A adolescente chilena Valentina Madureira foi notícia nos últimos dias com um vídeo feito no seu celular, assim como tantos outros jovens já fizeram antes dela. Mas dessa vez, o tema do vídeo era bem diferente: Valentina pedia ao governo chileno pelo direito de… morrer. Portadora de fibrose cística, doença hereditária incurável, queria a eutanásia. O governo chileno não concordou, como era de se esperar. O que me leva à seguinte questão: de quem é a vida?

Talvez os religiosos encontrem resposta nessa pergunta aferindo à sua divindade em questão os direitos sobre a existência humana, mas para quem não sofre desse popular transtorno mental, a coisa é um pouco mais complicada. Em tese cada um é dono do próprio nariz, mas quando todos os narizes se juntam numa sociedade, começa a ficar mais difícil definir quem tem direito sobre o quê.

Na maioria dos países do mundo, o suicídio não é legal. Legal não é mesmo, mas eu me refiro à legalidade do ato. Se perguntarem para o Estado, você não é dono do seu destino se esse destino envolve se matar. Claro que no caso da garota do começo do texto, tem algo a mais: ela é menor de idade. Quatorze sofridos anos nesse mundo, mas ainda não o suficiente para ser vista como cidadã plena. Nesse caso, os pais tem o poder.

E se você for ver o caso, os pais dela não são terrivelmente contra. Digo isso porque mesmo querendo o fim do sofrimento da garota, duvido que alguém consiga ser totalmente favorável à morte de um filho. Valentina tem o suporte dos pais nessa decisão. Então, teoricamente temos o necessário para fazer valer o pedido dela.

Mesmo assim, sem sucesso. A vida de Valentina não é dela. E não estou criticando exclusivamente os chilenos, na maior parte do mundo as coisas funcionam de forma parecida. Se fosse no Brasil, ela receberia um até mais sonoro “não” das autoridades. Ainda são poucos os lugares que permitem a plena liberdade de ir e vir. Aliás, que eu saiba, só a Bélgica cede o poder de decisão sobre a própria vida para seus cidadãos. Por lá a eutanásia é totalmente legal, e não precisa estar sofrendo com alguma doença incurável, basta “pedir para sair”. O cidadão belga que quer morrer, seja lá seus motivos*, seja lá sua idade (até crianças podem) pode contar com apoio do Estado para fazê-lo de forma segura e indolor.

* Claro, não é festa. Precisa passar por todo um procedimento para se certificar que não é um capricho de momento, mas não precisa ser uma doença reconhecível, pode ser algo como no caso de um transexual que quis morrer depois de uma operação de troca de sexo mal sucedida. A pessoa tem a chance de provar que não aguenta mais viver, e precisa ser convincente.

Alguns de vocês podem achar mórbido, mas eu acho um belo exemplo de humanidade. Você se sentiria livre num lugar de onde não pode sair quando quiser? Os belgas criaram uma das legislações mais humanistas do mundo no assunto. Se eu fosse ditador do mundo, faria ainda mais: liberaria para qualquer um que pudesse consentir, sem burocracia. “Quer ir embora? Claro, a vida é sua. Pode ir! Posso ficar com seu som?”.

Mas calma, eu ainda não tenho esse poder. Voltemos ao tema. Evidente que na prática quem quer se matar o faz querendo o Estado ou não, mas é feio que um cidadão que paga seus impostos fique sem nenhum suporte na hora que mais precisa. Aconselhamento psicológico é importante, mas também é uma forma graciosa de dizer que a pessoa não tem escolha. Ela só é cidadã de verdade se não quiser se matar.

Sim, uma das funções mais importantes de um Estado é proteger as pessoas delas mesmas, mas o bom senso presente na maioria das legislações de países modernos prega que na verdade o governo interfere na vida da pessoa só se ela estiver causando problemas para outras. Quer beber? Beba! Quer beber e dirigir? Opa! As coisas mudaram aqui.

E não há nada de repreensível nesse modelo. Liberdade com limites razoáveis ainda é uma liberdade sobre a qual vale a pena montar uma sociedade. O que eu discuto aqui é se limar o direito de uma pessoa a tirar a própria vida é uma intromissão aceitável nesse modelo. Ou: se uma pessoa tem a posse legal da sua existência.

Como eu não sou jurista, fica complicado argumentar pelo lado técnico da coisa. Talvez exista um termo em latim perfeito para esse momento, mas não contem comigo citando-o. Nem é por esse lado que quero me enveredar. O que me chama atenção nesse modelo de ‘guarda compartilhada’ sobre nossa própria vida em relação ao Estado é a conveniência disso…

Ao gado não é dado o direito de escolher até onde vai viver. O gado tem função econômica e portanto tem liberdades até onde servem o interesse de seus donos. Alguns deixam-nos ir e vir pelas pastagens, outros os confinam em espaços apertados. O gado faz o que mais convém a quem tem poder sobre ele. Sim, animais irracionais criados em cativeiro não teriam muito mais o que fazer mesmo se tivessem liberdade irrestrita, mas é claro que essa é uma analogia barata para a humanidade.

