Bidimensional.

Há algumas semanas atrás, uma das notícias escolhidas para a Semana Desfavor falava sobre “mangás eróticos infantis” no Japão. Deve ser novidade para muita gente (ainda bem), mas como eu ando por cantos obscuros da internet há bem mais de uma década, não foi a primeira vez que ouvi falar desses quadrinhos polêmicos. Sempre achei uma baboseira tecnicamente inofensiva, mas começo a mudar de opinião.

Para situar: histórias em quadrinhos onde crianças fazem sexo não são ilegais no Japão. Evidente que estou falando de desenhos. Tem até nome: lolicon (derivado de Lolita mesmo). Sempre fui da opinião que no final das contas é um rabisco num papel suficientemente inofensivo, mesmo que eu ache bizarro, o que um cidadão faz sozinho com uma revista não é da minha conta ou interesse.

Sim, eu sei que existe o argumento de promover pedofilia, mas uma parafilia dessas – a mais inaceitável de todas – não tem jeito de ser uma escolha. A pessoa está amarrada com isso quer queira, quer não. Já até escrevi antes que acho uma boa que desenvolvam conteúdo ficcional para esse público para ver se eles ficam distraídos o suficiente para nunca colocar em prática sua doença. Os desenhos que se fodam, o importante é proteger criança de verdade.

E só nesses dois parágrafos eu já fiz valer o título da coluna: minha opinião sobre o assunto passa MUITO longe de ser a norma, e em países como o Brasil até mesmo desenhos eróticos com crianças são motivo para punição severa. O normal é que não possa nem na ficção ‘sem atores’, e isso na maioria do mundo. Mas, que seja, eu sou voto vencido em inúmeras ideias sobre liberdade de expressão e punições legais em geral. Aparentemente é mais importante ficar ofendido com as coisas do que resolvê-las.

E talvez a surpresa para você que está lendo: eu puxei esse assunto pesado e polêmico apenas para situar a questão do ‘amor bidimensional’. Isso também tem fortes raízes na cultura japonesa moderna. Eu ainda acredito que o Japão é um balão de ensaio super concentrado do desenvolvimento da sociedade humana como um todo, ainda mais em tempos de superpopulação e hiperconectividade.

Com o advento da internet, o Japão ‘vazou’ para o resto do mundo. As loucuras deles começaram a fazer escola no mundo ocidental. Uma delas é o crescente número de pessoas que vai se afastando do contato humano e se perdendo dentro de universos ficcionais, em alguns casos até desenvolvendo sentimento românticos genuínos por traços e curvas num papel ou tela.

Como vivemos num país muito atrasado, temos uma saudável maioria esmagadora de pessoas que jamais entrariam numa loucura dessas. O brasileiro médio mais jovem até absorve algumas das insanidades da terra do sol nascente, mas precisa peneirar bem mais para achar um perdedor dessa escala entre os nossos ranques.

Analisando culturas um pouco mais avançadas, ou seja, onde as pessoas podem perder mais tempo fazendo babaquices do tipo, pode-se perceber um aumento exponencial do número de pessoas que se dizem honestamente apaixonadas por personagens de histórias em quadrinhos, desenhos animados ou videogames. Claro, são sempre os elementos mais rejeitados dessas sociedades que exibem o comportamento, mas aparentemente o número deles só faz aumentar.

E isso acontece em escalas diferentes, evidente: alguns realmente entram num relacionamento monogâmico com personagens, mas a grande maioria vai desenvolvendo uma relação cada vez mais próxima com esses desenhos, numa espécie de poligamia fictícia onde a atração por seres humanos de carne e osso vai sendo lentamente substituída pela das personagens preferidas.

Parece que eu estou falando algo absurdamente fora da realidade, mas se pararmos para pensar, sentir atração por um ser idealizado é uma das coisas que mais fazemos. Que jogue a primeira pedra quem nunca se decepcionou com um par romântico nessa vida. Imaginamos coisas no outro que não existem e vamos nos afeiçoando a elas. É normal ter algum grau de escapismo na atração.

Mas, e quando o ser idealizado nunca mostra o que é de verdade, por não ser de verdade? Bom, aí começamos a ver o que se chama no Japão de ‘geração herbívora’, gente que não se reproduz e não busca parceiros sexuais por não ver mais vantagens nisso. As taxas de natalidade só caem por lá, e estamos vendo isso acontecer em vários grupos onde a penetração das personagens ideais é mais eficiente.

