Sem tema.

Hoje não estou disposto a seguir aquela convenção social de precisar ter um tema para escrever uma coluna. Provavelmente vai ser mais um experimento problemático, mas vou assumir o risco. Não se inova por aqui sem quebrar alguns ovos (ou ter os seus ameaçados…). Relaxe, esqueça a necessidade de depreender algum significado daqui e acompanhe-me.

O primeiro parágrafo após a introdução é onde eu normalmente tento estabelecer as premissas do texto. Mas nesse caso, não há muito sentido nisso, não? Estamos livres de tema. Bom, seja como for, não acho o fim do mundo começar um processo comunicativo sem a necessidade de defender um ponto específico.

Ainda mais considerando que hoje em dia tudo parece focado demais num público específico. Se a palavra de ordem um dia já foi agregar, agora estamos animados (até um pouco demais) com o prospecto de segregação. Pode-se até botar essa na conta da internet, com sua capacidade incomparável de apontar conteúdo para nichos cada vez mais específicos.

Temos sites e comunidades para todos os gostos. Especialistas e entusiastas se encontram e trocam figurinhas nos mais diversos campos. Tecnologias, hábitos de consumo, visões políticas, fetiches! Se você tem algum interesse, provavelmente vai encontrar material especializado depois de uma breve pesquisa que seja.

Não se pode negar que é excelente encontrar gente que gosta das mesmas coisas que a gente, ainda mais para quem viveu um pouco que seja num mundo pré-conectado. Antes disso, a não ser que você gostasse de basicamente as mesmas coisas que pessoas próximas e de sua idade gostassem, as chances de se aprofundar no assunto eram limitadas. Eu mesmo adoro que tenhamos comunidades discutindo física quântica e pornografia japonesa maluca na internet.

Não importa o seu veneno, a dose está disponível. Tudo isso muito bacana… mas sabe quando dizem que um casal problemático acaba alimentando as neuroses um do outro? A impressão que tenho é que toda essa capacidade de especialização de conteúdo tem como subproduto boa parte dos comportamentos que vivemos criticando por aqui.

Claro, não desfaço meu discurso de que falta de estudo e convivência com pessoas inteligentes motive as discussões preconceituosas, exageradas e raivosas tão comuns na internet; mas nada é tão simples assim, não? E se pudéssemos dividir um pouco dessa culpa com uma revolução da comunicação ainda não compreendida em sua totalidade?

Mesmo que o esquema subsistência básica e ostentação ainda atraia muita atenção, os nichos vão se formando – cada vez mais limitados – até para quem não passa por ‘nerd’ na sociedade atual. Não basta mais gostar de se ‘vestir bem’, por exemplo, tem que ser especialista numa marca, ou num modelo! Tem a comunidade para os fãs daquele objeto de consumo, a publicidade cria personalidades para essas pessoas e elas ‘vestem-se’ de acordo.

O que mais me interessa aqui é que nunca houve tantos tons de cinza entre gostar ou não gostar de algo, e mesmo assim só o que as pessoas enxergam é o preto e o branco. Como se seus perfis de interesses fossem feudos nos quais se protegem dos bárbaros rodeando os portões. Ter a possibilidade de refinar os próprios gostos é um dos grandes presentes da tecnologia da comunicação para o mundo moderno, mas nada vem de graça nessa vida.

Com todo mundo ‘tão perto’, é compreensível que o ser humano médio sinta uma necessidade maior de diferenciação. Gostar de uma coisa podia te diferenciar antigamente, mas hoje em dia só te coloca num grupo enorme e vocal, onde provavelmente outros disputem a tapa o título de fã número um. Até gostar de algo virou competição!

E como o perfil de interesses médio é na melhor das hipóteses limitado, muita gente fica presa num pequeno e concorrido grupo de gostos e opiniões a maior parte da vida. Personalidade não deixa de ser um grupo de preferências pessoais reconhecíveis no seu nível mais superficial. As pessoas precisam ter pelo menos um ‘tema’ seu para se diferenciar do bando.

E infelizmente vamos ficando cada vez mais eficientes em subdividir os poucos interesses que a maioria das pessoas já tem ao invés de apresentá-las a novas possibilidades. Cidadão que gosta de carros dificilmente vai aprender a gostar de tecnologia de propulsão ao invés de virar defensor de uma marca ou modelo específico. Ao invés de aproveitar os ganchos que nossos gostos podem nos dar para aprender mais, acabamos cada vez mais fechados em guetos auto-impostos.

