo com um roteiro merdalhoca, as últimas temporadas de Dexter bombaram de audiência, porque a gente já estava apaixonado por ele e torcia por ele de qualquer maneira. O protagonista ou então o querer daquele protagonista devem ter falhado de alguma forma…

  • ana_unesp85@hotmail.com

    Sally, você já reparou como novelas mexicanas têm essa definição bem clara de mocinho e bandido? Não sei se ainda é assim, mas lá pelas anos 80-90 era bem óbvio quem era o mocinho (bonzinho) e quem era o bandido (malvadão). Praticamente não existiam personagens mais profundos que eram uma mistura heterogenia de todas as facetas humanas.
    A mocinha era sempre pobre de marré marré, linda, chorona, de caráter incontestável, injustiçada, etc etc. Ah, e virgem, claroooo.
    O bandido era sempre rico, mau, infeliz, com alguma doença incurável e cretino.
    Novelas em geral são assim, mas acho que as mexicanas são mais homogenias.

  • … por isso sempre desconfiei/desgostei de quem conta muita história. Faz sentido numa perspectiva ruim da coisa. O excesso de ruído sempre causa um efeito não esperado.

    • É prática, é treino. É como musculação cerebral: no começo você consegue pouca coisa, mas com o tempo vai ficando mais forte e conseguindo cada vez mais.

    • Fugi errado, consegui ir para um lugar pior ainda. Agora só vou para baixo, cada vez mais para baixo, até chegar em Buenos Aires.

  • Texto interessante. É para incentivar o pessoal a escrever para o Desfavor Convidado?
    Campanha: Sally para roteirista.

    • Sally está tentando, mas está muito difícil, pois Sally não tem conhecidos na área. Sally aceita indicações…

  • Eu já tive uma professora de redação que ela explicava mais ou menos desse jeito, só que com os exemplos daqui ficou muito mais fácil de entender.

    • Agora que você falou, último parágrafo antes do plus me lembrou redações do primário. Tinha que fazer um esboço com frase chave, frase de apoio 1, frase de apoio 2 e conclusão. Ou seja, início, meio, clímax e fim.

      • Essa é a base. Depois que aprender a base muito bem e estiver craque, pode escaralhar tudo que fica interessante, tipo o filme “Amnésia”. Mas, para correr é preciso aprender a andar, e muita gente acha que sabe andar mas não sabe.

    • Testa nelas: conta uma história inventada aleatória e outra pensando nos critérios que eu disse aqui. Vê qual elas gostam mais.

      Criança = cobaia. Tem coisas que você só vê no Desfavor.

          • O meu avô ateu era muito doido. Sempre que ele ficava com a gente, adorava debochar da gibíblia nos contanto as estórias. Ele perguntava pra mim e meu irmão se a gente queria ouvir estória de comédia, de terror, de drama e não importava o que a gente escolhia lá vinha ele sempre com o mesmo livro. Depois que fui perceber que era a bíblia e que ele zoava todas com as mitologias que o povo acredita. Era muito engraçado, eu me amarrava quando era pirralho.

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