E aqui eu volto um pouco mais ao começo do texto: essas personagens que populam as fantasias dos ‘herbívoros’ tem uma incômoda tendência de serem parecidas com as que ilustram o ‘lolicon’. Mulheres muito jovens (não é necessariamente pela pedofilia, é por serem inofensivas), impossivelmente graciosas, disponíveis e nascidas sem sequer a possibilidade de dizer não. A personagem do desenho não rejeita nada ou ninguém. Mas também não fazem nada que uma real poderia fazer.

É abrir mão do bônus por não querer pagar o ônus. A obsessão pelo fantasioso é uma falsa vitória: cidadão continua sozinho, mas cria em si a ideia de que não está. Esconde-se do mundo e vai perdendo contato com o que não é idealizado. A minha teoria aqui é que esse comportamento VAI se espalhar mundo afora e vai pegar em cheio as gerações ‘sempre online’.

Afinal, afeição bidimensional vai ser algo natural para eles. Amizades e namoros cada vez mais exibidos em telas iluminadas, oferta de conteúdo quase que infinito e possibilidades de explorar qualquer desejo sem ter de oferecer muito em troca. A zona de conforto dessa gente vai ser bidimensional, e uma personagem vai ser muito mais atraente para eles do que é para a maioria de nós que lidou com um mundo essencialmente em 3D, ao vivo.

E onde há demanda… se você está prestando atenção nas mudanças sutis pelas quais a nossa sociedade passa no campo cultural, o estilo japonês de belas e jovens garotas como personagens centrais de qualquer coisa (sério, qualquer coisa) está ficando cada vez mais difundido. O estilo ocidental – criticado até com alguma razão pelas feministas – de protagonistas homens fazendo coisas incríveis para conquistar e salvar mulheres vai dando cada vez mais espaço para a ideia de que você não precisa matar o vilão para ganhar a mocinha: ela já está lá te esperando em qualquer conteúdo que você acessar.

É como se ao invés de contar a história, desenvolve-se o “e foram felizes para sempre”. Esse tipo de pessoa que se apaixona por personagens fictícias não quer inspiração para conquistar seus objetivos, ele quer um simulador de final feliz. Esse é um perigo muito difícil de perceber, aposto que a maioria de vocês está achando que eu pirei de vez e estou falando sobre algo que não acontece na vida real.

Mas a fuga para o ‘ideal’ é muito real. Ela toma formas muito diferentes nas vidas das pessoas, a não ser que algo comece a dar motivos para elas convergirem nos mesmos pontos. E é isso que esse admirável mundo novo conectado está providenciando: padrões para idealizar o afeto de forma homogênea. As pessoas vão se afastando umas das outras pela simples frustração de ninguém ser tão ideal quando uma… bom, uma ideia.

E o ideal não tem limites: se o objeto do afeto é imaginário, ele pode assumir quaisquer características desejada. O cidadão que vai perdendo seu contato com a ‘guerra’ que é a busca por um parceiro também vai perdendo a ‘casca’ necessária para lidar com o diferente. Acaba querendo mais do mesmo, de preferência em doses concentradas. E é aqui que entra o ‘lolicon’ e suas vertentes menos pornográficas: regredir a idade do parceiro (mesmo que imaginário) apenas reflete o baixo desenvolvimento como pessoa. Essa gente não é nem pedófila no sentido estrito da palavra: não existe mais um parceiro ideal no mundo real. É o desenho pelo desenho. A graça é justamente não ser um humano real.

E isso é assustador, principalmente em larga escala. O ser humano vai lentamente tornando o próprio ser humano obsoleto. Quando o real é um problema, vemos coisas como quedas vertiginosas no crescimento populacional. Talvez comece a valer a pena forçar a barra para essas personagens ficcionais ‘crescerem’ um pouquinho mais, não pelo bem de crianças imaginárias, mas pelo bem de gerações que estão vindo por aí. Anotem aí: isso vai acontecer em escala cada vez maior, e vai chegar até mesmo em países como o Brasil. O Japão não é só um país diferente, ele é um aviso.

Para dizer que se assustou com o começo, para dizer que o mundo agradece por essa gente não se reproduzir, ou mesmo para dizer que eu estou dando sinais de velhice: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • “O Japão não é só um país diferente, ele é um aviso.”

    É mais ou menos dessa maneira que eu enxergo o Japão. Depois da Segunda Guerra ele se recuperou e se modernizou numa velocidade absurda, e para mim, no estado atual, o país representa tudo o de melhor (tecnologia e cultura pop – jogos, desenhos, músicas, filmes) e o de pior (as relações interpessoais e cultura corporativa) que o capitalismo e o desenvolvimento tecnológico podem oferecer. O que tá acontecendo por lá vai se espalhar pelo resto do mundo, só precisa que os países atinjam o nível de desenvolvimento econômico necessário. A baixa taxa de natalidade já afeta alguns países europeus; só a parte cultural (preferir personagens 2D a pessoas de carne e osso) que ainda encontra “resistência” pra ser “aceita” por outros lugares.