E com toda a informação do mundo… falta assunto! Pelo medo de ficar para trás de seus pares de interesse, a pessoa vai se fechando para novos temas e coisas que poderia aprender. A preocupação exacerbada de demonstrar uma personalidade única através do que se gosta tende a deixar uma pessoa unidimensional. E para quem ainda não se tocou, esse é o sonho de quem está vendendo um produto ou serviço: clientes que precisem definir-se através de algo que consomem.

Pessoas unidimensionais são boas para os negócios, mas um saco de se ter por perto. Ainda me assombra toda vez que alguém diz para mim que não quer conversar sobre um assunto porque ‘não gosta’ e ‘não se interessa’. Eu morreria de tédio se tivesse que passar horas discutindo algo que abomino, feito moda, mas jamais me absteria de entreter o assunto por alguns momentos e até tentar entender melhor o que outras pessoas enxergam nisso.

Claro que o exemplo de moda é fantasioso, na prática a barreira se dá com política, religião, filosofia e ciências em geral. Assuntos evoluem para lugares diferentes da sua zona de conforto, não é para ser um problema expandir os horizontes, nem que seja até o próximo assunto pedir passagem. Mas não, se a comunicação não está num tema que a pessoa goste, ela troca de canal… mesmo que seja ao vivo.

Nem precisa ser aquela rejeição à opinião diferente da qual falamos várias vezes por aqui, tem algo mais profundo nisso. A pessoa quer se manter distante do tema que não domina, como se dominar um tema fosse pré requisito para se falar dele. Não é só para jogar uma referência muito nerd não, mas é como até mesmo aprender algo fosse uma corrida atrás de XP. Se não ajuda a subir de nível em relação aos pares, é perda de tempo.

Podemos culpar a geração controle remoto pelo começo disso e a geração touch-screen pela sua perpetuação. Não há mais paciência para lidar com algo sem tema específico. Todo mundo que tenta te vender algo faz das tripas coração para te oferecer conteúdo único para seu perfil de interesses, por que não esperar que o resto do mundo faça o mesmo?

Às vezes é só questão de esperar um pouco para encontrar algo com o que se identifique. É muito provável que temas que julgamos chatos ou incompatíveis estejam batendo na porta faz tempo, quem gosta de falar de maquiagem está muito perto de falar de arte e química, por exemplo!

Uma espécie de verdade universal que eu sinto muito falta de ouvir com mais frequência é a de que tudo está relacionado. Não existem assuntos diferentes, existem focos de atenção. E como cada um de nós agora tem um leque muito maior de pessoas para se relacionar, fica cada vez mais fácil segmentá-las… e reduzi-las.

Se ao invés de encontrar essas pessoas num só tema em comum (mesmo que em lados opostos da discussão), pudéssemos achar mais semelhanças, aposto que até mesmo a famosa animosidade virtual acabaria mais amena. É fácil dizer que as pessoas são muito corajosas por estarem atrás de uma tela, mas não pode ser a única razão. É falta de identificação. São pessoas especializadas demais em nome de terem seu tema.

Entendo que é muito mais agradável só se pronunciar quando você tem confiança de que sabe do que fala, mas você só vai diversificar o currículo se meter as caras em assuntos sobre os quais não tem tanta segurança. Eu vivo fazendo isso aqui (percebe-se…), e não me faz mal. Muito pelo contrário… foi só pesquisando para escrever que eu pude perceber como estava errado em algumas coisas (poucas…), e foi só tentando explicar que aprendi.

Repito: é muito bacana ter interesses específicos e ser ‘especialista’ em algo, mas não se pode ignorar a quantidade enorme de outros assuntos que por definição orbitam ao seu redor. Depender menos de um gosto ou outro para definir sua personalidade te dá mais possibilidades de interação e uma capacidade incrível de não ficar irritado por pouca merda.

Conhecimento é poder! E não é que eu arranjei um tema?

Para dizer que duvida que eu não planejei o texto, para dizer que ficou claro que eu não planejei o texto, ou mesmo para dizer que achou muito interessante mas nem leu: somir@desfavor.com

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Comments (20)

  • Seus textos sao muito intressantes. A dica de “meter as caras”, experimentar, é justamente o que decidi fazer com respeito aos seus posts, pois, apesar de ser uma traça de letras e ler os Ozon’s, mesmo sem entende-los completamente, ousei comentar algumas coisas, meter as caras. Porem, fiz pouco.

