Paraíso.

Émerson podia sentir a vida se esvaindo de seu corpo. Sua mulher, filhos e netos o acompanhavam naquele estéril quarto de hospital. Os aparelhos, cabos e tubos ligados ao seu corpo já não incomodavam mais. A visão borrou antes de se apagar, a última imagem do sorriso triste, porém reconfortante de sua companheira de décadas.

Como se acordasse de um sono profundo, ele sentiu o corpo se mover antes mesmo da mente entender o que acontecia. Estava num campo aberto, paisagem bucólica infindável diante de seus olhos. O céu aberto, sem uma nuvem. Podia sentir o calor do sol e uma gentil brisa acariciava sua pele. Não havia mais dor.

À sua frente, parecia ver uma luz dançando ao sabor do vento, formas que lentamente se solidificaram numa figura masculina de meia idade, ombros largos, longos cabelos e frondosa barba, ambos brancos feito o algodão. O homem trajava uma túnica igualmente alva, e sorria de forma tranquilizadora.

ÉMERSON: Deus?
DEUS: Sim.
ÉMERSON: Eu morri?
DEUS: Sim.
ÉMERSON: E isso aqui é o Céu?

Deus sorri, olha ao seu redor por alguns instantes e volta sua atenção novamente para o homem.

DEUS: Sim. Mas não necessariamente o seu.
ÉMERSON: Como assim?
DEUS: Você foi um bom homem em vida. Não peço mais do que isso. Eu te dei a vida, te deixei passar por grandes dificuldades… e agora nada mais justo que eu te deixe descansar um pouco. Esse é o seu Céu. Como ele vai ser, depende de você.
ÉMERSON: Tem um Céu para cada pessoa?
DEUS: Espaço não é problema para mim. Vocês se sentem mais felizes com recompensas personalizadas… mesmo pessoas com as mesmas religiões imaginam o Céu de formas diferentes. É melhor que cada um aproveite do seu jeito.
ÉMERSON: Mas e esse campo aberto aqui?
DEUS: Você imaginou. Era o que você esperava encontrar… foi o que você encontrou. Agora, imagine que no seu Céu perfeito tenhamos coelhos felpudos correndo pela paisagem…

Émerson começa a olhar para o horizonte, e por detrás de um arbusto saem correndo dezenas de coelhos.

ÉMERSON: Hahaha! Coelhos!
DEUS: Pois é. O que te fizer feliz, você coloca aqui. E não precisa se preocupar, não vai fazer falta em outro lugar.
ÉMERSON: Eu posso trazer pessoas para cá?
DEUS: Quem?
ÉMERSON: A… *pensativo* a minha mulher.
DEUS: Você disse isso, mas você não pensou isso.
ÉMERSON: Perdoai-me, Senhor!
DEUS: Ei… ei… calma. O julgamento acabou e você já foi inocentado. Eu estou aqui para te ensinar como as coisas funcionam, não para dar pitacos! Se você quer aquela modelo com os seios grandes aqui, é só querer. E o nome dela é Tatiana… se bem que você pode chamar ela por qualquer nome aqui. Suas regras!
ÉMERSON: Isso… isso é um teste?
DEUS: Não. Estou te dando carta branca mesmo. Você mereceu isso, pode aproveitar!
ÉMERSON: Sério?
DEUS: Experimenta!

Émerson olha para o grama, fecha os olhos e se concentra. Assim que os abre novamente, uma voluptuosa loira vestindo um apertado vestido vermelho surge diante de seus olhos. A expressão dela é de confusão.

ÉMERSON: Uau… oi…
TATIANA: Что происходит?
ÉMERSON: Oi?
DEUS: Tatiana é russa e não tem a menor ideia do motivo de estar aqui. Você tem que ser mais preciso na hora de imaginar.
ÉMERSON: … *concentrando-se*
TATIANA: Meu amor!

Tatiana corre até Émerson e dá um abraço apertado nele. Logo começa a cobrí-lo de beijos.

ÉMERSON: Ha! Haha! Calma! Opa!
DEUS: Hahaha! Você a deixou carinhosa!
ÉMERSON: Ela… ela não desapareceu do mundo real para vir pra cá, não?
DEUS: Não. É uma cópia. Você não vai criar problema para ninguém com o que imaginar aqui.

A loira russa começa a ficar mais ousada em seus avanços para cima de Émerson.

ÉMERSON: Opa! Espera! Para! Para!

A moça cessa todos seus movimentos, como se estivesse congelada no tempo.

