Tédio.

Minha internet parou de funcionar. Ainda estou para descobrir como vou postar este texto, mas pelo menos esse hiato de conectividade me fez perceber uma coisa, e só por alguns segundos: fiquei entediado, e fazia muito tempo que eu não ficava entediado desse jeito. Talvez tempo até demais…

Claro que ninguém depende de internet para fazer algo com seu tempo nessa vida. Tem livros para ler, louça para lavar… textos para escrever. Nem um nerd confesso como eu poderia depender tanto assim da grande rede. Alguma coisa a gente sempre arranja para fazer. Mas, naqueles segundos depois da realização que eu não poderia tomar mais uma dose de preciosa (e provavelmente inútil) informação, o tédio apareceu.

E eu mal lembrava dessa sensação. Porque tem diferença entre aquele tédio de fazer um trabalho maçante e o de um cérebro pedindo estímulos. Uma tarefa enfadonha é o tipo da coisa que quase todos nós lidamos diariamente, seja profissionalmente ou pessoalmente. Uma conversa ruim gera tédio. Esse é o comum, mas… aquele que vem quando não estamos fazendo ou sendo expostos a nada? Parece que este está entrando em processo de extinção.

E talvez aí more um risco para o nosso futuro. É cada vez mais difícil não ter nada para ocupar a cabeça. O mundo está no nosso bolso, e todo mundo parece ter celular com conexão à internet. E se você tiver uma condição de vida um pouquinho melhor, milhares de opções de lazer e entretenimento no conforto da sua casa. Não é mais trabalhoso viver cercado de estímulos o tempo todo, é a norma.

É como se o mundo conectado tivesse virado um show de variedades sem pausas comerciais. É informação atrás de informação sem nenhum tempo para perder o foco, um minuto que seja. Ainda dá para parar um pouco na vida real, mas pela quantidade de gente que não desgruda os olhos da telinha nem para dar bom dia, talvez até esse refúgio esteja ameaçado.

Mas que efeito tem isso na nossa mente? Bom, não sou especialista em porcaria nenhuma, então posso apenas conjecturar: como vamos saber se o caminho é esse mesmo se não pararmos para nada? Cidadão acorda ligado, vai trabalhar ligado, volta para casa ligado… e cada vez mais tem dificuldades para dormir. Somos bombardeados por tanta informação que onde fica o tempo para colocá-la em perspectiva?

O tédio deveria ter um papel regulador nessa torrente de fatos, ideias e opiniões. O momento no qual reduzimos a velocidade para observar a paisagem. Como se déssemos ao cérebro a oportunidade de buscar nos seus arquivos alguma coisa para fazermos, e principalmente: dar uma chance a ele de nos surpreender.

Há algo de previsível nessa sequência ininterrupta de estímulos pela qual estamos cada vez mais acostumados a conviver. É mais difícil ser subversivo se você nunca consegue parar de pensar. Muita gente ocupa cada segundo da sua vida com uma atividade, seja física ou mental. Espaços vazios no seu calendário estão virando sinônimo de fracasso, como se você estivesse vivendo menos se não se mantivesse em movimento perpétuo.

Começo a sentir falta de ter um compromisso com o tédio. Minhas fases mais criativas sempre calharam de se misturar com as mais ociosas… essa coisa toda de usar seu tempo com máxima eficiência te ajuda a produzir mais, mas não a produzir ‘diferente’. É como se a ética profissional do empregado produtivo tivesse tomado de assalto até mesmo nossa vida particular. O seu chefe prefere que você faça mais com cada vez menos tempo.

E nessa nossa busca por uma experiência mais completa de nosso cada vez mais escasso tempo, incentivamos o boom de conteúdo disponível nessa era pós-internet. Tem MUITA coisa para consumir seu tempo, até porque não há mais uma força como a TV controlando o uso dessas horas livres da pessoa. Cada um pode montar seu cardápio de conteúdo como bem entender, e espremer o máximo de estímulo possível em cada minuto disponível. Ganhamos a guerra contra a mídia nesse aspecto: agora eles que tem que correr atrás da gente.

E um admirável mundo novo desses ainda obedece as regras de oferta e procura: se quem produz conteúdo (e pode ser filme, música, um programa feito um restaurante ou uma balada… coisas para ocupar nosso tempo) precisa ir buscar cada um de seus consumidores, eles vão começar a apelar mais. Precisam te pescar no meio de um oceano de clientes potenciais! E aí a ideia que anda descabelando todos da minha área: nunca foi tão fácil fazer publicidade, nunca a publicidade foi tão ineficaz.

Todo mundo está brigando pela sua atenção produzindo conteúdo praticamente infinito, e ainda sim o tempo é um recurso finito. Ninguém tem mais tempo para ficar tão entediado ao ponto de clicar ou reagir a uma propaganda que não o interessa naquele EXATO segundo. Erre seu cliente potencial por alguns minutos e ele sequer vai saber que você existe! Mas isso aqui não é um Publiciotários: estou falando disso para exemplificar a guerra sangrenta pela atenção das pessoas que ocorre por trás de todo o conteúdo que você consome.

Essa informação que consumimos é cada vez mais lapidada para gerar respostas rápidas e sobreviver na tormenta de concorrentes com as quais tem de lidar o tempo todo. Somos incentivados a ficar ligados o máximo possível justamente para termos tempo de consumir tudo isso! Peraí, eu não disse que tínhamos ganhado a guerra contra a mídia?

