Nocaute.

Mat Silva era indiscutivelmente a melhor lutadora de MMA do mundo de todos os tempos. Batizada como Matilda, Mat havia vencido suas últimas vinte disputas pelo cinturão de pesos-galos femininos, e não parecia haver mais nenhuma atleta capaz de fazer frente aos seus talentos. O que começava a diminuir o interesse da mídia e patrocinadores para sua categorias. Era chato ver a mesma luta rápida e desigual seguidas vezes… foi quando tiveram a ideia: Mat lutaria contra um homem.

O mundo das artes marciais entrou em guerra civil instantaneamente. Machistas, feministas e todos os “istas” possíveis e imaginários discutiam acaloradamente na internet: para uns um absurdo, para outros uma bem-vinda novidade. Tiveram que criar uma nova liga especial só para essa luta, e só conseguiram aprovação para realizar o evento num paraíso fiscal caribenho, mais afeito aos dólares do que a quaisquer preocupações com as condições de saúde dos lutadores.

Ah, já ia me esquecendo: sou importante nessa história, pelo menos como coadjuvante. Mat era a grande estrela, eu, o desafiante. Na época eu me chamava Paulo “Pancadão” Rodrigues. O apelido não fazia muito meu gosto, mas meu treinador achava o máximo. A questão é que eu já tinha conseguido duas vitórias nas minhas primeiras lutas e muitos viam potencial em mim. E como eu pesava e media exatamente o mesmo que Mat… nunca fui muito grande… um produtor americano entrou em contato com meu time.

Mas é claro que eu recusei na hora. Eu tinha uma carreira em frente e muitas contas para pagar… imagina só lutar contra uma mulher? Se eu ganhasse, seria conhecido como o cara que bateu numa mulher, se eu perdesse, seria conhecido como o cara que apanhou de uma mulher! Não tinha nada para mim naquilo. Quer dizer, nada além de alguns milhões de dólares.

E eu disse que tinha muitas contas para pagar, não? Minha família inteira dependia de mim, as bolsas que eu ganhava não resolviam muita coisa. Passei algum tempo remoendo a ideia, escutando gente com opiniões fortíssimas seja de um lado, seja do outro. Um amigo de treinamento até me disse que eu tinha ganhado na loteria: era só dar um sopapo na menina que ela caía e eu estava rico. Não precisava nem estragar a moça, que cá entre nós, não era de se jogar fora.

O engraçado é que minha mãe foi uma das que mais me incentivou: segundo ela, a menina sabia o que estava fazendo. Muitas mulheres com as quais eu conversei falavam coisas parecidas. Uma moça que treinava na academia falou grosso comigo dizendo que eu tinha a obrigação de lutar porque seria sacanagem negar a luta contra Mat só porque ela era mulher. Disse que eu estaria lutando pela igualdade.

Mas cá entre nós, foram os milhões de dólares que me fizeram aceitar. Nenhuma TV aceitou mostrar, mas o pay-per-view na internet vendeu tanto que minha bolsa já estava quadruplicada antes mesmo de pisar no ringue. E tudo o que eu ganhei, a moça levou dez vezes mais. Justo, eu era um Zé Ninguém, ela era a rainha das artes marciais.

Bom, era só bater o peso e partir para a luta! Minha vida já estava ganha… não precisaria mais trabalhar depois disso. Meus pais teriam uma casa nova, eu viveria de renda… mas ainda era difícil lidar com a ideia que eu ia bater numa mulher. Mas os produtores da luta foram facilitando as coisas para mim… eram bons de papo, eles.

O acordo era o seguinte: eu ia dar alguns sopapos nela, mas nada de muito violento, e de preferência não na cara. A cara dela vendia quase qualquer coisa se estampada num pôster! Tinha toda uma “etiqueta” de não pegar nos peitos dela e não ficar em posições muito… sexuais… para não criar nenhuma imagem vexatória para a garota. Eu tinha que manter a luta em pé e segurar pelo menos um round inteiro.

Lá pelo segundo round, eu tentaria uma imobilização “respeitosa” ou daria uma sequência um pouco mais forte. A juíza da luta estava treinada para fechar antes mesmo de Mat ficar tonta para evitar danos desnecessários. Até onde eu sei, a única que não sabia de nada era justamente minha adversária. Me avisaram que ela viria com tudo, que estava treinando como nunca… também não era para eu ficar de guarda aberta feito um tonto na frente dela: todo mundo já desconfiava de uma marmelada com a vitória dela.

Eu tinha que ser um ator perfeito. Ganhar a luta dando a impressão que foi difícil e dar uma abertura para uma revanche futura. Não ficaria feio para ela perder para um homem dando trabalho! E ninguém ia desconfiar. Um dos produtores até disse que se eu fosse perfeito, faríamos a próxima luta ainda mais lucrativa e nessa sim eu perderia. As quantias eram incríveis! E eu imaginei o roteiro de um filme na minha cabeça… não ligava mais de ser um ator, até me convenci que as mulheres do mundo todo se sentiriam muito mais confiantes depois da revanche. Seria realista! Mat treinaria mais ainda e aí sim conseguiria o impossível! Imagina o exemplo para as meninas?

