Mãe da Terra – Parte 2

A enorme clareira em meio à Floresta dos Primeiros raramente tem tantos visitantes. Diante dos restos da Carruagem dos Deuses, uma pequena multidão começa a se formar ao redor de uma mulher durante as luzes finais do dia.

Já é noite. A Mãe da Terra observa placidamente seus descendentes. Iluminados por uma grande fogueira, centenas de jovens maltrapilhos acotovelam-se pela melhor visão da mulher, não sem trocar ofensas e impropérios no processo. O emaranhado de vozes agressivas continua sua escalada até ela limpar sua garganta.

Silêncio. A mulher, vestindo uma escura pele animal adornada por inúmeras flores silvestres, ergue ambos os braços e sinaliza com as mãos para os presentes se acomodarem. Em questão de segundos, os até então irrequietos jovens resignam-se em suas posições, sentando-se praticamente ao mesmo tempo.

MÃE DA TERRA: O dia da glória se aproxima. Meus filhos, meus amados filhos… A Mãe da Terra abençoa todos vocês com a coragem dos ancestrais, com a sabedoria dos primeiros e com o sangue dos mártires. Aqueles que vieram antes de nós nos deram a vida, e nós daremos a vida por eles. Posso ver nos olhos de vocês que alguns estão com medo. Não tenham medo, crianças. Pois o medo é veneno.

A mulher aproxima-se lentamente de um jovem franzino de cabelos escuros. Com alguma dificuldade, abaixa-se diante dele. Todos os olhos nela.

MÃE DA TERRA: Qual o seu nome, meu querido?

RAPAZ: Circuito, mãe.

Ela sorri.

MÃE DA TERRA: Um dos artefatos dos deuses? Que belo nome. Quantos anos você tem?

CIRCUITO: Nove, mãe.

O rapaz começa a lacrimejar, visivelmente emocionado pela atenção recebida. A expressão dela muda rapidamente, agora ríspida nas palavras e nos gestos.

MÃE DA TERRA: Não chore! Você já é homem feito! Você é um dos meus guerreiros!

Circuito rapidamente enxuga as lágrimas, fechando a cara numa fútil demonstração de força.

MÃE DA TERRA: Você tem medo da batalha, meu filho?

CIRCUITO: Não, mãe! Quando o dia de enfrentar a Traidora chegar, eu vou lutar até a morte! Pela Mãe da Terra que nos deu a vida!

TODOS: Que nos deu a vida!

Expressão satisfeita, ela se levanta, olhando para as várias faces debilmente iluminadas pela luz da fogueira. Centro indiscutível das atenções, ela se aproxima do fogo.

MÃE DA TERRA: Tragam a filha da Traidora!

Do meio do grupo, saltam dois rapazes segurando uma jovem nua. Seus cabelos dourados a destacam da multidão. Ela tem a boca amordaçada por uma fita de couro, mas seus gritos começam a escapar na medida que é trazida mais para perto da Mãe da Terra e da fogueira.

MÃE DA TERRA: Céus, que vocês purifiquem a carne podre de nossos inimigos.

Ela apenas acena com a cabeça e os dois rapazes começam a empurrá-la em direção às grandiosas chamas que iluminam a noite.

VOZ: CHEGA DE BARBÁRIE!

Todos os rostos se viram para os arredores da grande clareira. Um homem coberto por um pesado manto de pele apóia-se por sobre uma bengala improvisada. Seu rosto parcialmente coberto por um capuz é revelado com um demorado movimento de mãos. A Mãe da Terra exibe feições furiosas.

ESTRANHO: Matar essa criança não vai trazê-lo de volta. Essa tola disputa tem que terminar!

MÃE DA TERRA: Não OUSE falar comigo assim na frente dos meus filhos, Eremita.

O grupo de jovens começa a cochichar entre si, escondendo suas bocas com as mãos, olhando alternadamente para as duas figuras.

EREMITA: O tempo te envenenou.

MÃE DA TERRA: O tempo é de quem constrói algo com ele, não é seu papel interferir. Você fez essa escolha em tempos imemoriais, e agora deve conviver com ela. Nos meus filhos mando eu! Garoto!

A mulher aponta para o jovem Circuito. Ele se levanta imediatamente, lança em punhos.

MÃE DA TERRA: Leve o covarde de volta para de onde quer que ele tenha vindo. E se ele não quiser sair da minha floresta, você tem a permissão para tirar-lhe a vida.

CIRCUITO: Sim, mãe.

MÃE DA TERRA: É sua escolha, Eremita. Ou nos deixa, ou se junta à filha da Traidora.