  • Peraí… De um lado o problema do virtual e o não aprofundamento das relações humanas sob o aspecto de cair num solipsismo do “ideal”. Seria a ideia romântica de transcedência aqui, só que abarcada nos moldes tecnológicos que dispomos hoje?

    De outro lado o problema do crescimento populacional negativo. Oras, será que é tão ruim assim, em certo sentido?

    O que mais reflito nessa bola toda é mais a respeito das relações humanas, confesso. Ok que se for parar pra ver, elas já estão gastas mesmo, mas tenho lá minhas dúvidas se um dia chegaremos a um ponto tão drástico assim, dado que ainda acredito – calcado num ideal romântico ocidental e tal – que nada substitui o material humano, o contato físico in loco e tal, em matéria de relações humanas. Vejo um sentido negativo nisso, acredito que as pessoas que partem para o “virtual” acabam que sentindo uma solidão e angústias terríveis, coisa que nenhum aparato tecnológico poderá “curar” por completo, apenas temporariamente provocando uma passageira sensação de prazer.

  • Em breve o “herbívoro”, que não tem ambição e não tem desejo em se relacionar com o sexo oposto, vai se tornar quase uma pessoa normal em comparação com o que está surgindo nas entranhas do Japão.

    Por enquanto estamos nos hikikkomoris, homens que literalmente não saem de casa e vivem da pensão dos pais ou prestando serviços online. Eles estão se fechando num mundo imaginário abastecido pelos mangás de histórias de colegiais onde o protagonista é sempre um rapaz calado, que não interage com ninguém, mas mesmo assim as garotas e mulheres o desejam. E geralmente o tal rapaz é a reencarnação de um deus ou coisa assim e tem poderes mágicos. Ridículo? Delirante? Sim, e é o que está acontecendo.

    E o que acontece com esses hikikkomoris quando chegam na meia idade, perdem as pensões e não conseguem se manter? Fazem uma viagem sem volta para a floresta de Aokigahara.

  • Os romanos foram se perdendo cada vez mais em putarias e narcisismos do tipo, achando que o mundo todo ia ficar daquele jeito…

    … os bárbaros estão à porta. Tanto abismo de cultura e inteligência entre povos, culturas e indivíduos nunca deu certo na história humana. Só vai se repetir o ciclo, deste jeito… mas Homo sapiens é pior que barata, vai dar um jeito nem que seja meia dúzia que sobre…

  • Bom, já há muito, eu canto a pedra de que serão os japoneses que farão a primeira ginóide.
    MAS, o seu texto me fez perceber que pode ser que eles não fiquem exatamente satisfeitos em ter ginóides cópias perfeitas de artistas ou similares.
    O que vai ter de mulher de carne e osso replicada para satisfazer aqueles japoneses…
    Deu em cima de uma colega de trabalho e tomou um chute? Replica uma ginóide igual. (Eu mesmo, faria um serviço de aluguel de ginóides à gosto do cliente.)
    Sua mulher morreu? Replica.
    Tantas outras coisas? Replica!
    Em A.I. (Aquele filme com aquele moleque-ator que não cresce nunca) em que o casal “troca” o filho em coma por um Andróide feito para ser o filho perfeito (Pra mim, aquele andróide foi o início da extinção humana), aborda o tema.
    MAS.
    São de japoneses que falamos…eu imagino o tipo de “infansdróide” (patente requerida) eles criarão.
    Há outros filmes ( e livros) que nos dão uma ideia dos panoramas.
    E, só pra constar, Asimov já sabia!

  • Jacob Burckhardt

    E digo mais: a tendência é apenas piorar, pois a partir da popularização das novas tecnologias holográficas e de realidade virtual(acreditem, elas já batem à nossa porta), caminhamos para um cenário idêntico ao profetizado pela série Futurama no longínquo ano de 2001.

    No episódio “I Dated a Robot”, um dos protagonistas descobre que é possível “baixar” da Internet a personalidade de qualquer celebridade num manequim robótico que passa a aparentar e comportar-se como a própria celebridade, programado apenas para agradar o seu proprietário, inclusive sexualmente. Daí o protagonista fica viciado nisso e os outros personagens tentam ajudá-lo exibindo um vídeo(hilário) sobre como os perigos de “namorar um robô” podem acarretar o fim da espécie humana, justamente pela redução da taxa de natalidade.

    Assistam. Futurama, como toda boa série de ficção, possui insights fantásticos sobre nossa própria realidade.

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