Meu deus!

Quarenta e poucos bilhões de anos-luz para qualquer lado que se olhe. O senso de escala do Universo tende a pregar peças na nossa compreensão… Medidas tão superlativas e mesmo assim a primeira coisa que vem à cabeça é uma borda. Só de mencionar o tamanho de tudo já fazemos a viagem inteira: quarenta e poucos bilhões… e depois?

Vai ganhando força a ideia de que depois de nosso Universo tem outros. Hipótese pra lá de complicada de testar, mas não sem seus méritos teóricos. Alguma coisa bagunçou a expansão do cosmo, deixando-o meio… desequilibrado. Sugere-se que existam forças externas puxando e empurrando o que deveria ser a totalidade do nosso espaço.

Talvez outro “Big Bang” nas proximidades. Talvez a passagem de outro universo (foi mal, mas não nos conhecemos e não vou te chamar por nome próprio, estranho…) gerando algum atrito. Claro, talvez não seja nada parecido com isso e apenas estejamos sofrendo com a dissonância cognitiva de leis da física que não se bicam em escalas muito diferentes. Aliás, provavelmente é isso mesmo.

Mas… o “e depois?” vem tão fácil. Algumas gramas de matéria orgânica preenchendo os crânios de macacos pelados produzem em fração de segundos um modelo de realidade para o qual quarenta bilhões de anos-luz e quarenta quilômetros não parecem obstáculos tão distintos assim. Se o tamanho estimado do Universo fosse de cem bilhões de anos luz para qualquer lado que se olhe, faria tanta diferença assim para você?

Não precisamos preencher cada metro dessa distância incrível para concebê-la. E nada daquelas partes chatas do caminho onde nada além de (falso?) vácuo serve de paisagem. É só tomar um atalho até o horizonte! Nem mesmo a luz consegue aproveitar tão bem a viagem. Por motivos que ainda não compreendemos direito (matéria e energia escuras) a expansão do Universo continua acelerando além do limite de velocidade, e sem ninguém para aplicar uma multa.

O horizonte da luz fica cada vez mais distante. Nem ela consegue chegar rápido o suficiente. Com aproximados treze bilhões de anos de vida, o Universo tem um “raio” de quase noventa bilhões de anos-luz. Ficando nessa escala superlativa de tempo: em alguns bilhões de anos, boa parte do cenário estelar terá se afastado deste ponto de referência o suficiente para nem mesmo seu brilho ser captável. Se o planeta não acabar engolido por uma estrela moribunda, os resquícios queimados/congelados de nossa Terra verão um céu completamente escuro.

É tudo muito grande, e pior, tudo cada vez mais rápido! E mesmo assim, o cérebro ainda pulsa. Estale os dedos e você está novamente procurando por universos vizinhos, cabeça espetada para fora das cortinas da realidade. Imaginando como seria se um desses “irmãos” obedecesse leis físicas diferentes. O segredo está nos atalhos. Ninguém imagina o limiar do Universo, e sim uma forma (normalmente uma bola) com cores, sons, cheiros, gostos e sensações muito similares às que vivenciamos por aqui.

A ideia de que nossa imaginação realmente pode conter o todo depende mais de ignorância seletiva do que propriamente de espaço disponível. De uma certa forma, não faz diferença de verdade que “canto” do Universo você está visitando em sua mente. Todos estão mais ou menos alinhados com a localização do seu cérebro e algumas frações de segundo no passado. Ah sim, toda sua consciência tem um pequeno delay em relação à realidade ao vivo. Pode ser feito de carne, mas mesmo assim o cérebro é um processador. Informação precisa chegar e ser processada.

E por incrível que pareça, é daqui que eu começo a criar o meu deus. Ele (ou ela se você preferir) vai ser consciente, porque se não for… qual a graça de fazer um? O meu deus criou o Universo e tudo o que acontece nele faz parte de seus planos. O big bang como pincelada inicial, matéria/energia como tinta. Se você também acredita em um deus, isso deve ser muito parecido com o que você pensa, não? Mas o meu deus tem uma diferença considerável…

O tempo de resposta. Tem a ver com as escalas, mas é principalmente por causa dos objetivos de suas ações. Imagine um inseto que só ganha asas por algumas horas para se reproduzir antes de morrer: a escala na qual ele opera exige uma abordagem muito eficiente. Não há tempo de contemplar a própria existência… No tempo que você vê um filme ele tenta garantir a existência de sua espécie! Todo tipo de atalho é válido nesse caso. Qualquer coisa a mais para considerar e sua vida se esvai inutilmente.

