A Saga do Morcego.

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Noite Fatídica

Era noite, finalmente eu me recolhia ao meu reduto para o merecido descanso. As trevas do meu quarto me abraçavam confortavelmente enquanto que o clima frio trazia uma doce agonia carregada pelo vento invernal.

Deitado em minha alcova, meus pensamentos já ecoavam através dos mais profundos covis da minha mente e o subconsciente urrava sua necessidade latente de vir à tona para dar vazão a coisas que não fazem sentido neste mundo, coisas que só à deuses e demônios cabem a revelação.

Do lado de fora minha fiel guardiã Penny Lane auscultava a noite, em sua eterna e mórbida tarefa de proteger meu sono daqueles que eram e já não são.

Segundos antes de seu ladrido intermitente, o eriçamento dos pêlos em minha nuca já me despertara do estágio mágico que existe no universo paralelo situado exatamente no intermédio do sono e da vigília.

Uma aura maligna pairava no ar e a escuridão quase que instantaneamente se tornara palpável. O mal estava presente.

Entre os sons de rosnados e latidos de Penny Lane, tentei em vão constatar a presença do invasor, através de algum ruído que pudesse denunciar sua natureza. Procurei pela minha arma, apenas para me lembrar, logo em seguida, que havia deixado-a em meu escritório.

Ainda no escuro, instintivamente alcancei a velha Rossi na parede, porém, sem munição, ela não teria muita valia. A tensão ao lado de fora multiplicava-se geometricamente, quase dava para ver através dos rosnados de minha guardiã a cena que se passava: Penny e o Invasor, frente à frente, ambos sem respirar, esperando o primeiro momento de hesitação um do outro para atacar.

Eu precisava fazer algo. Foi então que, munido da mais antiga das armas, um porrete, saí na escuridão da casa, agradecendo aos céus pela dádiva de poder enxergar no escuro. Na sala encontrei meu pai e ambos iniciamos uma patrulha nos jardins da propriedade.

Um homem que não defende seu território, seu lar, não merece viver.

O sangue pulsava em nossas têmporas quando abrimos a porta que dava para os fundos da casa. Penny veio ao nosso encontro, sem sinais de luta, mas na ânsia de nos guiar à presença do invasor que, mesmo de posse de um prosaico lampião de querosene, não conseguíamos encontrar.

Naquele momento, um sibilo alto que mais pôde ser sentido no crânio que ouvido propriamente, ocupou o local. Era o Invasor impondo sua presença, se anunciando, conotando sua periculosidade a fim de nos afastar.

Penny Lane, numa atitude rápida e sem hesitação, correu ao seu encontro, foi quando pudemos vê-lo: um morcego, um pobre morcego que em vão tentava escalar a parede rumo à janela do meu reduto noturno.

A visão da criatura me encheu de compaixão, pois tentava em vão escapar da armadilha na qual se colocara. Não conseguia mais voar, pudemos constatar pelas suas débeis tentativas. Fosse por ter se chocado aos ofendículos do muro, fosse por ter sido ferido pela incansável guardiã do quintal, ou por qualquer outro motivo, a criatura ali estava, encurralada, assustada, à mercê de nossas vontades.

Instintivamente tranquei Penny Lane em sua jaula para proteger a ambos, ela e o morcego. Este último da morte certa nas presas de Penny, esta de um eventual contágio por raiva animal.
O morcego exalava medo e via-se o pavor refletido pelo lampião em seus pequeninos olhos vermelhos.

Tentei por diversas vezes capturar a criatura para devolvê-la ao seu habitat. Minha primeira tentativa resultou em uma mordida no polegar direito, que só não rendeu piores consequências graças ao pano de chão com o qual envolvi meu pequeno refém.

Obstinadamente, tentei, sem sucesso, no entanto, diversos outros métodos de captura, mas o medo emprestava ao morcego uma agilidade que já não tinha, fazendo com que ele valentemente não se deixasse capturar, tornando-se tal ato inviável sem molestá-lo.

Eis que um dilema se instalou: se eu deixasse o pequeno vampiro ali, ele certamente seria morto pela valente Penny Lane, que não poderia passar a noite enclausurada, pois certamente ladraria até o amanhecer. Caso a feroz caçadora fosse solta, corria sérios riscos de ser contaminada pelo vírus da raiva.

Foi então que meu pai, do alto de sua sabedoria revelou friamente o que desde o começo eu inconscientemente esperava: teríamos que matar o pobre e assustado morcego.

