Para o espaço!

Felizmente o pouso do módulo Philae da sonda Rosetta no cometa Churyumov-Gerasimenko recebeu atenção suficiente da mídia. Aposto que a grande maioria de vocês no mínimo ouviu falar. Mas, para cada impopular, um exército de brasileiros médios: os batidos comentários sobre “desperdício de dinheiro” se fizeram presentes. Bilhões para pousar uma máquina de lavar numa pedra! Onde já se viu?

Oras, conhecimento não se desperdiça. Boa parte da tecnologia que temos atualmente deu seus primeiros passos nos gastos desenfreados de duas nações para colocar a primeira pessoa numa pedrona chamada Lua. Os avanços da exploração espacial acabam respingando na vida cotidiana. Mas esse é ponto mais óbvio (ou pelo menos deveria ser). A tecnologia que ajuda lá ainda ajuda cá.

Hoje eu quero falar de algo diferente: a heterogeneidade da evolução humana e como essa parece ser a condição para não ficarmos estagnados. Regiões e povos diferentes criam em graus diferentes. Alguns com mais liberdade para buscar objetivos bem menos urgentes que as necessidades diárias de uma população mundial cada vez maior.

Pode parecer um abandono imperdoável que boa parte da comunidade científica não esteja estudando formas de combater fome, miséria e doenças, mas não é como se essas fossem áreas que só dependam de vontade para ser resolvidas. O dinheiro necessário para fazer a sonda perseguir um cometa é uma quantia superlativa para os padrões de todos nós, mas é mera gota no oceano quando se pensa no quadro geral dos problemas da humanidade.

Somos mais de sete bilhões, muitos desses sem sequer a oportunidade de lutar por algo menos concreto que a próxima refeição. O número de pessoas disponíveis para parar tudo o que estão fazendo e ir resolver a vida de seus companheiros de planeta é limitado. Sem contar que existem questões alheias à vontade de ajudar: alguns povos simplesmente se odeiam e não tem capacidade intelectual de fazer algo diferente. Governantes corruptos saqueiam seus governados sem a menor cerimônia. Aglomerações enormes de pessoas em áreas incapazes de sustentá-las. O mercado de consumo que depende de algum grau de escassez para se manter vivo…

São muitas as variáveis que tornam em pesadelo o sonho de ajudar o próximo. E mesmo assim, muitos de nós dedicam-se exclusivamente a isso! Gente inteligente, esforçada e apaixonada pelo que faz tentando aumentar a produtividade de alimentos, criando remédios e tratamentos para nossos males, negociando a paz em tempos e territórios de animosidade. Somos sete bilhões! Os números trabalham ao nosso favor nesse ponto.

Tem sim gente e investimento nas áreas mais necessitadas. Mas ao contrário do que teóricos da conspiração insistem em dizer, não basta apenas disponibilizar uma tecnologia secreta para resolver tudo num passe de mágica; falta sim a tecnologia. Há um limite de quanta eficiência se pode imprimir numa tarefa, e mesmo as mentes mais brilhantes desse mundo encontram barreiras intransponíveis. Com certeza nos beneficiaríamos com mais cientistas disponíveis, mas não podemos acreditar que só a força bruta dos números seria capaz de solucionar nossos problemas.

As mentes e os investimentos que já temos ainda não são suficientes para mudar o mundo. Nem tanto por quem tem a capacidade, mas pela imensa massa que não a tem. Os problemas são grandes demais para serem resolvidos numa reunião bem intencionada. E sabendo da futilidade de tentar resolver tudo de uma só vez, aprendemos a dividir a carga e deixar que as pessoas corram atrás de objetivos menores, mas mais alcançáveis.

O cientista tentando pousar o módulo da sonda no cometa não está combatendo a fome na África porque não foi para isso que treinou. Muito embora a exploração espacial seja mesmo objetivo secundário à resolução dos descalabros que a parcela mais pobre da população mundial enfrenta, não deixa de ser um objetivo digno de ser alcançado.

Ao invés de cruzar os braços e esperar tudo estar resolvido em outras áreas, essa gente vai resolver os seus próprios problemas. Vamos resolver esse primeiro, mesmo que não seja a ordem ideal. Pelo menos é a ordem possível. No espaço não tem nenhum grupo paramilitar maluco forçando todo mundo a dar dois passos para trás a cada um para frente.

