Direito ao esquecimento.

É notório que com o amplo uso de internet e redes sociais a privacidade hoje praticamente não existe. Também é notório que somos todos bebês no uso de internet, uma ferramenta com menos de um século de vida. Ainda estamos aprendendo como usar, postura, ética própria e uma série de regras que só serão consolidadas após muita tentativa e erro. Não é fácil, estamos falando de uma ferramenta que te permite acesso a qualquer pessoa/lugar do mundo. Vai ser bem difícil uniformizar as condutas em um meio tão heterogêneo.

Mas, aos poucos, as regras começam a surgir. No Brasil e em outros países já toma forma um pedido justo e injusto ao mesmo tempo: o Direito ao Esquecimento. Confesso que ainda não tenho opinião formada sobre ele, mas como vocês sempre me acrescentam, quero trazer o tema para discussão.

O Direito ao Esquecimento não é novidade, ele existe e é reconhecido pelo Judiciário brasileiro faz tempo. É o direito que a pessoa tem de não ser confrontada para sempre com atos ou fatos do seu passado. A novidade é que agora esse Direito ao Esquecimento começa a encontrar lugar na internet. Ninguém esquece por completo do seu passado se o Google constantemente lhe lembrar e lembrar ao resto da sociedade.

Há um embrião se formando, um novo direito sendo gerado, que talvez vingue, talvez não. Se vingar, pessoas terão o direito de serem esquecidas pela internet, pela imprensa e até mesmo pela opinião pública. Atos ou fatos de um passado remoto não poderão ecoar para sempre sob pena de se tornarem “punições eternas”, violando até mesmo os direitos humanos. Uma pessoa teria o direito a que um passado distante fosse esquecido e para isso poderia pedir que todos os registros referentes a esse passado fossem apagados da internet e que o assunto não fosse mais falado. E ai? Temos ou não temos direito ao esquecimento?

Um dos primeiros julgados a esse respeito aconteceu recentemente, no STJ. A família de uma moça estuprada e morta em 1958 pediu que o fato fosse esquecido e os registros dele removidos do mundo online, por trazer enorme dor, sofrimento e até mesmo estigma social. O tribunal entendeu que permitir a “eternização”, quando esta gera sofrimento e dor, é desumano e atendeu ao pedido. À primeira vista, parece algo bastante racional: a família tem o direito de não ser eternamente relembrada da monstruosidade que fizeram, a deixar cicatrizar uma ferida sem ninguém cutucando e tirando a casquinha.

Porém, em uma visão mais ampla, o Direito ao Esquecimento me preocupa. A primeira preocupação está mais ligada à incompetência do Judiciário brasileiro. Deixar decisões de caráter subjetivo nas mãos de pessoas incompetentes e corruptas é terreno fértil para brotarem injustiças. As piores decisões dos tribunais nacionais estão de alguma forma atreladas ao subjetivismo. Quanto menores as amarras da lei, mais competência precisa ter o julgador para fazer justiça. Temo que pessoas ricas tem passados sórdidos apagados rapidamente enquanto pessoas de menos recursos fiquem para sempre estigmatizadas na internet, gerando uma nova forma de preconceito.

Ainda que este fosse um país justo, a preocupação persistiria. Será que não existem informações às quais temos o direito eterno? Pesando em uma balança o sofrimento de uma pessoa (ou de uma família) contra a utilidade pública para toda a sociedade daquela informação, o que deve prevalecer? QUEM vai decidir o que é de utilidade pública para o vasto público do mundo inteiro?

Criminosos podem querer apagar seus delitos. Políticos certamente apagariam todos os escândalos de corrupção ao qual estivessem atrelados. Nessa nova dinâmica social dificilmente alguém vai a livros consultar sobre a vida ou os feitos de alguém, isso é feito via internet. Se estas informações fossem apagadas da internet, muitas delas sumiriam para sempre. E mesmo pessoas que não fizeram nada que represente, tecnicamente, um “perigo” para a sociedade, poderiam apagar sua história, seus feitos, suas conquistas? Até que ponto nossa história é realmente nossa ou pertence ao mundo?

Uma das razões pelas quais o ser humano, em todos os tempos, em todas as idades, gosta tanto de histórias é evolutiva. Todas as culturas celebram o ato de contar histórias de alguma forma, seja uma tribo ouvindo o pajé em volta da fogueira, seja indo ao cinema ver um filme. Evolutivamente saber de histórias nos ajuda.

