Desfavor Convidado: Um mago sem destino. (7)

descon-magosem01

Desfavor Convidado é a coluna onde os impopulares ganham voz aqui na República Impopular. Se você quiser também ter seu texto publicado por aqui, basta enviar para desfavor@desfavor.com.
O Somir se reserva ao direito de implicar com os textos e não publicá-los. Sally promete interceder por vocês.

Desfavor Convidado: Um mago sem destino

Capítulo 3 – Flecha do tempo Parte 2

Em uma cabana no interior da Rússia, Ivo preparava tranquilamente o café da manhã enquanto admirava através da janela suas duas filhas correndo pelos campos de trigo de sua pequena propriedade. Mesmo antes do desjejum ele já bebericava um copo de vodca, pensando em como seria bom se Yelena voltasse logo do turno noturno que ela fazia no hospital local.
Enquanto pensava nisso ele ouviu baterem na porta da frente, mas não foi atender de imediato, achando que poderia ser uma visita indesejada. Bateram na porta novamente e ele soltou três palavrões antes de finalmente abrir a porta. Quem batia era Mary, assistente pessoal do patrão que o havia contratado por causa de seus antecedentes na KGB:

_Mister Crowley necessita de seus serviços. – disse Mary em russo.

Ivo voltou ao fundo da casa e chamou pelas suas filhas, que vieram imediatamente:

_Peguem o café da manhã e esperem a mamãe na casa do tio Igor. Papai volta logo. – disse Ivo, abraçando demoradamente cada uma de suas filhas. Depois ele entrou em uma depósito e saiu vestindo um avental branco de açougueiro, acompanhando Mary para o lado de fora da casa. Em um momento ele observava o conhecido interior de sua casa, mas após ela fechar e abrir a porta novamente, um longo corredor havia aparecido no lugar.

_Nunca irei me acostumar com essa porra! – exclamou Ivo, entrando no corredor. Ele esperou Mary fechar a porta e seguiram o corredor, que possuía diversas outras portas de cada lado. Ele pensava que se algum desavisado caísse ali poderia correr o risco de se perder, já que o corredor era aparentemente sem começo e sem fim. Finalmente pararam na frente de outra porta:

_É aqui. – disse Mary.

_Como você sabe? Pra mim essas portas são todas iguais. – perguntou Ivo.

_Após todo esse tempo trabalhando com a gente, achei que você tivesse aprendido a não fazer perguntas.

_Sim, senhorita.

Mary abriu a porta e eles entraram. Do outro lado estava o clube Caverna e três pessoas os esperavam, dois seguranças e um terceiro homem que Ivo desconhecia.

_Esse é Raul, Mister Crowley pediu que você apresentasse as sombras para ele. – disse Mary para o russo, que apenas concordou com a cabeça.

Ivo se aproximou de Raul e disse em um português truncado:

_Por favor, me acompanhe.

Sem muitas opções, Raul seguiu-o até o local onde as pessoas olhavam embasbacadas para um monte de sombras indefinidas.

_Normalmente o tempo é como uma flecha, que após lançada segue apenas um caminho reto. – disse Ivo olhando para as sombras. _Porém, se retirarmos o flecheiro da cena, aquela flecha lançada pode seguir em qualquer direção, pois sem uma perspectiva definida racionalmente, o tempo e o espaço se perdem no infinito.

_Eu não entendo…

_Nosso planeta é um ponto perdido no espaço-tempo, nada mais que isso. No infinito do cosmos não existe direção pra cima, pra baixo, começo ou fim. Por isso, é possível ir para o futuro ou voltar para o passado. Ir para o futuro é simples, basta uma velocidade como a da luz que o tempo correrá conforme essa velocidade. Porém, ir para o passado é mais complicado, pois precisamos de falhas temporais conhecidas como buracos de minhoca.

_Buracos de minhoca?

_Sim. No exemplo de se ir para o futuro, esse buraco é criado automaticamente pela própria máquina pertencente ao passado. Porém, para voltar ao passado, precisamos encontrar brechas. Essas brechas normalmente são objetos, pessoas, lembranças ou locais no presente, mas que pertencem ao passado. Normalmente são chamados de déjà vú, que nada mais são do que essas brechas do tempo.

_Mas o que isso tem a ver com essas sombras?

_Essas sombras são um déjà vú de todas as pessoas que entram aqui nesse clube e elas sempre revelam nossas lembranças mais amargas, nosso lado mais negro. Quando você olhar para essas sombras, quero que imagine um local, uma lembrança, uma pessoa ou um objeto atual que seja idêntico a essa mesma coisa no passado.

_Como assim?

_Pode ser qualquer coisa que não tenha mudado com o tempo, pode ser desde uma ideia da sua cabeça até a alguma coisa real. Normalmente casas não mudam com o tempo e é a maneira mais fácil de encontrar um buraco de minhoca para o passado. Por isso, sugiro que quando olhar para as sombras, imagine a casa em que morou quando era criança com o maior número de detalhes possível. Quero que você pegue objetos da casa, sinta as texturas, cheiros e assim essa lembrança irá se tornar cada vez mais real.

