Filhos das estrelas.

O mundo parou para observar as milhares de espaçonaves que desciam rumo ao território brasileiro naquela fatídica tarde de Agosto. Há semanas não se falava em nada além da gigantesca nave de origem desconhecida e formas alienígenas orbitando o nosso planeta. Nem mesmo os mais poderosos governos foram capazes de esconder a informação do público.

Como era de esperar, um misto de fascinação e pânico tomou de assalto toda a humanidade. A expectativa do primeiro contato com uma civilização alienígena quase congestionou toda a internet, bilhões de nós tomados pela curiosidade, especulando sobre as intenções dos visitantes. Do espaço não vinham muitas informações, na verdade, a única comunicação vinda da nave alienígena fora a imagem de um mapa identificando a localização do pouso de cinco mil pequenos módulos de aterrissagem, todos concentrados no interior do Brasil.

Finalmente era a hora. O governo brasileiro aceitou de bom grado um substancial reforço militar internacional encabeçado pela OTAN na área, em caso de hostilidade dos visitantes. Na área também se concentraram centenas de milhares de cientistas, jornalistas e curiosos dispostos a fazer a viagem rumo ao interior do Mato Grosso do Sul. Dentre as testemunhas locais, reinava a curiosidade até mais do que o medo do desconhecido.

Logo após a alvorada do terceiro dia de Agosto de 2015, os primeiros módulos começavam a pousar. Um engenhoso sistema de micro-propulsores garantia que tocassem o solo com toda delicadeza. Os pousos aconteciam de forma ordenada, formando padrões geométricos perfeitos por sobre o descampado. Em menos de uma hora transmitida ao vivo por virtualmente todos os canais de comunicação humanos, todos os cinco mil estavam dispostos em solo terrestre.

Cada um deles não tinha mais do que um metro de altura por dois de largura. Por alguns momentos, especulou-se até que seriam bombas ou algo igualmente perigoso, os militares presentes com certeza se prepararam para o pior, todas suas armas prontas para disparar. Hoje em dia sabe-se até que quatro aviões carregando bombas atômicas sobrevoavam o local.

Cerca de vinte minutos depois do pouso, todas as pequenas naves começaram a eclodir feito casulos metálicos. O que havia lá dentro pegou de surpresa a esmagadora maioria das testemunhas: bebês. Bebês visivelmente humanos, das mais diversas etnias. Testes subsequentes estimaram todos os cinco mil infantes com a mesma idade, pouco menos de um ano de vida. Todos extremamente saudáveis e sem nenhum sinal de desconforto ou violência de qualquer tipo.

Helicópteros filmavam as crianças de longe, todas nuas e vulneráveis. Deitadas placidamente sobre uma espécie de manjedoura, agora expostas ao abafado clima do local. Os presentes vacilaram por alguns momentos, os militares dando ordens expressas para que ninguém se aproximasse. A primeira a desobedecer a ordem e a protagonizar a foto mais republicada da história humana foi uma soldado israelense.

Ela ignorou os gritos de seus superiores para manter posição e se aproximou de um dos bebês. Sem vacilar, pegou-o no colo. Era um menino de pele morena, cabelos negros e volumosos para a idade. Ele sorriu imediatamente. Poucos minutos após essa cena, o campo de pouso estava completamente tomado por soldados, cada um tomando para si uma das crianças. Logo após vários cientistas uniram-se ao processo.

A última a ser tomada nos braços de alguém foi uma menina loira de profundos olhos azuis. Assim que repousou sua cabeça sobre os ombros de um soldado chinês, começaram a chegar os relatos da grande nave em órbita. Ela estava se movendo, depois de três semanas de inatividade. Sem responder nenhum dos insistentes pedidos de comunicação enviados pela humanidade, ela foi se afastando lentamente de nosso planeta.

Doze horas depois, a nave finalmente desapareceu num traço de luz que atravessou o sistema solar em segundos. Nesse meio tempo, os cinco mil bebês já tinham nomes, alguns mais que um, e verdadeiras filas de interessados na adoção permanente. Os “filhos das estrelas” – nome rapidamente popularizado pela mídia – foram em sua imensa maioria levados para áreas de isolamento criadas por uma força tarefa mundial, capitaneada em teoria pelo exército brasileiro, mas na prática pelo americano.

Em sua imensa maioria porque doze dos petizes desapareceram antes mesmo de todos serem contabilizados. Atribui-se a disparidade a um erro de interpretação do número de naves enviadas, mas sabia-se que a maior probabilidade era a de terem “roubado” as crianças no meio da confusão que os soldados fizeram ao buscá-las em primeiro lugar. A falta dessas doze crianças também foi minimizada pelos resultados dos exames feitos nas outras: não eram radioativas ou carregavam qualquer patogênico detectável.

Testes de DNA comprovaram que eram sim humanas até a última célula. O que mais chamou a atenção foi a perfeição de seus códigos genéticos: nenhuma delas tinha disposição para doença qualquer, todas contavam com mutações raras que até as protegiam de males comuns a todos nós. E mesmo assim, eram variados o suficiente para não serem considerados irmãos ou mesmo parentes próximos uns dos outros. A resistência dessas crianças às doenças foi comprovada com testes extremamente impopulares realizados pelos chineses com sua parcela. Gripe, dengue, malária, cólera, AIDS… até mesmo o Ebola era incapaz de contaminá-las.