É claro que eu menti. Essa guerra não se ganha. Nossa sociedade é capitalista e funciona dessa forma: somos o que consumimos. Ou pior, somos SE consumirmos. O tédio ficou obsoleto assim que tiramos das mãos do mercado de conteúdo o controle sobre nossos horários. Essa é a batalha da vez, e pelo visto estamos perdendo feio.

Agora, isso quer dizer que eu acho que estão atacando nosso potencial criativo do tédio por causa de dinheiro? Não necessariamente. Parece mais uma consequência desagradável do que algo planejado. Gente criativa vale muito dinheiro nesse mundo, e elas fazem uma imensa falta no mercado de trabalho. Pelo jeito, o cobertor da humanidade sempre vai ser um pouco curto demais: cobrimos de um lado, descobrimos de outro.

O mercado tem que funcionar, a sociedade toda depende disso. O que ficar no seu caminho eventualmente vai ser destruído, e não há muito o que se fazer para inverter uma tendência tão global. Para cada pessoa olhando ao seu redor, dez vão enfiar o nariz num celular e garantir que não haja um segundo sequer ‘desperdiçado’. Acho que mesmo que inconscientemente, a espécie tende a seguir o fluxo mais útil para o sistema no qual vive.

Mas o que eu posso fazer – além de te entediar com este texto – é dizer que mesmo que não se fale muito disso por aí, deixar o corpo e a mente em ‘ponto morto’ de vez em quando te ajuda a perceber um pouco mais sobre o mundo á sua volta e a encontrar caminhos diferentes. Desperdiçar algum tempo com o tédio é uma ferramenta criativa poderosa. É muito difícil deixar de fazer o mais simples se você está morrendo de pressa.

E também dizer que essa pressa toda é um tanto artificial. Somos mais ativos e conectados que nossos antepassados por natureza, assim como os que herdarão esse mundo também serão. Mas isso não quer dizer que precisamos de tanto estímulo assim para viver uma vida interessante e produtiva.

E se este texto não servir para você, vai servir para mim. Se não quiser perder o tempo de testar um pouco de tédio na sua vida, assim que eu tiver meus resultados, eu conto para vocês o que acontece. Bom, agora é melhor partirmos, pode ter acontecido alguma coisa importante no mundo nesse meio tempo…

Para dizer que não se identifica com esse texto, para dizer que eu sou sua dose de tédio dia sim dia não, ou mesmo para dizer que se eu tivesse um pouco mais de calma poderia ter escrito três textos só com esse conteúdo: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • E isto parece que só vai piorar. A sensacao é de que os cerebros estao se robotizando.

    Bem, fiquei um bom tempo sem internet. O bicho pegou feio no meu orçamento e meu pacote mensal foi suspenso.

    O ocio, de fato, me favoreceu, como o Somir constatou. De vez em quando é bastante produtivo!
    Porem, seria impossivel nao passar a impressao de puxa saco: ficar sem o Desfavor foi a pior parte.

  • É, concordo com a análise do Somir. Nos meus bons tempos de graduação que não tinha tempo pra nada e surtava de levinho, já apontava para alguns colegas a necessidade de um pouco de ócio também, não só pra descansar, mas pra arejar a mente mesmo; pensar, colocar as coisas em perspectiva, ouvir a voz interior, sabe? Acho que as pessoas precisam disso as vezes, e fugir dela se ocupando full time não é legal.

  • Se a Internet para, meu coração para junto! Já viram agora ligação telefônica grátis via voip no whatsapp? Logo vou mandar a minha operadora do celular ir chupar e só usarei a Internet.

  • Estava falando sobre este assunto hoje mesmo, aí chego aqui e vejo esta ótima análise do Somir. Cada vez o mundo (não só o mercado de trabalho) exige mais: seu emprego, fazer atividades físicas, fazer cursos, estudar, estudar, estudar, cuidar de casa… E onde sobra o tempo para o ócio criativo? Dormimos pior, engolimos qualquer lanche, fazemos tudo às pressas para ter tempo de vencer todos os compromissos, e vamos atrofiando nossa criatividade. Muito triste.

    • Mas acho que o problema nem é o excesso de atividade física, mas o excesso de atividade mental “pronta”. Dificilmente estamos fazendo algo “presentes” de corpo e cérebro. Normalmente limpamos a casa lendo facebook, estudamos com música, trabalhamos lendo notícia do r7 e g1. Consumimos um monte de informação facil e pronta, o cérebro não cria mais, não fica livre para pensar.

      É difícil ficar sem internet porque o cérebro gosta dessa ocupação facil (por isso gostamos de tv, o conteúdo é pronto, não precisa esforço). Se cuidássemos da casa, dirigíssemos, trabalhássemos e estudássemos sem internet, sem ler notícias inuteis e sem ficar conversando por whats, teríamos mais tempo para pensar nessas coisas diferentes.

      Domenico de Masi curtiu esse texto. Rs

  • Então tio Somir é gente como a gente, que fica entediado sem internet?
    Eu surto sem WiFi e 4G. Sem o 4G o que eu vou fazer no horário de trabalho? Só trabalhar? Isso acaba comigo!

    • Somir é o próprio patrão, usar internet no seu tempo de trabalho é uma decisão que ele pode tomar sem faltar com a ética. Ahhh… os benefícios de ser autônomo… morro de inveja.

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