Nós já somos um pouco mais afeitos ao desperdício de tempo de resposta. Algumas décadas não é exatamente tempo de sobra, mas para a escala de nossas ações, até que faz sentido. O impacto das ações de uma pessoa no Universo é suficientemente limitado para não precisarmos de tanta análise e compreensão do que nos cerca. Instintos e atalhos fazendo o papel de resolver nossas pendências a tempo. Você pode se dar ao luxo de perder alguns minutos lendo este texto, mas se eu estivesse te cobrando alguns anos de reflexão contínua sobre o assunto, com certeza não valeria o esforço.

Agora, imaginemos o meu deus: em sua mente está um plano que parte de partículas primordiais da matéria até seres capazes de pensar nelas! O hidrogênio teve tempo suficiente para começar a se perguntar de onde veio. Imagine a escala desse plano! Imaginou? Mentira, não dá. Você deve ter pegado alguns atalhos, ido até os limites de um universo convenientemente parecido com tudo o que já conhece e se contentado com isso. Não me excluo desse grupo: só estou imaginando o que “cabe” na minha cabeça.

Meu deus não é compreensível assim. Como ele lida com tanta coisa ao mesmo tempo – um Universo de idade bilionária e dimensões cada vez maiores – não pode desperdiçar seus ciclos de pensamento em coisas tão pequenas como… como nós. Cem mil anos de espécie, uns dez mil de sociedade… é como se uma bactéria tivesse nascido e morrido enquanto pensávamos no que comeríamos no jantar. O meu deus existe, mas ainda não teve tempo de perceber que existimos.

Se ele tivesse que falar, cada palavra demoraria alguns bilhões de anos. Cada sinapse mais longeva que a humanidade. Pudera: se seus sentidos te oferecessem informações sobre cada quark e cada quasar a cada fração infinitesimal de segundo, como manter um ritmo de resposta intelectual parecido com o humano? Aquelas gramas de carne não dariam conta de tanta coisa, o processador precisaria ser tão grande quanto… o Universo.

Entre meu deus escutar uma prece e tomar uma decisão entre atendê-la ou não, passam-se todas as vidas humanas que já existiram e quiçá todas as que existirão. Não, ele não é lento, nós é que tomamos atalhos demais. Seria como esperar que você conseguisse reagir consistentemente em relação ao movimento de um elétron. Sem contar que talvez ele nem consiga escutá-la: Informação obedece a velocidade da luz. E o Universo que se expande além de suas possibilidades na verdade não está violando lei alguma. A informação que poderia passar de um lado para o outro está ficando pelo caminho.

Se a distância entre um de seus neurônios e outro for suficiente para frustrar a transmissão de informação, é uma sinapse a menos. Novamente, não podemos culpá-lo, com certeza ele está fazendo tudo o que é possível. Mas como ele leva a sério essa coisa de “tudo”, provavelmente não dá tempo de contemplar os desejos de fenômenos tão curtos como nós. E, claro, escala: meu deus escreve certo por linhas tortas… a existência da humanidade pode ser mais importante como um todo do que as tresloucadas sinapses de seus membros. Ele tem um plano, só não cabe na nossa cabeça.

E como o horizonte foge para lugares mais inalcançáveis a cada dia, temo que meu deus esteja apenas se espreguiçando antes de voltar a dormir. Se ele precisa ser tão grande quanto o Universo para planejá-lo, é provável que a entropia sejam apenas seus músculos voltando ao estado de relaxamento. Pelo menos nesse ritmo temos mais muitos trilhões de anos até ele esteja finalmente em paz. Há vantagens em nossa escala! Imagino que o inseto que vive poucas horas não deva achar sua existência tão curta assim. Falta o referencial e a capacidade de analisar o referencial.