_E o que eu faço depois?

_Você fará o que Mister Crowley pediu e se tornará parte da Fraternidade ou…

_Ou?

_Bem, digamos apenas que não estou com esse avental de açougueiro à toa.

Desanimado, Raul se aproximou das sombras e finalmente percebeu que uma das pessoas que olhavam hipnotizados para elas era Eduardo, seu colega de trabalho. Olhando atentamente para as sombras, Raul começou a se lembrar da casa aonde morava quando sua irmã sumiu. Aos poucos as sombras foram tomando forma, virando paredes e objetos conforme a lembrança de Raul ia se fortalecendo. Raul sentiu que seu corpo se modificava, suas mãos ficavam com rugas e ele suava em bicas. Ele olhou para os lados e viu que aquilo era mais que uma lembrança, ele estava realmente na antiga casa em que morava. Raul andou pela casa e tocou em tudo o que pôde, seguindo a orientação de Ivo. Parou na frente da porta de seu antigo quarto e ouviu duas vozes vindo do outro lado. Tocou a maçaneta e percebeu que as duas vozes pararam de conversar no mesmo instante em que ele abria a porta. Do outro lado, viu sua irmã sentada diante de um Raul de 10 anos de idade:

_Olá, papai. – disseram os dois jovens.

_Samantha… – Raul olhou ao redor e compreendeu que havia voltado no tempo, mas no corpo de seu próprio pai. Adiantou-se numa tentativa de abraçar os dois, mas o telefone tocou e ele foi atender:

_Alô? – perguntou

_Olá Raul. – era a voz de Mister Crowley do outro lado.

_Olá…

_Como pode notar, a flecha do tempo tem suas, digamos… Ironias.

_Sim.

_Por isso, siga o fluxo das lembranças livremente e no final da jornada você terá que enfrentar uma difícil decisão.

_Já estou ciente disso.

_Bem, espero você do outro lado. – disse Mister Crowley, desligando o telefone.

Raul colocou o telefone no gancho e começou a seguir seu instinto para tentar sair daquela situação. Sentindo a necessidade de finalmente descobrir em que projeto secreto seu pai trabalhava, Raul procurou pela maleta que ele usava para trabalhar. Encontrou-a no fundo de um armário, abriu-a, mas todos os papéis estavam ilegíveis.

_Eu nunca li esses papéis, não fazem parte da minha lembrança. – disse para si mesmo, deduzindo o que estava acontecendo.

Raul fechou a pasta, mas continuou segurando-a e tentou sair da casa. Porém, não havia nada do lado de fora, apenas um imenso vazio aonde flutuava sua antiga casa. Então Raul forçou a sua mente para se lembrar como era o jardim que cercava a casa e aos poucos foi preenchendo aquele vazio, como um quebra-cabeças. Lembrou-se do portão de madeira que separava a casa da rua, dos muros da casa e da vizinhança ao redor. Conforme ia se lembrando, maior ia ficando o quebra-cabeças, afastando o espaço vazio. Quando se sentiu satisfeito com a quantidade de lembranças que possuía daquelas redondezas, Raul começou a andar pela rua, se lembrando do caminho que tinha percorrido até chegar ao local do sumiço de sua irmã. Começou também a se lembrar de pessoas como Frederico, o velho dono da Quitanda do Bairro e dona Isaura, a vizinha fofoqueira que vivia dando beliscões nele quando era criança. A lembrança dessas pessoas eram bem limitadas e elas ficavam sempre repetindo os mesmos gestos, como discos riscados:

_Hoje as mangas estão docinhas… Hoje as mangas estão docinhas…. Hoje as mangas estão docinhas… – falava Frederico.

_Seu menino malcriado, sua mãe deve ter morrido de desgosto… Seu menino malcriado….. – falava Dona Isaura.

Raul descobriu que também podia inventar detalhes naquela lembrança, como o cachorro cor de rosa que acabava de atravessar a rua e os pirulitos gigantes que flutuavam como balões no balcão da quitanda de Frederico. Entre lembranças e invenções, ele finalmente chegou ao local do desaparecimento de sua irmã e ficou aguardando ali, achando que em algum momento sua memória chegaria ao ponto crucial desse trauma de infância. Esperou por horas a fio e nada aconteceu, de repente ele teve um pressentimento:

_Precisa de um gatilho para a lembrança começar…

Então ele fez o caminho de volta para sua antiga casa e viu diversos carros e furgões pretos estacionados na rua. Conforme foi se aproximando, homens vestindo ternos pretos saíram dos automóveis. Um deles se aproximou e perguntou:

_Quais são as ordens senhor? Quais são as ordens senhor?

Raul deu a única resposta que acionaria o resto da lembrança:

_Nós vamos entrar.

Continua….

Chester Chenson

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas:

Comments (4)

  • Eu nem queria revelar isso, mas meu bisavô…brincadeirinha. Acabei de tomar Vodka. Nao lembro de nada, Leona. Deixa a revelação pro Chester.

Deixe um comentário para ivo Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: