Boca maldita.

+Há pouco tempo uma onda invadiu a web. Várias adolescentes americanas postavam fotos e vídeos ensinando como ficar com os lábios iguais de Kylie Jenner. Para quem não sabe, Kylie é irmã de Kim Kardashian. (…) E claro que as garotas não estão usando produtos de R$ 210*. Elas usam potes de remédios, tampinhas de xampu, tampinhas de qualquer coisa que deixam hematomas tão feios e até piores que os produtos ditos “usados” por Kylie.

Não entendeu? Calma que piora. Desfavor da semana.

SALLY

O modismo da vez em redes sociais é um desafio que consiste em deixar sua boca parecida com a boca de uma subcelebridade americana, Kylie Kardashian (uma moça no nível “Mulher Fruta dos EUA”). Para isso, meninas do mundo todo estão usando métodos caseiros e duvidosos se sucção, com o objetivo de causar um edema na região e, consequentemente, aumentar seus lábios.

Que as pessoas faziam loucuras por estética eu já sabia. Que chegavam perto da mutilação e causavam sofrimento em si mesmas por causa de padrões questionáveis de beleza também. Mas que estavam fazendo isso ao melhor estilo “faça você mesma” é novidade. Pelo visto ultrapassamos a fase onde se procuravam especialistas (ainda que não muito competentes) para melhorar a estética. A moda agora é receita caseira, custe o que custar.

A “técnica” gera resultados passageiros (horas, no máximo um ou dois dias) e deixa sequelas que vão desde hematomas na região até flacidez a longo prazo. Será que a pessoa não percebe que não vale de nada ter um lábio carnudo se estiver tudo roxo com um puta hematoma no entorno? Vale a pena passar por isso para ficar com a boca carnuda por algumas horas? Muita gente acha que vale e está aderindo.

Quando vejo uma massa de pessoas agindo como completos idiotas me bate um certo desânimo. Vislumbrar uma imbecilidade cavalar sendo propagada massivamente me faz sentir inadequada, ultrapassada e desmotivada. Eu vivo em um mundo onde ISSO é normal. Pouca vontade de viver em um mundo assim. Me incomoda, pois quando você não é um medíocre, egoísta, filho da puta, o entorno te afeta. Talvez seja por isso que as pessoas estão agarradas a seus pau de selfies tirando fotos de si mesmas sem parar: olhar em volta está realmente deprimente. Talvez os egoístas, medíocres, filhos da puta estejam certos em ser assim.

Onde estão os pais dessas garotas? Não percebem os hematomas? Não percebem. Devem estar trabalhando muito e se autoperdoando, afinal, tem “contas para pagar”. Devem estar na internet vendo pornografia. Devem estar imersos em si mesmos, em seus smartphones, em seus problemas. Cegueira emocional. Imagina só que horror, se uma pessoa não é capaz de olhar para os próprios filhos, que tipo de amigo ou parceiro essa pessoa será? Quero distância!

Garotas estão fazendo uma coisa bizarra, e até mesmo nociva, de forma pública, na internet, e ninguém no entorno toma qualquer atitude: pai, mãe, tia, avó, amigos, parentes, professores, Conselho Tutelar, sei lá… ALGUÉM. Não, ninguém. Estão fazendo, está ali estampado e ninguém parece se chocar com isso.

Por sinal, não vi nem mesmo a imprensa se manifestar de forma ostensivamente contrária, tudo que vi é aquela paumolescência de noticiar típica do Brasil: narra o fato, escuta um especialista e se mantém na neutralidade. Como se jornalismo pudesse ser imparcial. Como se jornalismo com opinião tivesse menos mérito.

Além de tudo, tem também a questão da burrice. Basta olhar para uma foto antiga da tal subcelebridade para ver que esses novos lábios são fruto de um procedimento estético qualquer desses de preenchimento. A boca não é dela, qualquer pessoa com um cérebro do tamanho de um caroço de uva consegue perceber. O que se passa na cabecinha de uma pessoa de achar que pode reproduzir os resultados de um procedimento cirúrgico em casa sem problemas? Tem titica de sabiá amarelo na cabeça, só pode.

