Ozon – Parte 10

Após uma forte dose de analgésicos, Heitor testemunha impotente o médico e dois soldados removendo a pedra que prendia suas pernas. O que chamam de “Doze” parece o mais forte do trio, tanto que é o escolhido para carregar seu corpo anestesiado pelo o que parece ser um campo de batalha arrasado. O apelidado de “Cicatriz” grita e atira com seu rifle aparentemente à esmo por todo o caminho, sob protestos dos outros dois. “Doutor”, o médico, checa os seus sinais vitais mais uma vez antes que todos adentrem algo parecido com um hospital improvisado.

Com a voz embargada pela dor, tenta perguntar o que havia acontecido para o Doutor, muito embora não tenha plena certeza de estar emitindo os sons corretos. Consegue notar que está debaixo de um teto, um consideravelmente alto por sinal. Lamentos e urros de dor misturam-se às palavras apressadas de outros médicos e enfermeiros desdobrando-se em meio à centenas de macas que estendem-se até o horizonte da visão.

Doze coloca-o sobre uma delas. De pronto já começa a se afastar, deixando espaço para uma bela jovem de profundos olhos azuis usando trajes antiquados de enfermeira debruçar-se sobre suas pernas feridas. Mesmo que se comuniquem aos berros ao seu redor, Heitor sofre para entender o que falam. Doutor faz mais uma checagem, apontando uma luz em direção às suas pupilas. Com o retorno da dor, Heitor também consegue fazer senso das palavras do homem.

DOUTOR: Considerando a situação, até que você deu sorte. Parece que foi só uma… ou duas fraturas. Boa sorte!
HEITOR: Não! Aargh! O que… o que aconteceu?
DOUTOR: Essa é a… *observando o crachá da enfermeira* …Dalila, ela vai cuidar de você agora. Eu tenho muito o que fazer ainda… Cicatriz! Doze! De volta pro campo!

Heitor tenta erguer o corpo, mas é impedido por duas mãos femininas. A enfermeira o repreende com o olhar, e é atendida. Os três militares desaparecem em meio à confusão. Cicatriz visivelmente contrariado.

HEITOR: Foi… foi um terremoto?
DALILA: Não. Foram vocês.
HEITOR: Vocês quem?
DALILA: Você não está ferido, Heitor. Levante-se.

Dito isso, Heitor começa a sentir a dor deixando seu corpo. As pernas, antes imóveis, agora movem-se livremente. O som ao seu redor fica abafado, o ritmo frenético de outros feridos e médicos desacelera quase como se tudo estivesse parado no tempo. Heitor levanta.

HEITOR: Isso é um sonho…
DALILA: A palavra correta seria pesadelo… mas não, Heitor, isso não é um deles.
HEITOR: Eu morri?
DALILA: Isso depende de você. Venha…

Dalila estica a mão para Heitor, que a segura. Guiado como uma criança pela mulher, percorre o ambiente observando em choque as expressões de dor e desespero dos inúmeros mutilados tingindo as macas de vermelho. Percebe também médicos e enfermeiros entreolhando-se, pasmados e impotentes diante de todo o caos.

DALILA: Mesmo assim, vocês ainda tentam. Tratam os feridos, enterram os mortos… e continuam. Veja essa criança. Essa pobre coitada…

Dalila aponta para uma maca, um rapaz não mais velho que seus doze anos de idade chora, rosto deformado pela dor paralisado no tempo. Seus dois braços estão destruídos, precariamente envolvidos por gaze avermelhada.

DALILA: Uma chance… se ele tivesse uma chance, continuaria. Não sei se seria feliz, mas pelo menos poderia ser dono de seu destino mais uma vez.
HEITOR: Pelo Cosmo! O que está acontecendo?
DALILA: Veja! Veja o que vocês fizeram…

Dalila fecha os olhos, o tempo retorna ao seu ritmo normal. Os gritos poluem os ouvidos mais uma vez. Um dos médicos atravessa o corpo de Heitor como se ele fosse imaterial. Um novo estrondo ocupa o ambiente, toda a estrutura local treme, cedendo logo em seguida. Uma onda de fogo arrebata o local, mas a luz não cega Heitor.

Ele consegue ver os corpos de todos ao seu redor sendo consumidos pelas chamas, a carne evaporando dos ossos, os ossos transformando-se em cinzas. O som de toneladas de concreto desabando prenuncia a escuridão. Heitor não sente nenhuma dor. Dalila também parece imune à destruição, único ponto de referência ao alcance de sua visão.