Somos gado. Temos diversas liberdades pontuadas por importantes limites, muitos que existem para o nosso bem, mas gera – no mínimo – desconfiança que alguns desses limites diminuam nossa capacidade de subverter o sistema de exploração econômica vigente. O controle total sobre nossa vida vai de encontro com a ideia de que temos uma função a cumprir nesse mundo.

Temos uma função SE quisermos ter uma função. Mas obviamente não é assim que a banda toca: o gado tem que continuar aparecendo no campo se os donos quiserem continuar lucrando. E sim, estou meio comunista agora. É interessante que nos enxerguemos como passageiros e não como condutores. “Essa vida é sua SE você seguir o plano”.

Transformar quem quer morrer em pária social é desumanizar quem pensa diferente. Transformar em criminoso quem pactua com os desejos do suicida também é uma forma de colocar condições na própria existência. Você é um cidadão livre até decidir que quer ir embora. Não existe liberdade com portas fechadas.

Com a opção de sair dessa vida numa boa, pela ‘porta da frente’, muita gente decidiria que já aguentou o bastante. Que tudo o que a sociedade oferece ainda não é o suficiente para agradá-las. Essa porta fechada no que tange o direito à morte é sim uma forma de reforçar a ideia de que tudo vai bem e que vale a pena continuar funcionando dentro do sistema. Pior: que é sua obrigação não arredar o pé.

E a ideia do suicida pode ser contagiosa, não estou falando apenas de incentivar mais pessoas a abrir mão da própria existência, mas sim da ideia de que sair do jogo é aceitável. Não precisa se matar, pode só mandar aquele emprego mala às favas e ir morar numa Kombi velha. Toda a estrutura de poder que se beneficia de nosso trabalho depende de quem continua sustentando o sistema seja lá quais forem as dificuldades.

Humanidade com um toque de formigueiro. Nossas operárias não podem ficar zanzando por aí com uma arriscada noção de liberdade. Nossas vidas não são apenas nossas se tanto depende delas. Não somos protegidos do suicídio apenas por um abstrato amor à vida, somos protegidos de ideias perigosas. “Deus nos livre” de gente sem medo de quebrar esse contrato implícito nos segurando nesse mundo.

Até por isso eu nem entrei muito no lado religioso: sim, muitos dos que se opõem à eutanásia o fazem porque querem levar vantagem pós-morte regulando a vida alheia, mas religião nada mais é do que um instrumento de manutenção de poder e acúmulo de riquezas, sempre foi. Falando do sistema diretamente eu só cortei o intermediário.

De qualquer forma, quem paga o preço? Uma menina de 14 anos que não aguenta mais viver doente. Porque se ela tiver permissão para sair, todo mundo vai enxergar a porta. Sofra por nós. Sofra para que continuemos acreditando que a vida como nos é imposta pelos nossos donos é a única alternativa. O gado precisa continuar produzindo.

A vida é de quem pode mais.

Para dizer que detesta meus arroubos comunistas, para dizer que não sofre de transtorno mental (um dia eu escrevo esse texto com calma), ou mesmo para dizer que gostou porque pelo menos eu respondi a pergunta que fiz: somir@desfavor.com

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Comments (11)

  • Essas pessoas que buscam a eutanásia q na querem na verdade atenção e dengo, uma forma de pedir socorro por seu sofrimento. Pessoas que realmente querem morrer , rapidamente compram chumbinho ou se jogam de prédios e resolvem sua questão. Sou radicalmente contra, acho imoral diante da sociedade como exemplo de banalização da vida e de sua ordem natural. Sim banalização porque transforma a morte numa escolha pessoal, e não fatídica, a qual ninguém jamais retornou pra dizer que se arrependeu de morrer, ou se foi uma escolha certa. Já vi alguns videos de suicídio assistido, cheio de glamour e estímulo ao orgulho humano, que refletem a sociedade ridícula que vivemos onde tudo é relativizado e cheio de demagogia, no qual o bom senso da realidade foi banido.

  • Sempre achei que o Estado é contra o suicídio porque é um contribuinte a menos, não porque “a vida humana é importante e insubstituível” ou qualquer outra balela do tipo.

  • Já ouvi como “argumento” contra a eutanásia que existe a chance de a pessoa escolher morrer hoje e amanhã encontrarem a cura para a doença que ela teve. E que por isso não deveria ser legalizado.

    Agora eu me pergunto: MORRER sofrendo na cama pq está á espera de um MILAGRE te faria um martír? Pimenta no c# dos outros é refresco.

    • Janis, mesmo que a cura apareça em um futuro (é ciência e não milagre), a pessoa pode optar por não querer pagar para ver, não querer viver doente nem por um dia da sua vida…

  • Por falar em morrer com dignidade, eu fico pensando na prostração das vítimas do EI nos vídeos. Será o medo de ser torturado indefinidamente? Porque se não for isso, o cara já vai morrer mesmo, por quê não peitar, levantar, cuspir na cara, dizer desaforos sobre Maomé? Melhor ser metralhado brigando do que decapitado com cara de pastel.

  • Antes da Bélgica, a Holanda foi pioneira em permitir a eutanásia infantil. Se ela estiver disposta a esperar até os 18 anos, uma alternativa é imitar aquela americana que se mudou da Califórnia para o Oregon para aproveitar as benesses do Death with Dignity Act. .

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