A menina quer a boca da Fulaninha. Erro numero 1, o certo é querer ser você mesma, mas vai, são adolescentes, a gente não espera muita cognição. O grave reside no fato dela não aceitar a impossibilidade disso acontecer, naquele momento, em sua vida. Não dá para fazer o procedimento? Isso não existe para uma geração que desconhece o “não”, imediatista e com o mundo ao alcance de um clique.

Ela quer? Ela vai fazer, ela mesma vai fazer. Vai no Google e pesquisa como inchar a beiça, escuta qualquer opinião, de qualquer pessoa (até mesmo de desconhecidos que assinam com pseudônimo), foda-se o que isso vai acarretar a longo prazo. Adolescente não costuma pensar a longo prazo, justamente por isso os pais tem que estar atentos para dar um sacode quando fazem merda.

Nem adultos estão pensando direito, Desfavor ta aí e não me deixa mentir. Gente passa aqui para pedir consulta veterinária para o gato, ajuda no processo criminal, indicação de bomba para malhar e mais qualquer informação que esteja orbitando em torno do texto do dia. Ninguém nem sabe quem escreve, mas se coloca nas mãos dessa pessoa mesmo assim. Eles querem? Eles topam tudo para conseguir imediatamente.

Lidar com uma negativa, com uma frustração, nem pensar. Essas meninas vão lá fazer um vácuo caseiro nos lábios, ficar com o rosto cheio de hematomas, mas ficam beiçudinhas. É o império do imediatismo, a incapacidade de frustração, coroada pela inércia contemplativa dos pais. Esse mundo está um aterro sanitário de valores, puta que me pariu, se existe vida inteligente em outro planeta, saibam que estou aberta a abduções! Prefiro viver em uma gaiolinha e ser pet de ET do que continuar por aqui. Só vê se não abduz um pagodeiro junto, que eu vou morrer de desgosto de coabitar com essa escória.

E, vocês sabem, onde tem otário tem esperto lucrando em cima. Já estão disponíveis no mercado “sugadores” especiais para aumentar a beiça por valores exorbitantes (mais de R$200,00). Uma espécie de bomba peniana só que de boca. Para quem tiver curiosidade, pesquisa aí: CandyLipz. Deprimente. Estão ficando ricos às custas da otarice alheia.

E para piorar, a coisa de inchar a beiça ainda vem sendo lançada como um “desafio”. Ou seja, alguém te desafia a fazer, se você não fizer, você “perde”. Já seria péssimo se fosse ideia de mentes idiotas, mas, para piorar, tem também a pressão social para fazer aquilo. Olha… vocês são LOUCOS de colocar filho nesse mundo, vocês tem consciência disso? Boa sorte aí…

Para dizer que vai fazer o desafio do olho roxo com sua filha, para criticar o tema escolhido sem perceber sua abrangência ou ainda para só agora reparar naquele roxinho no canto da boca da sua filha: sally@desfavor.com

SOMIR

Como a Sally explicou, eu não vou repetir. Vai o texto dela primeiro. Agora, vamos ao ponto: que adolescentes são idiotas e irresponsáveis, vá lá. Ainda mais essas gerações criadas por computadores e tablets… não que eu não fosse um adolescente idiota e irresponsável (faz parte), mas como minha fonte de rebeldia ‘em casa’ era no máximo a MTV, ainda havia um certo filtro nas informações que eu recebia. Alguém se responsabilizava pelas informação passada. Se a MTV incentivasse seu público a causar danos ao próprio corpo, perderia muito dinheiro com a confusão que aconteceria depois.

Sem contar que tinha mais ‘rua’ nessa equação. Eu escutava minhas péssimas ideias de pessoas reais, ao vivo. Ver um evidente perdedor te sugerindo que drogas são uma coisa linda te deixa com o pé atrás. Pose ao vivo não funciona tão bem quanto pose de rede social. Você percebe o efeito que as coisas tem nas pessoas vendo na prática. Adoro essa nova era de comunicação instantânea, mas nada é de graça nessa vida.

Os adolescentes idiotas e irresponsáveis de hoje recebem informação sem filtro e com pouco contexto. Muita informação contaminada para muitas mentes em desenvolvimento. Uma história como essa que ilustra o texto de hoje não iria muito longe na minha época… as meninas provavelmente veriam a portadora da ‘grande ideia’ com os lábios inchados e machucados. Algumas antinhas fariam do mesmo jeito? Claro! Mas fariam com a informação completa: causa e consequência. E evidentemente seria menos impulsivo.