Outros garotos e garotas, nenhum aparentando ser muito mais velho que Circuito, levantam-se também. Lanças em mãos. O Eremita baixa a cabeça, frustrado. Circuito aproxima-se rapidamente, percorrendo a distância em meros segundos. Com a lança apontada, sinaliza para o homem dar meia-volta. O Eremita considera por alguns momentos, trocando olhares com a pobre garota sendo levada para a fogueira. Ele suspira antes de virar as costas, não sem antes ver o terror nos olhos da garota.

CIRCUITO: Vá, velho! Siga seu caminho!

Os dois adentram a floresta fechada, a lança de Circuito sempre muito próxima das costas do Eremita. São mais algumas dezenas de metros até os gritos desesperados de uma jovem ecoarem pela densa floresta. O Eremita desacelera o passo, vira o rosto para Circuito. Ele com o olhar carregado de pesar, sua escolta ainda focada na tarefa.

EREMITA: Você não sente nada por ela, jovem?

CIRCUITO: Por uma filha da Traidora? Apenas ódio, velho.

EREMITA: E o que ela fez para merecer seu ódio?

CIRCUITO: Ela existe. Isso não é o suficiente?

EREMITA: Apesar de saber que é uma pergunta retórica, devo responder… não, não é o suficiente.

CIRCUITO: O que é re… retórica?

EREMITA: Uma pergunta que já nasce com resposta. Ela os ensina a matar, mas não a argumentar?

CIRCUITO: A Mãe da Terra nos deu a vida!

EREMITA: Mas não os permite vivê-la.

CIRCUITO: Cale-se! E não se desvie do caminho, eu sei para onde temos que ir.

EREMITA: Você quer seguir o rio? Oras, o rio não existe para ser o caminho mais curto entre dois pontos. O rio toma seu tempo para fazer suas curvas, para talhar no chão seu leito. Eu não sigo o rio. Ele não sabe o que faz.

CIRCUITO: Chega dessa conversa estranha. Você vai sair desta floresta com ou sem seu corpo. O que você escolhe?

EREMITA: Eu escolho a vida. E você?

O Eremita sorri. Circuito fica pensativo por alguns segundos.

EREMITA: Diga, garoto, qual a sua idade?

CIRCUITO: Nove.

EREMITA: Ah, quase dezoito em anos da Terra. Eu adoraria me lembrar dos meus. Você tem uma mulher, garoto?

CIRCUITO: Não é da sua conta!

EREMITA: Vou entender isso como um não. Sua… mãe… faz vocês se casarem aos dez, não é mesmo? Faz tanto tempo que eu não convivo com vocês, Filhos da Terra.

Circuito aponta a lança na direção do Eremita, acelerando-o. Passa-se quase uma hora antes que o silêncio de ambos seja interrompido por um estrondo vindo dos céus. Pelas frestas das copas das árvores, eles observam alguma coisa atravessando o firmamento em alta velocidade, emitindo um brilho poderoso.

CIRCUITO: Martelo dos deuses!

EREMITA: Meteoros não mudam de trajetória em pleno ar… Eu.. me lembro… Eu me lembro!

O Eremita acelera o passo sofregamente pela floresta, em busca de uma clareira nas copas. Sua bengala enrosca num arbusto e é deixada para trás. Nem mesmo o protesto de Circuito é capaz de freá-lo. Pouco tempo depois o homem encontra uma elevação entre as árvores da qual consegue observar o horizonte. Circuito logo se aproxima, ainda com a lança em posição ameaçadora.

CIRCUITO: Eu posso te matar se você fu…

Outro estrondo. O Eremita olha para o jovem e aponta para o horizonte. Na direção, uma imensa nuvem de poeira formando um rastro.

EREMITA: Seja o que for, não explodiu! Pode estar inteiro! Você entende isso, menino? Não explodiu!

CIRCUITO: Do que você está falando?

EREMITA: Eles nos encontraram! Eles vieram nos buscar!

CIRCUITO: Quem? Quem veio nos buscar?

EREMITA: Eles vieram da Terra. Agora eu lembro… foi assim que nós chegamos!

Continua na parte 3.

Para dizer que sacou no primeiro parágrafo, para dizer que ainda não sacou nada, ou mesmo para dizer que ainda bem que nem leu: somir@desfavor.com

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Comments (3)

  • Nao sei o que deveria ter sacado, mas curti bastante o texto.

    “…O medo é veneno.” Taí uma de minhas filosofias de vida. O medo só atrapalha.

  • Interessante.
    Tempo cronológico x psicológico.
    Sempre me perguntei como um ambiente extraterreste poderia influenciar o metabolismo e a percepção de tempo.
    E se a percepção de tempo poderia influenciar no metabolismo.
    Parece que sim.
    Pesquisas sobre o comportamento de animais sob um evento de eclipse solar total, mostra, por exemplo, pássaros de hábitos diurnos se recolhendo e entrando em sono pela manhã, por conta do eclipse.
    Acompanhando.

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