Coube a mim a tarefa, mas não era uma morte comum, um simples assassínio, o ato era para poupar o pequeno invasor de futuros sofrimentos nas presas de Penny, portanto deveria ser feito de forma rápida, cirúrgica, se possível indolor.

Ante tais requisitos para a execução do imaculado condenado, o método da paulada estava descartado, instalando-se aí uma nova dúvida: qual método poderia ser empregado com mais eficácia?

Carentes de uma arma funcional e de munição para a única arma de que dispúnhamos me coloquei a pensar. Meu pai, antigo matador das ratazanas que outrora invadiram nosso território propôs primeiramente uma arma química, feita à base de água e produtos de limpeza, mas sua letalidade era questionável, podendo proporcionar à vítima sofrimentos desnecessários.

Excluído tal método, ele propôs água fervente, o que por motivos óbvios não foi feito.

Foi quando me lembrei daquela antiga arma, há muito deixada no ostracismo da parede do quarto: um velho estilingue, feito com borracha cirúrgica e forquilha de goiabeira, vinte libras de pressão no momento do impacto a uma distância de trinta metros. Não era uma arma potente, mas faria o serviço de forma rápida.

No entanto, como nada neste mundo é fácil e durante a noite aqueles que eram e já não são caminham junto às trevas para emprestar revezes à alma humana, novo problema se instalou: não havia uma munição apropriada para usar na medieval arma escolhida para a execução.

Mas a necessidade pariu todas as invenções e prontamente encontrei na bomboniére da sala duas balas, duas velhas e duras balas de menta que há muito tempo ali jaziam.

Com o coração em prantos fui cumprir meu destino de algoz, buscando dar ao infeliz morcego um pouco de dignidade na hora de sua morte. Os momentos que se seguiram incorporaram um horror Lovecraftiniano.

Eu estava ali em posição, a borracha tensionada, o pobre animal me encarava, já imaginando o porvir. Junto com a minha respiração, soltei também o repositório da arma e a bala de menta voou. O animal soltou um sibilo alto e agudo que penetrou mais minha alma que meus ouvidos.

Ao me aproximar para constatar o cumprimento da funesta tarefa, tive noção do infeliz resultado: a asa direita do morcego se fora e ele tremia agonizante em dor.

Meu coração sangrava juntamente com as artérias do animal e dei meu segundo tiro. Uma nova bala de menta voava em direção ao alvo, desta vez decepando parte da asa esquerda da criatura.

Eu estava em choque, a dor e a compaixão penetravam em meu coração como se fossem a lança do destino perfurando fundo o coração do Salvador de um povo que não queria ser salvo.

Não havia mais munição. O morcego sibilava cada vez mais alto em dor. Eu precisava terminar seu sofrimento.

Foi quando a Providência colocou em minha frente um pequeno cadeado sem alças, apenas uma pequena e pesada massa de aço fundido e dourado.

O peso letal do metal, a cor dourada, o Universo que parara de girar naquele momento, tudo garantia ao morcego uma dignidade na morte que outros de sua espécie jamais sonharão encontrar.

Nesse momento atemporal, onde todas as energias prendem sua respiração e os portais do universo se abrem para receber a essência do ser que em breve deixaria este mundo, o morcego moribundo se levantou sobre as patas traseiras, apoiando-se no que restava de suas asas e ofereceu-me sua cabeça ao sacrifício.

Ele parecia pedir-me que fosse rápido, que fosse preciso. E eu fui.

A borracha tensionada ao máximo zuniu quando soltei o repositório do estilingue. O cadeado voou, traçando um risco dourado no ar, iluminado pela parca luz do ambiente. A cabeça do morcego explodiu, seu sangue banhou minha face.

Dentro de seu cárcere, Penny Lane fez de seu uivo a trilha sonora que embalou a despedida da criatura. O céu, antes nublado, se abriu em estrelas. As energias saudavam a essência do ser que agora recolhiam.

Um ser puro, sem culpas, cujo destino o fez cair em um local que traçaria para sempre sua caminhada neste planeta.

Fui dormir me sentindo o mais miserável dos homens que habitam neste mundo. Não encontrei o costumeiro conforto das trevas. Sonhei com o morcego, voando livre, durante o dia, com asas enormes. Ele olhou-me e sorriu, como se estivesse a dizer que entendia minhas ações.

Como se me tranqüilizasse, dizendo que sou também um morcego e que, como ele, um dia também terei que entender a decisão daquele não terá outra escolha, senão encaminhar minha alma aos portais do universo.

FIM

Breno B. Moore | +

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