Lá nos primórdios, quando éramos homens das cavernas, os caçadores que voltavam para casa traziam muito mais do que comida. Traziam uma história da caçada. Todos ouviam atentamente, pois era uma forma de acumular conhecimento e majorar as chances de voltar vivo quando saísse para caçar também. Esse mesmo mecanismo nos faz gostar de histórias, contadas das mais diferentes formas, até hoje. Ir ao cinema e ver personagens vivendo aventuras e desventuras é uma forma de aprender sem que precisemos nos expor aos riscos que o personagem está correndo.

O que vai acontecer socialmente se boa parte dessas histórias nos forem negadas, pois seus protagonistas querem ser esquecidos? Um acidente de avião onde muitas vidas foram perdidas, um crime brutal, um filho assassinado. Não importa o roteiro da história, a verdade é que nunca sabemos ao certo o quanto ela pode tocar e ajudar quem a está lendo. Principalmente quando qualquer pessoa do mundo pode ter acesso a ela.

Eu mesma já vivenciei isso aqui no Desfavor. Um comentário bobo de um leitor acaba ajudando enormemente outro leitor, muitas vezes anos depois. Coisas que eu jamais mensuraria que ajudariam alguém acabam ajudando, seja pelo conteúdo, seja pelo simples conforto de saber que não é a única pessoa do mundo a se sentir desta forma. Será que a humanidade, evolutivamente falando, pode prescindir de todas as histórias que terão pedidos de esquecimento? Será que é saudável esquecer algumas coisas?

Esse ponto é, na minha opinião, o cerne da questão. O que diferencia o Direito ao Esquecimento que já existe do online. O que está escrito na internet vira de domínio público, é uma espécie de patrimônio da humanidade de qualidade duvidosa. Nossa realidade hoje é essa: internet como fonte primária de pesquisa, de leitura, de conhecimento. Será que seria bom para o ser humano começar a retalhar a colcha que usamos para nos cobrir?

Também entramos na complicada fronteira da liberdade de imprensa, pois o Direito ao Esquecimento não apenas apaga o que existe sobre o assunto como também pode representar uma proibição de falar sobre ele atualmente. Até que ponto não seria censura proibir a imprensa, a mídia ou dois idiotas que escrevem de graça de falar sobre algo? A liberdade de expressão encontra limitação quando gera sofrimento a terceiros? A sua história te pertence a ponto de você proibir que falem sobre ela?

Tem ainda a complicada situação onde uma mesma história envolve duas ou mais pessoas e há divergências sobre o desejo do esquecimento. Parentes de vítimas de um desabamento, por exemplo, podem divergir: alguns acharem que é muito doloroso o assunto ser ventilado recorrentemente, outros acharem que é necessário falar esporadicamente como forma de inibir que outro erro similar se repita e gere mais vítimas.

Hitler teria direito ao esquecimento? É justo parar de falar de uma vítima do Holocausto se assim sua família solicitar, por entender dolorosa por demais a lembrança? Até que ponto a humanidade não precisa ser obrigada a se confrontar com lembranças dolorosas como antídoto para que certas consequências sejam sempre lembradas, repelindo velhos erros que as geram?

Confesso que eu tenho uma inclinação por rejeitar qualquer direito ao esquecimento. Talvez um ranço tupiniquim traumatizado por um Judiciário vergonhoso. Quando surge um novo instituto jurídico eu, em cinco segundos, já começo a antever todas as desonestidades, injustiças e bandalhas que farão com ele. Mas… isso é motivo? Porque, vamos combinar, bandalhar qualquer coisa é possível. Se o direito parar de evoluir por medo de ser bandalhado, fica estagnado.

O que me intriga é que pela primeira vez em muito tempo, minha opinião jurídica vai de encontro com as mentes mais brilhantes, mais humanistas e mais evoluídas da atualidade. Eles abraçam de peito aberto o direito ao esquecimento, isso me deixou com uma pulga atrás da orelha. É como se Robert de Niro, Al Paccino e Dustin Hoffman elogiassem a atuação de alguém que eu considere um péssimo ator.

