A alegoria da prisão.

Conforme prometido, iremos revelar neste importante simpósio os valiosos escritos rudimentares descobertos na escavação digital promovida no último mês. Os dados colhidos e decodificados serão expostos na presente palestra.

Sabemos que o assunto despertou enorme curiosidade e interesse, talvez por ser o único relato consistente e inteligível dos primórdios desta civilização ancestral, mas nossos especialistas levaram algum tempo para desvendar e interpretar a surpreendente carga de informação contida. Somente agora podemos afirmar com certeza do que se trata.

Um grupo de mais de cem pesquisadores leram e releram os escritos rudimentares e, para nossa surpresa, constatou-se que o conteúdo partiu de apenas dois membros dessa civilização ancestral e, ao contrário do que imaginávamos, eles não exerciam qualquer tipo de liderança ou importância social.

Muito pelo contrário, os estudos indicam que eram dois prisioneiros. Não foi possível compreender a razão ou a dinâmica desse aprisionamento, mas é certo afirmar que conseguiram reunir uma legião de outros prisioneiros que os seguiam e comentavam as desventuras dessa prisão.

Apesar da linguagem rudimentar, podemos afirmar com certeza absoluta que seu conteúdo foi fielmente decifrado. As memórias do cárcere destes dois prisioneiros certamente explicam um pouco mais sobre a extinção de nossos antepassados.

Uma civilização marcada pela discórdia e intolerância, que, entretanto, se apresentava com um discurso de inclusão e bondade. Inúmeras vezes os prisioneiros pacificamente argumentavam entre si quando foram deliberadamente atacados por membros tidos como bons que, em atos de covardia, buscaram silenciar quem lhes desagradava de alguma forma.

O primeiro episódio ocorreu quando um grupo de fêmeas se rebelou contra o prisioneiro macho. Um grupo significativo se uniu contra os prisioneiros. Pelo que pudemos depreender, os prisioneiros se limitavam a argumentar em seu estado de encarceramento, jamais saíam de lá para confrontar outros integrantes do bando. Ainda assim, mesmo no encarceramento, eram vigiados e hostilizados quando se pronunciavam de forma destoante com a sociedade rudimentar da época.

Posteriormente, uma derivação peluda daquele bando se revelou contra o macho prisioneiro. Nossos estudiosos afirmam que, a julgar pelo comportamento do bando, essa derivação peluda era composta apenas por fêmeas também. Aparentemente o macho prisioneiro detinha um dom particular para irritar as fêmeas de sua espécie. Tudo leva a crer que não deixou descendentes.

Mas não apenas de irritar as fêmeas vivia o macho prisioneiro. Aparentemente ele também irritava alguns tipos de sacerdotes da cultura rudimentar do bando. Apesar de fazê-lo dentro da sua prisão, pois não lhe era permitido falar fora dela, sofria represálias. As ignorava, é bem verdade, mas toda a equipe se surpreendeu com a capacidade destas criaturas ancestrais de brigar unilateralmente, já que, ainda assim, as agressões eram constantes.

A prisioneira fêmea, por sua vez, também gerava esse tipo de reação. O primeiro grande embate, do qual ela igualmente participava de dentro da prisão, pois fora dela não lhe era permitido falar, envolveu machos do bando. Não compreendemos ao certo o motivo, mas sabemos que estava relacionado a uma atividade coletiva praticada por onze machos da civilização e venerada por razões desconhecidas. Ofensas e ameaças de machos a fêmeas não eram motivo de vergonha naquela civilização, pois eram ostentadas com vigor.

Ela despertou a hostilidade de diversos segmentos daquela sociedade precária, porém, havia um diferencial. A prisioneira fêmea conseguiu conquistar o apoio de muitos outros prisioneiros. O primeiro grande motim liderado por ela envolvia uma espécie de animal rudimentar que não pudemos identificar com clareza, mas acreditamos tratar-se de uma fera bestial, dado o vigor com o qual era combatida. Mais de mil prisioneiros se uniram em uma reunião para debater formas de matar este temido animal.

O maior embate registrado da prisioneira fêmea foi contra um grupo de fêmeas da tribo. Pelo que nossos especialistas puderam decifrar de sua linguagem precária, a prisioneira fêmea questionava a prática de um ritual ancestral anterior à clonagem em larga escala e foi brutalmente atacada pelo resto do bando. O curioso é que o ritual, além de inúmeros flagelos, ainda se mostrava perene, mas, ainda assim era defendido.