Mas veio a luta. Batemos o peso, nós dois. Ela me deu uma encarada feia para as fotos, eu fiz o mesmo. As fotos ficaram ótimas! Na noite seguinte, o ginásio estava cheio e super produzido! Era só para a internet, mas tinham umas cem câmeras por todos os lados. O mundo todo estava vendo ou acompanhando de alguma forma. Eu entrei primeiro, escolhi um rap bem pesadão para botar um clima de vilão. Todo mundo me vaiou.

Ela entrou com uma música pop, pulando e dançando como sempre fazia. O povo adorou. O anunciador teve que pedir silêncio umas três vezes para pararem de aplaudir, assoviar e berrar o nome dela. Tocamos os punhos, ela disse que ia me matar! Eu quase ri, mas lembrei do script: não podia fazer pouco dela. Tinha que ganhar meio apertado e dar impressão que tinha chance de fazer uma nova luta.

Gongo. Primeiro round. Ela veio para cima de mim feito um raio. Eu vi a abertura para enfiar o primeiro golpe, mas vacilei. Ela não. Mandou um direto no meu queixo que me fez bambear. Logo me protegi e cambaleei para o outro lado do ringue. Ela me seguiu e tentou um chute voador. Passou muito perto. A platéia estava ensandecida! Dei um soco meio fraco nas costelas dela, que ela nem fez menção de sentir. Trocamos alguns socos, os dela bem mais fortes que os meus, mas a maioria acertando a guarda ou cruzando os ares em vão. Ah, vocês viram a luta, quem não viu? Fomos até o final do primeiro round com ela acertando mais golpes do que eu. Tudo bem, esse era o script.

Segundo round: a luta ficou meio estudada no primeiro minuto, eu já estava mais atencioso com os avanços dela. Estava mais ou menos na hora de começar a minha parte. Corri para derrubá-la e aplicar uma finalização. Já tinha sentido que ela não tinha força para me encarar naquela situação, era só entrar e fazer o básico na base da grosseria mesmo! Muito melhor do que bater naquele rostinho famoso. Bom, eu corri. Mas ela leu perfeitamente meu movimento e acertou aquele soco… histórico…

A imagem mais compartilhada da história da internet. E o meu rosto sendo amassado pelo punho de uma mulher nela. Eu ainda não lembro muito bem de sair do ringue, mas o vídeo diz que eu até parabenizei ela, escorado por duas pessoas. Para falar a verdade, a minha primeira memória mesmo depois de levar o soco foi a da conversa com um médico me perguntando seguidas vezes se eu lembrava o meu nome.

Na hora eu lembrei. Mas hoje em dia eu costumo esquecer… desafiantes desconhecidos não ganham direito a revanches e eu virei notícia velha alguns meses depois. Não havia mais muito o que espremer do velho “Pancadão”, aquele que apanhou de uma mulher. Muita gente ainda diz que foi tudo arranjado e duvida que fui a nocaute de verdade, mas o fato histórico é saboroso demais para ser esquecido.

Mat lutou contra homens duas vezes mais depois disso. Outro pobre coitado foi colocado em seu caminho numa luta lucrativa. Ela venceu por pontos dessa vez… não foi unânime, mas até que foi convincente. Ela saiu bem machucada. Decidiram que era o bastante e ela voltou a lutar contra mulheres. Aposentou-se invicta dois anos depois.

Mas eu disse que ela lutou contra homens mais duas vezes, não? Ela me encontrou alguns meses atrás. Disse que ficou sabendo da armação dos produtores e que não ia sossegar até lutar comigo de novo, mas dessa vez sem nenhum show. Eu e ela numa academia de boxe da região, sem mais nenhuma viva alma para presenciar além de um médico de confiança. Três rounds de cinco minutos.

Aceitei. Ganhei a luta no segundo round com uma finalização. Vinte e duas vitórias e uma derrota. Ainda sim um cartel impressionante! Melhor que o meu. Antes dela sair, eu perguntei se ela queria sair para tomar alguma coisa um dia desses… ela olhou para a minha cara com uma expressão debochada, e bufou um sorriso de desdém.

E foi-se embora sem dizer mais nada.

3… 2… 1… FIM!

Para dizer que esperava tanto uma reviravolta que está surpreso, para dizer que pagaria para ver uma luta dessas, ou mesmo para dizer que o texto é “ista”: somir@desfavor.com

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Comments (1)

  • Dizem que o Paulo Pancadão só ganhou porque usou substâncias proibidas, do contrário teria tomado uma surra da Mat.

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