De qualquer jeito, eu acredito que ele esteja escutando. Mais do que isso, deve estar usando todos os sentidos que conhecemos e desconhecemos para saber se seu plano está funcionando. Não que ele vá mudar alguma coisa se não estiver, pelo menos não na escala que eu consigo compreender, mas há um alento em acreditar que tudo acontece por um motivo. E que quanto mais entendemos sobre o plano, estamos mais próximos de algo parecido com uma resposta dele.

Ei… talvez seja esse o plano! Uma resposta! Talvez meu deus seja apenas um grito vindo de fora… um convite, quem sabe? E tudo o que nos cerca sejam as vibrações desse chamado, esperando apenas por sermos capazes de gritar de volta.

Talvez… talvez sejamos mero eco. A voz da consciência reverberando pelas paredes da existência. Nós somos o Universo, a resposta… e meu deus!

Para dizer que meu texto não passou pelo seu padrão de qualidade, para tentar achar relações entre o que aconteceu ontem e hoje, ou mesmo para dizer que se não foi maconha eu preciso ir para um hospício: somir@desfavor.com

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Comments (17)

  • Texto sensacional! Nunca li algo parecido. Para um bom entendedor cristao protestante ou evangelico, apenas quatro paginas bastam para se tornar ateu.

  • Texto incrível. Conseguiu a façanha de nos fazer parecer ainda mais insignificantes do que quando comparados a todas as outras coisas no Universo conhecido (e o próprio Universo em si). E ainda assim, os religiosos ficam na arrogância de achar que se Deus existe, ele lhes é compreensível em sua totalidade, ou que se existe nós somos mais importantes do que o resto do Universo inteiro, a ponto de merecer atenção a cada hora de cada dia. Tolice.

    • Não nos esqueçamos das regras desse deus: mais de 40 bilhões de anos-luz em qualquer direção que se olhe, mas AI de quem usar um chapéu errado!

  • Exato! A expansão e contração do nosso universo (com minúscula, para ele ser colocado no seu devido lugar) nada mais são que Sued tocando sanfona.

  • Interessante, estou repassando para meus colegas. É algo que ninguém que eu conheça pense sobre.
    E já fazia um tempo que eu estava imaginando algo do gênero: e se o nosso (meu) deus fosse só nada? Alguma coisa de fato muito abstrata que não vive nem lá e nem cá? Por exemplo, existem pessoas que acreditam no destino e outras na coincidência de certos momentos na vida. E se as pessoas vissem o deus inventado com apenas estes tipos de características? Acho que toda a população católica, evangélica e a cambada toda crê em um deus de forma espírita que vive entre o ar que respiramos (aqui mesmo na atmosfera terrestre, acho que grande parte das pessoas religiosas ainda não creem em algo que não seja a própria vida), e que permaneça aqui na Terra cuidando da vida de cada um até a morte. Não sei, posso estar apenas idiotando muito :/

    Mas de qualquer forma, a ideia transmitida neste texto é ótima e eu sei que vai abrir a mente de muito “católico-não-praticante-hipócrita” que eu conheço e que precisam de certa mudança no modo de ver seu deus.

    • Inventaram o conceito de Deus e do Papai-Noel. Acharam o Papai-Noel mais interessante. Ganhar presentes tem mais graça quando os outros são punidos.

    • Não podemos esquecer do Bill Hicks e seu grande passeio.

      “Não tenham medo, a vida é só um passeio… aproveitem.”

  • Meu deus é um cientista em um laboratório avançado.

    Infelizmente ele conseguiu subverter as leis que conhecemos hoje e conseguiu um último contato com os seres criados via big bang. Disse algo como “ame uns aos outros” e “só acreditem em mim”, tentando evitar as guerras iniciais e trazer um desenvolvimento intelectual mais rápido. Infelizmente² somente umas poucas pessoas ouviram e resolveram montar uma religião.

    Isso explica muita coisa… Rs

  • A identidade de Deus com o universo físico foi apontada e discutida por Spinoza em suas discussões metafísicas. Hoje em dia tá sobrando física e faltando meta. Gostei do approach e da pegada.

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