Há relatos progressivos de ocasiões onde o prisioneiro macho e a prisioneira fêmea debatiam tranquilamente um assunto no cárcere, quando eram repentinamente abordados por membros da tribo e atacados.

Não compreendemos muito bem a dinâmica desse encarceramento, mas é possível afirmar que, com o passar do tempo, ele ficou cada vez mais e mais restrito. Impressiona como sempre havia algum membro desta sociedade rudimentar atento aos prisioneiros, atento ao que falavam, a postos para intervir, para interceder e repreender. Sua dinâmica de fiscalização era muito eficiente. Lástima que não tenham usado estes esforços para coisas realmente importantes, poderiam ter evitado sua extinção.

Ao que tudo indica, o bando conseguiu se organizar contra os prisioneiros e estes foram submetidos a algum tipo de autoridade da tribo. Não pudemos compreender a razão, uma vez que os prisioneiros cumpriam com as regras e não se pronunciavam fora do encarceramento. Ainda assim, com o passar do tempo, não foram apenas hostilizados por falar no cárcere, também foram gradualmente silenciados.

O marco histórico que deu início a esse processo ocorreu no ano de 2016. Uma festividade rudimentar teria sido o estopim para a grande revolta da tribo. Não conseguimos precisar com exatidão, mas parece que envolvia membros mutilados da tribo que se reuniam em uma competição. O comentário dos prisioneiros sobre este evento ganhou uma proporção maior daquela que se esperava e eles passaram a ser vigiados não apenas por aquela tribo, mas por toda a civilização da época.

Novas regras foram estabelecidas naquela sociedade tosca para que os prisioneiros não pudessem falar, nem mesmo quando estivessem na prisão. Eles tentaram burlar esta regra e foram bem sucedidos algumas vezes, entretanto, só conseguiam falar entre si, nunca com os demais prisioneiros. Sua ausência se fez sentir com o passar do tempo, desmobilizando aquele grupo de prisioneiros, que não mais se reunia nem planejava.

Com o silêncio forçado do prisioneiro macho e da prisioneira fêmea, os demais prisioneiros também silenciaram. Alguns por medo, outros por comodismo, pois dependiam das palavras de terceiros para falar. O grupo parece ter se dispersado e suas ideias aos poucos foram perdidas, caíram no esquecimento. Muitos séculos depois, a civilização acabou extinta, da forma como os prisioneiros haviam previsto.

Obtivemos também relatos da convivência destes prisioneiros no cárcere. Pudemos observar inúmeras desavenças, porém nunca nenhuma os afastou por completo. A prisioneira fêmea dedicou anos a narrar as dificuldades de convivência com o prisioneiro macho e com aqueles que pareciam ser seus comparsas, esboçando críticas a um deles em especial.

É possível concluir que as desavenças oriundas da convivência destes dois prisioneiros eram maiores do que a desavença de convivência de cada um deles com o resto do bando. Ainda assim, sua relação era mais harmoniosa. Estudiosos acreditam que antes da utilização de Inteligência Artificial em larga escala algum sentimento humanoide seria capaz de gerar esse vínculo que superaria as divergências. Mas é só uma especulação.

Pouco se sabe da vida dos prisioneiros depois que eles foram efetivamente silenciados. Há um momento nebuloso e ainda mal explicado. Passado esse momento, há provas inequívocas que as mesmas pessoas que os silenciaram passaram a venerá-los em uma espécie de endeusamento. Entretanto, escritos da época mostram sérias deturpações entre o que foi escrito pelos prisioneiros e o material que lhes era imputado neste ato de veneração.

Desde pequenas palavras distorcidas até frases retiradas do contexto ou até mesmo inventadas. Com o passar das décadas, a fala dos prisioneiros foi gradualmente modificada, até se tornar algo que não guardava qualquer semelhança com o original. E justamente quando isso ocorreu a sociedade rudimentar começou a adorá-los e venerá-los.

Infelizmente acabaram extintos sem descobrir a verdade. Pobres criaturas. A verdade sobre os prisioneiros se perdeu em poucos anos e as mentiras que contaram sobre eles se perpetraram por séculos. Assim são as criaturas rudimentares. A lição que fica desta palestra é algo que já sabemos, porém eventualmente esquecemos: silenciar funciona de imediato, mas, a longo prazo, é a melhor forma de propagar uma ideia.

Para me mandar ficar no Sally Surtada em vez de me aventurar por áreas que eu não domino, para sentir pena das criaturas também ou ainda para interpretar da pior forma possível e descontar em mim: sally@desfavor.com

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