Uma acalorada batalha judicial na Corte dos Direitos Humanos deu às crianças o direito à liberdade antes de completarem seus primeiros cinco anos de vida. O argumento que eram humanas independentemente de sua origem venceu o de que eram importantes demais para a ciência. O público teve uma influência enorme nisso, poucas causas geraram mais defensores apaixonados na história do que a libertação das 4.988 crianças mantidas isoladas do resto da humanidade.

Ainda mais quando seu número caiu para 4.987 após a morte de Jíguāng, a garota dos olhos azuis recuperada por último quatro anos e alguns meses mais cedo. Um exame desastrado do funcionamento de seu sistema respiratório lançou-a num choque irreversível. Nem mesmo o governo chinês foi capaz de controlar a revolta de seu povo. Uma semana depois, todas as crianças foram postas à adoção, boa parte delas acabou ficando com famílias de militares e cientistas envolvidos em seus estudos, defendido o argumento que era melhor que ficassem com gente que já conheciam.

As restantes foram disputadas literalmente a tapa por famílias e casais de todo o mundo. As sessões de entrevista de proponentes a novos pais do filhos das estrelas eram pontuadas por brigas entre homens e mulheres desesperados por ter uma dessas crianças em casa. Felizmente, nenhum dos mais violentos foi escolhido. Todas acabaram em casas modelo, com pais abastados e extremamente dedicados.

Com a puberdade alcançando-as mais ou menos no mesmo período de tempo ao redor do globo, começou-se a se perceber os efeitos do DNA padronizado: meninos e meninas muito altos e atléticos, capacidade de concentração e aprendizado absolutamente fora do comum, tudo isso aliado a uma aparência muito acima da média. Logo adolescentes, esperava-se que gozassem de extremo sucesso com o sexo oposto.

O que não aconteceu conforme o previsto. Eram sim desejados por pessoas de todas as idades, mas pareciam não ter impulso sexual. Não correspondiam os interesses românticos que despertavam. Claro, não é como se nenhum deles tenha se envolvido com seres humanos “comuns”, mas além dos terríveis casos acontecidos contra suas vontades, eram todos casos passageiros e desinteressados.

Mas havia uma exceção: entre eles, tudo funcionava normalmente. Logo percebeu-se que os filhos das estrelas só demonstravam interesse neles mesmos. E adolescentes serão adolescentes, seja qual for seu DNA. Os casais formados entre eles logo começaram a dar frutos. Estima-se que 99% deles formaram casais entre si e tiveram filhos já antes dos 20 anos de idade.

O resto da humanidade já começava a enxergá-los com certa antipatia pela falta de interação, mas como o grupo era pequeno e tiveram infância sofrida, acabaram protegidos como minoria. O que, como sabemos agora, não é mais o caso. Para cada filho que nós tínhamos, eles tinham dois. Os filhos das estrelas cresceram e se multiplicaram em larga escala.

E, francamente, a maioria dos argumentos contra eles soavam como inveja mesmo. Eram mais saudáveis, mais fortes, mais inteligentes. E como vinham em todas as cores, nem mesmo o argumento da falta de variação genética podia ser usado contra eles. Sortudo era o espécime imperfeito que conseguia fazer filhos com um. Tínhamos uma relação de amor e ódio com eles poucas gerações mais tarde.

Os avanços científicos e sociais deles melhoraram a vida de todos nós. E isso ninguém pode negar: eles dividiram o que tinham conosco. Tratavam-nos com condescendência, mas não podemos culpá-los: parecemos mesmo a versão de testes deles. O mundo não está pior com eles, muito pelo contrário… mas olhar na cara de alguém que é tudo o que você não pode ser acaba nos consumindo por dentro.

Entendo isso. Acredito que todos entendemos o que motiva a famosa “depressão das estrelas”. Nós queremos ser melhores. Nós queremos ser eles. Mas não somos. O isolamento e o suicídio não são respostas para nossos problemas. Nós merecemos existir, seja lá quem estiver conosco neste mundo. Nós os acolhemos quando eles estavam mais frágeis, eles não são filhos das estrelas, elas os abandonaram em nossa porta.

Eles são nossos filhos. Eles cresceram. E agora eles cuidam de nós. Não é assim que as coisas deveriam ser?

Para dizer que não entendeu o ponto do texto, para confabular sobre os planos da nave, ou mesmo para dizer que prefere os das estrelas aos da puta que vemos por aí: somir@desfavor.com

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Comments (3)

  • A realidade chega a ser deprimente, portanto suas “viagens” divertem bastante, ao mesmo tempo trazendo-me para a realidade de forma mais amena.

  • Tem uns 5 anos, tive um sonho parecido com essas naves chegando…..acordei e corri na janela, de tão real que me pareceu…..claro que não teve próximos capítulos e nem mesmo vi elas pousarem….rsrsrsrsrs
    Gostei desse ponto de vista….meio como X-Men…..alguns admiram e outros odeiam.
    Em outro sonho, era noite e eles invadiam a terra….rsrsrs
    De qq forma, eu e minha esposa estamos aguardando a chegada deles….kkkkkkkkkkkkkk

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