Porque isso é uma variável na equação: quanto mais rápido você pode fazer algo, maior a chance de você não pensar direito. A garota que vê o ‘desafio’ na rede social está a segundos de fazer a besteira. Em outros tempos, ela receberia a informação, conversaria com outras pessoas ao vivo, teria que voltar para casa e só aí faria. Nesse meio tempo o impulso passa e o instinto de preservação começa a falar mais alto. Não tem mil exemplos na rede social dando a impressão que tudo vai dar certo, a pessoa está sozinha com sua ação. E numa dessas o cérebro pode pegar no tranco.

Se você precisa correr para fazer algo para não perder o ‘buzz’ da rede social, tende a pensar no que está fazendo. A internet é maravilhosa, mas tende a agir como um grupo de amigos desmiolados te incentivando o tempo todo. Ainda mais para quem não desenvolveu proteção contra a pressão do grupo. A rede corre mais rápido que o pensamento, uma cacofonia de opiniões e ideias que engole quem não sabe se afastar um pouco e pensar por conta própria.

Quando a notícia apareceu, eu já achei que tinha sido uma trollagem do tipo “#CutForBieber” ou “#BikiniBridge”, resultado de espertalhões com mais habilidade de manipulação que bom senso predando as frágeis mentes de jovens e adolescentes. E como as vítimas eram do sexo feminino, ficou ainda mais provável: mulheres (ainda mais as jovens) tendem a ser vítimas mais fáceis de pressão social. Alguém muito sacana estava arquitetando tudo isso! Só podia ser!

Mas não, a internet estava demonstrando como a vida imita a arte. Dessa vez a imbecilidade foi natural, brotou. Sim, trolls estavam e estão botando lenha nessa fogueira, mas eles são uma infecção oportunista e não a causa. A ideia surgiu, não teve nenhum filtro… alastrou-se. Embora eu acredite que muitas garotas viram isso e acharam uma furada, sempre tem as que caem.

Está cada vez mais na hora de ter um plano para proteger esses jovens. Não essa baboseira de ‘humanizar’ a rede, mas começar a ensinar alguns valores para as próximas gerações que não surgem mais tão naturalmente na vida social deles. Pais inteligentes e dedicados vão ser capazes de fortalecer as mentes de seus filhos contra a torrente de bobagens inerente à grande rede, mas sejamos realistas: pessoas inteligentes E dedicadas respondem por uma minoria, ainda mais em países pobres.

Minha geração teve mais filtros (mesmo com a insana TV dos anos 80) e teve de lidar com mais exemplos reais de más escolhas na vida. Longe de mim ser saudosista – acharia o máximo nascer uns 20 anos mais tarde e ter o mundo na ponta dos meus dedos durante minha infância – mas que tal unir o melhor dos dois mundos? Eu fui protegido de informações danosas por impossibilidade de acessá-las, essas novas gerações não. Elas precisam aprender a filtrar e pesquisar mais a informação que lhes é exposta, muito mais do que eu precisei.

Sim, cheguei até aqui para dizer que educação é a solução. Mas a educação de hoje parece ainda não ter se adaptado aos novos tempos. Internet não é TV, crianças vão ter acesso a basicamente tudo o que quiserem assim que o interesse for despertado. Não tem ninguém mais te ajudando a filtrar conteúdo. Tem muito mais informação boa disponível, mas não dá para contar só com isso.

Censurar internet é enxugar gelo: tem que ir na raiz do problema. Tem que ensinar essas meninas a pensar de forma crítica. Essa é a contraparte exigida por um mundo todo conectado. Enquanto demagogos perdem nosso tempo exigindo que a internet aja contra sua função mais básica e regule a informação antes de chegar nas pessoas, meninas com mais vontade de se conformar do que capacidade de pensar machucam seus corpos por não ter sequer a estrutura básica para lidar com o mundo no qual nasceram.

Filtro é coisa do passado. Para o bem e para o mal. A vida real está irremediavelmente ligada a um monitor. Para o bem e o para mal. A era da TV acabou! Você é o filtro, você é o parâmetro. Ou entende isso, ou cai no próximo desafio…

Para dizer que velho não entende de internet, para dizer que só é estúpido se ficar feio, ou mesmo para dizer que está na hora do desafio da soda cáustica: somir@desfavor.com