A decisão se torna ainda mais difícil quando pensamos que ao legislar sobre algo que afeta a internet, estamos legislando para uma ferramenta usada no mundo todo. Se hoje o Brasil decidir por retirar do ar uma informação com base no Direito ao Esquecimento e outros países quiserem continuar divulgando-a, como é que fica? Teremos um Tribunal Internacional de Cyber-Direito? Quem decide? E a soberania de cada país?

Como disse no começo do texto, não tenho opinião formada. Estou adiantando uma discussão, que ainda engatinha mas em breve vai acontecer em escala mundial. Pensem, reflitam, joguem pontos de vista nos comentários. Quando a discussão eclodir para valer, quero estar preparada.

Para dizer que no Brasil o povo só tem direito ao esquecimento quando aguarda atendimento na fila do hospital, para dizer que você tem direito ao esquecimento mas o resto do mundo não ou ainda para dizer que sua vida era mais simples quando não lia o Desfavor: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Tema complexo o bastante, que exige analise aprofundada e detida refexao sob varios aspectos; mas, por ora, vejo que o Direito ao esquecimento apenas beneficiaria àqueles que exercem seus podres poderes.

  • Quando injustamente seu nome sua honra é jogado ao vento, fica difícil juntar os pedaços, aquilo que a mídia escreve os ignores acreditam. Assim cada caso tem sua historia e estoria. Prejulgamentos e clamor público crucificaram Jesus Cristos, e muitos já o esqueceram, contudo ninguém pode ser banido, com a perpetuação dos meios midiáticos, ainda mais quando em se tratando de INOCENTES.

  • Não gosto disso. Se for assim, todo mundo vai esquecer que a cadela vagabunda maldita que o BM imbecil chama de “Rainha” fez pornochanchada, e se falarem dessa vaca pro meu filho, serei o primeiro a mostrar o filme pra ele e desconstruir qualquer conceito “positivo” que ele queira formar sobre tão desprezível piranha.

  • Sou contra essa história de direito ao esquecimento quem leu o livro 1984 sabe muito bem que isso pode e possivelmente vai ser usado pra manipular fatos históricos e que apesar de supostamente atender o desejo popular uma medida dessas vai acabar sendo usada por uma elite política ou financeira para auto promoção, quem controla o passado controla o futuro e o passado já tem sido manipulado e distorcido pela mídia o suficiente

  • Eu sou a favor do direito ao esquecimento na vida privada; na vida pública eu já não tenho certeza… talvez devesse demorar mais para esquecer.

  • Quando eu penso numa pessoa bêbada fazendo alguma cagada, penso no direito de esquecimento. A única “vítima” dessa pessoa é ela mesma, o fato não agrega à história e pode ser um problema para arrumar emprego 20 anos depois.

    Quando eu penso em um acidente, no caso do estupro ou em pessoas famosas, já penso que a história que aconteceu ali não pertence mais a pessoa. Pode ser doloroso para a família, mas existem interesses maiores como saber um modo de operação de um esquema criminoso, uma falha não pensada em construções, enfim, algo que é útil para outras pessoas.

    Só não sei como faria para não deixar nas mãos de um juiz que anda de Porsche ou é declarado Deus por sentença como separar uma situação da outra.

    TALVEZ, ideia embrionária, se a decisão for por “vítima” e a história em si, preservada. No caso do estupro: a vítima pode pedir para não ter seu nome divulgado porque ele não fez nenhuma vítima. O estuprador não tem esse direito. A história tb não teria direito de esquecimento, apenas as pessoas. Assim os jornais poderiam contar histórias e, se alguém se sentisse prejudicado, poderia pedir para substituir seu nome por um fictício ou iniciais. Algo assim…

    • Concordo muito com a ideia de que as pessoas tem direito ao esquecimento, histórias não.
      O mais importante ao dizer o pode e o que não pode ser esquecido e o quanto de vidas o fato impacta. Creio que quando envolve políticos o buraco é mais embaixo. Não dá pra conceder Direito ao Esquecimento a um corrupto, porque ele prejudicou a nação inteira ao se corromper.
      No mais, é impossível fazer todo mundo esquecer algo. Se tirarem da internet, teremos as revistas, os jornais, os livros e as próprias pessoas.

      • Nos EUA os condenados por crimes sexuais são expostos publicamente, a vizinhança toda sabe que o sujeito já estuprou uma mulher ou abusou de uma criança. Eles acham que isso evita novos abusos. Me parece terrível, mas também me parece funcional. Esse assunto me confunde.

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