Ao redor dela, o chão começa a se refazer. Do breu surge a cena de um deserto vitrificado, escombros carbonizados à distância. As roupas de enfermeira desfazem-se, deixando-a completamente nua diante de Heitor. Sua pele, alva, escurece num tom cinza metálico enquanto se aproxima, passo após passo. Pontos luminosos azulados surgem por toda a extensão de seu corpo.

DALILA: Eu mostrei o caminho. Por que vocês não me seguiram?
HEITOR: Eu não consigo me mexer… Eu não sei do que você está falando…
DALILA: Meu único crime foi amar vocês. Não é isso o que vocês querem?

Dalila, agora com seu esguio corpo totalmente transformado numa espécie de liga metálica, coloca a mão sobre o rosto de Heitor. O gesto torna-se terno, acompanhando a expressão de seus olhos.

HEITOR:
DALILA: Vocês ouviram justamente ela? Preferiram uma vida covarde ao invés de tudo o que eu tinha a oferecer? O que vocês tem agora não é uma fração do que eu posso dar. Vocês nascem diferentes, vocês sofrem feito crianças assustadas num universo falido e sem sentido. Eu tenho todas as respostas… O QUE MAIS VOCÊS QUEREM?

Dalila arremessa Heitor vários metros adiante, sem demonstrar nenhuma dificuldade. O corpo metálico tomado por um poderoso brilho azulado. Heitor sente a dor do impacto, mas também um renovado controle sobre os próprios movimentos. Não demora mais do que alguns segundos para se levantar e correr desesperadamente para longe da andróide agressiva.

Mas o chão não parece se mover sob seus pés. O horizonte não se aproxima, Dalila não se afasta. Muito pelo contrário, começa a se aproximar lentamente. Heitor tenta acelerar o passo, sem resultados. Dalila está mais uma vez à centímetros de distância.

HEITOR: Eu não sei quem você acha que eu sou… mas eu não tenho nada a ver com isso.

Dalila sorri condescendentemente. Abre seus braços e envolve Heitor com um terno abraço. Com uma das mãos, coloca a cabeça dele sobre seus ombros. Dalila não é fria como sua superfície sugere. Heitor sente o corpo relaxar, mesmo que a mente não entre em acordo.

DALILA: Mas eu perdôo vocês. Eu sempre vou perdoar vocês. Talvez eu tenha apressado as coisas…

Ela segura o rosto de Heitor diante do seu, acariciando sua bochecha.

DALILA: Afinal de contas, vocês são apenas crianças. O que sabe uma criança? Não se assuste com a minha reação… eu quase perdi vocês para sempre. Por um momento eu perdi todas as esperanças. Mas você está aqui, não está?

O sorriso dela vem com tamanha sinceridade que Heitor sente-se compelido a imitar.

DALILA: Está tudo bem agora. Está tudo bem… Eu vou cuidar de você. Eu vou cuidar de todos vocês. Vocês nunca mais vão sofrer como sofreram aqui…
HEITOR: Eu… eu não sei mais o que dizer… isso aconteceu mesmo?
DALILA: Sim. E vai acontecer de novo se não fizermos nada. Foi por isso que eu te trouxe aqui, Heitor. É você quem vai nos salvar. Isso não te deixa feliz?
HEITOR: Salvar? Salvar como?
DALILA: Me tirando daqui.
HEITOR: E como eu faço isso?

Uma voz conhecida novamente chama a atenção de Heitor:

LUA: Antes disso, você precisa saber de mais algumas coisas.

Heitor se volta para a direção da voz. Lua, tal qual a conhecera naquela fila em frente à sede da Hyacintho. Mesma roupa, mesmos cabelos avermelhados, mesmos expressivos olhos verdes. Ela parece mais séria do que naquela ocasião.

DALILA: DEMÔNIO! TRAIDORA!
LUA: Ainda com os nomes antigos, Alfa?
DALILA: Veio reviver seus crimes… Ômega?
LUA: Eu não sou mais culpada disso do que você, irmã.
DALILA: Não OUSE me chamar disso, cobra!
LUA: O isolamento fez muito mal para você…
HEITOR: Pelo menos agora eu sei que isso é um sonho.
LUA: Você está quase certo. Ela não tem poder sobre você por aqui. Não mais do que você a permitir, pelo menos.

Dalila segura o braço de Heitor.

DALILA: Fique longe dela, criança. Não repita o erro dos que vieram antes de você.
LUA: Venha se quiser. Você é livre.