Sim, passar dez anos perseguindo uma pedrinha dentro do Sistema Solar e fazer nela pousar, quinhentos milhões de quilômetros de distância da Terra, (tudo em movimento) um equipamento para analisar sua composição é mais fácil do que resolver a fome no mundo. Por isso foi resolvido primeiro. Se estivéssemos esperando pelo fim das desigualdades sociais para começar todo o resto, as cavernas ainda seriam nossas moradias.

Cada vez que resolvemos um problema ‘fora da ordem’, pelo menos resolvemos um problema. A vida fica mais simples, aprendemos coisas novas. Os problemas de sempre continuam nos assombrando, mas talvez com sua solução simplificada por uma tecnologia que nem esperávamos interagir com eles.

Os avanços acontecem dessa forma desregrada mesmo. Somos bilhões de consciências diferentes, interesses e vivências distintos. Entre gastar quatro bilhões para resolver um problema e quarenta para não resolver um, qual parece o gasto mais lógico?

O grau de coordenação necessário para usar todo o poder mental e toda a mão de obra disponível na Terra em prol de uma só solução é essencialmente utópico. As pessoas tem inclusive o direito de se concentrar no que mais interessa e se especializar em áreas diferentes. Mas vamos dar o braço a torcer: façamos um exercício de imaginação.

Imagine que num milagre sem precedentes em nossa história, todos nos unamos para lidar com os problemas mais urgentes da humanidade.

Nada mais urgente que necessidades fisiológicas. Quem não come, morre. E muita gente nesse mundo não tem o que comer. Combater a miséria e a fome salta na frente até mesmo de doenças e guerras na escala de prioridades desamparadas nesse mundo. Vamos pegar todo o dinheiro e todos os trabalhadores disponíveis e focar nisso até ninguém mais passar fome!

Nobre. Precisaríamos definir um mínimo aceitável e prover para todos. E como estamos num campo utópico onde o resultado é alcançável, logo depois teríamos que erradicar todas as doenças erradicáveis. Tudo bem, não falta investimento e mão-de-obra. E já que é para resolver, as guerras que se extinguam logo em sequência. O mundo está saudável e seguro!

Lindo. Mas com todos os esforços voltados para a erradicação de problemas básicos da humanidade, o resto ficaria em último plano. Se não combate fome, doença e guerra, não é desenvolvido. E se não continuarmos trabalhando incansavelmente na solvência desse trio de pragas, elas voltam com força total. O corpo ainda é frágil.

Teríamos uma sociedade feliz sob o preço da eterna vigilância. E sem o incentivo necessário para desenvolver tecnologia suficientemente diferente, entraríamos numa era de evolução de eficiência sem fagulhas de criatividade e sem surpresas à vista. Plantações rendendo o máximo possível, mas com máquinas cada vez mais estagnadas para colhê-las. Quando se tira o incentivo da diferenciação e a competição, o que sobra não é necessariamente preguiça, mas a inovação sofre.

Você precisa de zonas de temperatura distintas num sistema para que aconteça algum movimento. Quanto mais homogêneo é o desenvolvimento, maior a tendência à estagnação. Nada contra a humanidade contar com mais cientistas para ocupar as vagas necessárias para reduzir drasticamente a incidência de nosso problemas mais primais, mas muito contra a ideia de que todos deveriam estar focados no mesmo ponto.

Solucionar um problema de exploração espacial até soa supérfluo, mas o passar das eras nos ensina que o que é desnecessário para uma geração pode ser a fundação da vida de outra. As pessoas viviam antes dos smartphones… O dinheiro e o esforço necessários para desenvolvê-los poderia ter sido destinado para combater a miséria, mas além de não serem capazes de erradicá-la, ainda nos deixaria sem uma tecnologia revolucionária.

Muito se engana quem tenta comparar as coisas. Se você enxergar o problema da sonda dentro de seu próprio universo de valores e significados, vai entender que essa tecnologia pode ser usada até para salvar toda a humanidade num futuro próximo. Poderíamos mudar a rota de um asteróide em rota de colisão com a Terra! Esse problema não existe agora, mas pode muito bem ter sido resolvido. Não era prioridade, mas foi feito.