    De fato, esforcar-se para explicar um assunto ate entao desconhecido, estimula a pesquisa de diversas fontes sobre o assunto e, sem perceber, a pessoa ja esta dominando a parada.

    Fazer meu cliente acreditar que sua vida depende do meu produto e que este deve ser seu foco principal na vida. Presumo que nao haja estrategia publicitaria mais eficiente do que essa.

    Muito bacana este post! Continue…

  • Josè Mayer de Speedo

    Achei muito interessante nao ler. Depois, achei interessante ver como o tema vai se organizando de um modo ou de outro pelo proprio jeito do Somir pensar. Desta vez comecou como enrolacao, mas seria mais trabalhoso apenas enrolar do que dizer algo com sentido. A preguica salvou o Somir.

  • E vocês acham mesmo que o Somir escreveu algo assim, do nada, como se fosse um simples brainstorm sem nenhuma temática? É claro que não! Pelo que conheço bem do Somir, ele é mestre em manipulação discursiva, pra não dizer também em argumentação. Esse texto mostra uma experiência bem interessante ao utilizar de certas estratégias discursivas (como deixar o desenvolvimento do tema só para o final e quiçá não concluir) e realmente faz enganar o leitor e achar que não tem tema algum. Mas tem sim! Ahh tem!

  • Na boa, ótimo texto. Só não relaciona o título e a proposta com o desenvolvimento dele quem não leu atentamente, não pesca o assunto específico de cara e acaba caindo na crítica do próprio texto. Algo do tipo de que se não é o cientista acaba virando o experimento. Descreve o cotidiano.

  • Este, em específico, eu não gostei muito não.

    Não por não seguir o padrão “redação-Fuvest” (introdução – argumentação – conclusão), mas por achar que o tema é um pouco repetitivo com os “últimos”… Estou com saudades de um “Bóson de Higgs” ou algo nessa linha. Talvez seja isso.

      • Quando comecei a ler já pensei: Epa! Olha o castigo aí gente! Mas até que gostei do texto. Acho que uma das tags para defini-lo poderia ser “gostos” e ele só não colocou porque o objetivo é dizer que não devemos nos manter presos. Sem tema seriam as pessoas que não conseguem ampliar seus conhecimentos e debates por estarem focadas em uma coisa só.
        Vamos ver se hoje ele responderá os comentários.

    • Pensai por nós!

      Venho fazendo alguns experimentos com meus textos. O mais divertido até agora é o deixar o assunto 99% apontado para uma conclusão, mas não escrevê-la. Surpreendeu-me o quanto isso aliena algumas pessoas do texto… Até mesmo aqui, até mesmo depois da faxina… Tem gente que simplesmente não consegue acompanhar um raciocínio escrito por conta própria.

      Estava até simples entender sobre o que eu queria falar. A não ser que você tenha lido só a introdução e vindo aqui puxar saco da Sally.

      Mas não vou fazer de novo neste comentário: estou te chamando de burro e dizendo o seu comentário foi tão babaca que eu estou com vergonha por tabela.

    • Sério, eu estou chocado com essas reações…

      É um texto normal, mas eu brinquei com a ideia de estar sem tema no começo. Incrível como influenciou…

  • Escrever sem tema é super dificil. Maupassant treinava descricoes todos os dias, o que nao deixa de ser um tipo de tema. Rubem Paiva e Drummond conseguiram escrever cronicas assim. A sua falha no processo foi bem instrutiva e pode estar carregada de significados. Ou não!

    • O mais bacana de “não ter tema” é simular aquela coisa única da conversa do assunto surgir e depois de algum tempo não se saber mais como um tema desaguou no outro. Pega o cérebro de surpresa, como acabei percebendo na prática…

      • Nao tinha pensado por esse prisma…mais uma razao pra considerar o texto uma experiencia literaria interessante. Nesse sentido talvez se a sua prosa fosse mais fluida, menos racionalizada, a simulação fosse mais “real”. Quem era muito bom nisso era Gabriel Garcia Marquez ou Julio Cortazar. Uma coisa que me lembro das cronicas sem tema (acho que Fernando Sabino ja fez algo no estilo tambem) é de como ao existir qualquer vazio a nossa mente é rapidamente tomada pelas pequenas coisas do cotidiano. Talvez pelo fato do escritor ser publicitario, o vazio se preencheu com questoes de mercado, imagem e consumo. No meu caso talvez eu acabasse falando de moleculas e evolução, doenças e vacinas.

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