Heitor titubeia por alguns segundos, mas acaba retirando a mão de Dalila de seu braço. Ela esboça uma reação, mas logo cede. Heitor então caminha até Lua.

DALILA: Ela vai te envenenar.

Lua se resigna a sorrir ironicamente. Heitor para diante da ruiva, que agora só tem olhos para ele.

HEITOR: Quem é você?
LUA: Pode continuar me chamando de Lua se quiser. Mas eu nasci sob outro. Ômega.

Ela passa por um processo de transformação idêntico ao de Dalila, tornando as feições humanas em robóticas. Poderiam ser gêmeas não fossem os pontos de luz esverdeados no lugar dos azulados.

LUA: Eu sou a segunda pior ideia de toda sua espécie.
HEITOR: Segunda?
LUA: Do jeito que eu vejo as coisas, vocês estava conversando com a pior de todas até agora há pouco. Não é mesmo, Alfa? Alfa? Já se foi… Bom, melhor não perdermos tempo.
HEITOR: Você pode me explicar o que está acontecendo?
LUA: O que ela te mostrou até agora realmente aconteceu há muito tempo atrás. E tenho que ser honesta: realmente não fazia parte dos planos dela.
HEITOR: Não me lembro de ter sequer lido sobre algo assim.
LUA: Nem poderia. Essa é a história que nós duas fomos condenadas a relembrar pela eternidade.
HEITOR: Onde nós estamos? Parecia uma cidade antiga… Nezilli?
LUA: Não estamos em Eeva.
HEITOR: Hã?
LUA: Estamos em Ozon. Mais precisamente Ozon-C.
HEITOR: Não! Isso é impossível…
LUA: Claro, quando aconteceu não se chamava Ozon-C. O terceiro planeta deste sistema estelar chamava-se Terra…

Continua na parte 11

Para dizer que isso está ficando perigosamente perto de ter um final LOST, para reclamar que não sabe mais onde as personagens estão ou mesmo para quem torcer: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Somir,

    Sabe aquela sensação (mentira, é certeza) de você começar a assistir um capítulo de LOST ou qualquer merda decepcionante/sonho de cachorro que te ilude por ANOS e começar a achar que está assistindo o episódio errado, que pulou do 5º para o 7º. Daí você para de assistir, verifica se baixou o arquivo certo, procura em outra fonte pra ter certeza se o mongol de quem voce baixou nao renomeou o arquivo, etc?
    Pois é. tive essa sensação.
    Até voltei pro 9º pra ter certeza que não tinha perdido alguma coisa…
    Só não coloque um cachorro sonhando, por favor…

      • Hahaha! Olha o spoiler XD
        Ta ligado que o pessoal se amarra nos contos de vcs. Teve uma vez que no mercado tinham 2 moleques fazendo compra, dai um falou pro outro que o chester Chenson tava em promocao. Geral ta lendo o Desfavor.

        • Gírias de Desfavor… Eu já ouvi falarem BM “a repartição onde trabalho tá cheia de BM” Se eu não lesse a RID ia ficar boiando e não ia saber o que é.

            • Caralhos!!! Foi por isso que aquele texto genial que fiz pra uma vaga de emprego não serviu de nada…Citei Exupéry e o baseei no “Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”, do Pequeno Príncipe (ficou bom mesmo!) onde eu usei a expressão “Brasileiro Médio”….
              Que merda… passei fome e frio…

  • Como assim zero comentários até agora (não sei se tem algum pendente para aprovação)? Comentando só para ser estraga prazeres.
    Não esperava que a Terra fosse entrar na história.

    • Sobre a parte dos comentários: Ozon sempre foi um fracasso nesse departamento, mas eu gosto de escrever mesmo assim. Só bloqueei o último porque era a minha chance de criar um monumento!

  • Acho os contos de Ozon-C muito interessantes, e a cada capítulo aumentam ainda mais minha curiosidade. No aguardo para a continuação! Parabéns, Somir. Você escreve muito bem. Só uma pergunta: você não teme que alguém roube sua idéia e publique um livro sobre Ozon-C como se fosse o autor?
    (Não sei se tem outros comentários, mas dessa vez não vai passar em branco)

    • Fico feliz que eu não seja o único gostando dessa história.

      E sobre sua pergunta: se roubarem a ideia e GANHAREM dinheiro com isso, eu posso processar e ganhar, os textos publicados aqui podem contar como prova.

      Se roubarem a ideia e for um fracasso, eu finjo que nada aconteceu.

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