Devemos sim continuar tentando ajudar os nossos que estão passando fome, que estão doentes ou sofrendo com guerras, mas não é inteligente pensar só nisso. Por mais escroto que isso soe.

Para dizer que meu texto foi um desperdício, para dizer que nem ficou sabendo da sonda, ou mesmo para dizer que não fazer nada erradica a pobreza do mesmo jeito: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Você tem uma capacidade de ver as coisas por ângulos novos que é impressionante. Não esperava o rumo que tomou ao longo do desenvolvimento do tema, nem o desfecho. Fui ingênua ao ler o primeiro parágrafo e concluir que você iria pelo caminho mais óbvio (“óbvio” para a minha estreita visão de mundo, óbvio.)

    “Muito se engana quem tenta comparar as coisas. Se você enxergar o problema da sonda dentro de seu próprio universo de valores e significados, vai entender que essa tecnologia pode ser usada até para salvar toda a humanidade num futuro próximo. Poderíamos mudar a rota de um asteróide em rota de colisão com a Terra! Esse problema não existe agora, mas pode muito bem ter sido resolvido. Não era prioridade, mas foi feito.

    Nosso imediatismo e a nossa eterna preguiça mental nos impede de lembrar disso. E de ver além dos nossos pequenos grandes dilemas. Quem sabe uma tecnologia dessas não seja a semente de uma solução para o problema da falta de água potável, de comida, de espaço, de ar puro, de dignidade…

    Bom, de dignidade, não. Pra falta de dignidade humana não tem tecnologia que dê jeito…

    • Você tem uma capacidade de ver as coisas por ângulos novos que é impressionante.

      Agradeço o reconhecimento. Não sei se sempre consigo, mas eu com certeza tento procurar caminhos diferentes para falar de qualquer assunto. Eu sempre acho que estou sendo terrivelmente óbvio quando escrevo…

      Bom, de dignidade, não. Pra falta de dignidade humana não tem tecnologia que dê jeito…

      Arranjamos outra solução: tornamos dignidade obsoleta! Obrigado, redes sociais!

  • Se os reclamantes usassem recursos financeiros, energia, tempo ou ate uma palavra amiga para quem sofre, certamente conseguiriam um resultado mais eficaz do que os que os cientistas poderiam fruir, caso usassem o dinheiro de pesquisas para outros fins..

    • Nossa semana fecha na quinta. Sem contar que gostamos de pesquisar com calma sobre os assuntos antes de emitir opiniões…

  • Pra mim essas pessoas que reclamam do investimento em ciência e exploração espacial se parecem muito com aquelas que reclamam das ONGs e outros grupos que ajudam animais.

    Por que ajudar animais de rua, quando tem tanta criança passando fome?

    Não é surpresa nenhuma descobrir que a grande maioria das pessoas que fazem essa reclamação (se não todas) não ajudam nem animais e nem pessoas. O bom e velho “não caga e não desocupa a moita”.

    Seria talvez menos idiota um cientista que esteja empenhado e se esforçando pra curar alguma doença ou melhorar a produção de alimentos fazer essa reclamação citada no texto. Mas pelo que sei de cientistas, eles preferem investir tempo e recursos fazendo seu trabalho em vez de reclamar do trabalho alheio. Assim como uma pessoa que se dedica a ajudar outras pessoas dificilmente vai perder tempo reclamando de quem ajuda animais, já que ela tem coisa melhor pra fazer com seu tempo.

    Nem todo mundo quer ou consegue fazer parte desses grupos de gente que faz. Nesse caso é digno pelo menos não ficar no caminho, não atrapalhar. A atitude mais medíocre possível é não fazer e ainda querer atrapalhar ou impedir quem faz.

    • A atitude mais medíocre possível é não fazer e ainda querer atrapalhar ou impedir quem faz.

      Perfeito. Inclusive o uso da palavra medíocre. Nada mais mediano do que cruzar os braços e reclamar. Os poucos que se mexem o fazem contra as dificuldades dos próprios projetos e a opinião preguiçosa dos querem racionalizar a própria inépcia.

  • Somir. O que é uma sonda pousando em segurança num cometa a 500 milhões de km da Terra, depois de 2 procedimentos terem falhado, se o Adnet está fazendo burrice e deixando mulheres histéricas e homens tentando posar de bonzinhos pra garantir a próxima ‘refeição’?

    Mas vamos lá.

    Não acho que se investe em pesquisa espacial simplesmente porque é mais fácil de resolver este problema do que por exemplo a fome no mundo.

    Acho que as soluções que este tipo de programa (espacial) nos trás a curto e médio prazo são mais rápidas que as soluções para se combater diretamente a fome ou a miséria.

    Fazendo uma analogia não muito distante, imagine alguém contribuindo com alguns doláres para cada Africano com Ebola. Detalhando mais, foram cerca de 10.000 mil mortes, e outros 10 mil com potencial de infecção. Vamos dar 100 doláres para cada. E ver o quanto lhes ajudará.

    Agora ao invés disso, vamos pegar este dinheiro, cerca de 2 milhões de dólares e investir com pesquisa. Isso pode trazer muito mais beneficio para que muito mais pessoas não peguem a doença ou se curem do que contribuir com o problema imediato delas.

    Cada setor/ministério, já tem uma verba definida e tem de fazer o máximo com ela e somente dentro de sua área. No caso da pesquisa espacial., essa verba é risível. Mas mesmo assim nos trás imensos benefício que podem ajudar diretamente na fome ou miséria:

    Satélites, técnicas, novos materiais, maquinário e tecnologia que podem ser usados na agricultura,na distribuiçaõ de alimentos e previsão de clima, instrumentos médicos e vacinas.

    Em resumo, se mira num asteroide e acerta numa criança com fome.

    • Homem sacaneia homem corno, mulher toma as dores de mulher corna. Sempre vai ser assim.

      Mas… vamos lá!

      Não acho que se investe em pesquisa espacial simplesmente porque é mais fácil de resolver este problema do que por exemplo a fome no mundo.

      Nem eu. Tanto que concordo com os pontos que você levantou. Mas também não é SÓ pelas vantagens que o desenvolvimento tecnológico traz. Tem esse componente mais ‘humano’ de querer ver os frutos do próprio trabalho. Se mais pessoas tivessem oportunidade de resolver seus pequenos problemas sem o peso da cobrança por metas fantasiosas como “salvar o mundo”, estaríamos mais perto de um mundo… salvo.

  • “Mudar o mundo”…
    Quanto mais penso nisso, mais difícil é encontrar uma via diferente de “Ditadura Global”.
    E, antes que alguém pense: “Só o amor pode mudar o mundo”, saiba que o amor é das coisas mais segregacionistas que há.

    • Todo mundo quer mudar o mundo até conhecer o mundo.

      E agora fiquei curioso sobre o segregacionismo do amor. O que seria isso?

      • Amor é algo que se dedica.
        Se dedica, evidente que tem que escolher, separar. Segregar.
        Nosso amor é dedicado àqueles ou àquelas coisas que nos agradam, que nos são convenientes, que temos interesse.
        É até simples.
        “Deus ama a quem o obedece.” (Dizia o cara que conversava com plantas cheias de fungo) Quem não o obedece?”
        A mãe tem bons olhos e tece elogios ao filho que se comporta, que a obedece.
        Você dedica mais afeto, carinho, ao gato que você mais gosta (ou ama).
        Enfim.
        O que amamos, viceja.
        O que não amamos, definha.

      • Ótima conclusão! E todo mundo quer mudar o mundo até se reconhecer no mundo. Não somos os mocinhos da história. Nem precisamos ser os vilões. Quando a gente encara o espelho e para de dar birra, a gente percebe o quanto de nós há na podridão do mundo. Especialmente na parte que nos beneficia. E mesmo que não tenhamos muitos privilégios: a gente teve que se adaptar para chegar até aqui. Mudar o mundo significa abrir mão dos alicerces que nos seguraram até agora. Talvez a troca seja positiva, mas mudar é sempre correr o risco de perder tudo e de cair.

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