DEUS: Se era por minha causa, não se preocupe. Eu fiz vocês, eu sei tudo o que vocês fazem e nada… nada é novidade.
ÉMERSON: É… mas…
DEUS: Privacidade, é claro.
ÉMERSON: Não é que eu tenha vergonha de você, mas…
DEUS: Não precisa explicar. Entendeu como as coisas funcionam aqui?
ÉMERSON: Acho que sim… mas… é por toda a eternidade?
DEUS: Não se preocupe com tempo. Você não vai se atrasar para nada! E respondendo sua pergunta… é e não é. Se você quiser que seja por toda a eternidade, vai ser. Se não quiser, acaba.
ÉMERSON: Eu posso acabar com tudo isso se pensar errado?
DEUS: Sim, mas se mudar de ideia, pode voltar. Não existe o risco de alguma besteira estragar tudo, se era o que te preocupava.
ÉMERSON: Você vai ficar por aqui?
DEUS: Só se você quiser que eu fique.
ÉMERSON: Eu jamais te mandaria embora!
DEUS: Eu vou e volto quando você quiser, meu filho.
ÉMERSON: Mas você deve ter tanto o que fazer…
DEUS: Na verdade não. De uma certa forma eu também sou uma cópia…
ÉMERSON: Oi?
DEUS: Você me imaginou junto com esse cenário onírico.
ÉMERSON: Você não é Deus?
DEUS: Sou. Você me criou para responder essa pergunta, oras. Você acreditava que precisava encontrar Deus no Céu, e foi isso o que aconteceu.
ÉMERSON: Mas onde está o Deus de verdade?
DEUS: Aqui. Sou eu. A não ser que você imagine outro.
ÉMERSON: Então Deus não existe?
DEUS: Oi? Não está me vendo?
ÉMERSON: Mas um Deus que eu imaginei não vale!
DEUS: Por quê?
ÉMERSON: Eu quero conhecer aquele que me deu esse poder todo!
DEUS: Mas… ah, ok.

Um grande conjunto de nuvens brancas surge no céu. Do alto delas uma poderosa luz emana, dividindo-se num arco-íris como se passasse por um prisma. A luz multicolorida desce até o chão, e uma voz poderosa ecoa pelos ares:

DEUS: Eu sou Deus!
ÉMERSON: Senhor! Senhor! Que honra estar diante de Sua presença!
DEUS FALSO: Émerson…
ÉMERSON: Oi?
DEUS FALSO: Você também criou esse. Achei mais interessante que essa forma aqui… mas ainda sim, você que criou.
ÉMERSON: Mas… parece tão… tão… poderoso!
DEUS FALSO: Imagina que Deus virou uma andorinha.
ÉMERSON: Hã?
DEUS FALSO: Imagina…

Émerson olha para os céus e logo vê todo aquele espetáculo pirotécnico transformar-se num pássaro.

DEUS FALSO: Isso foi uma gaivota!
ÉMERSON: Eu sou meio ruim para imaginar pássaros…
DEUS FALSO: Que seja, o ponto que importa. Não sei se você já entendeu, mas a coisa mais próxima de Deus aqui é você mesmo.
ÉMERSON:

O Deus falso transforma-se num cão vira-lata.

CÃO: Au! Au! Au!

Émerson se concentra um pouco mais…

CÃO: Um cachorro falante! Hahaha!
ÉMERSON: Hehe… ainda está difícil conceber esse conceito de onipotência.
CÃO: A parte boa é que você tem todo o tempo do mundo! Não precisa ter pressa… que tal soltar a Tatiana e imaginar aquela piscina incrível do hotel quando você foi para a Espanha?
ÉMERSON: Seria divertido… mas… peraí, como você sabe disso?
CÃO: Não é óbvio? Eu sou você. Precisamos nos dividir para entender melhor o que estava acontecendo.
ÉMERSON: Pensando bem, é óbvio. Sabe o que eu estou pensando?
CÃO: Sei.
ÉMERSON: Verdade. Será que não vou… vamos… enjoar?
CÃO: Acho que já enjoamos.
ÉMERSON: Émerson provavelmente não é o primeiro nome que eu tive…
CÃO: E isso explicaria porque eu consegui te explicar tão rápido o funcionamento daqui.
ÉMERSON: Será que é assim para todo mundo?
CÃO: Como saber se nunca as encontramos aqui?
ÉMERSON: Talvez seja por isso que a gente volte.
CÃO: Dessa vez não podemos esquecer de perguntar.
ÉMERSON: E se a gente já souber a resposta e fazemos isso para esquecer por algum tempo?
CÃO: Droga… lembrei da resposta.
ÉMERSON: Eu também. Vamos voltar.

FIM – Por enquanto.

Para dizer que o texto ficou complicado rapidamente, para dizer que já sabe a resposta, ou mesmo para dizer que quer voltar: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Um paraíso pra cada um de nós limitado ao nosso proprio conhecimento, seria a mesma coisa que estar sonhando e esse sonho virar um pesadelo,não daqueles com monstros, fantasmas, zumbis,etc.Mas em algum momento se tornaria tedioso repetitivo.

  • Texto ótimo, muito bom mesmo.Todos os textos dessa coluna me fazem sentir insignificante intelectualmente…
    Fiquei imaginado o Universo do Émerson e primeiro achei maravilhoso: todo tempo e recursos do mundo pra ler todos os livros que nunca tive tempo de ler, terminar de assistir todos os seriados que quiser…me transportar pra lugares que nunca estive. Mas… ele só tem o que imagina limitado ao que já conhece? se ele quisesse um biblioteca imensa com todos os livros que nunca leu, os livros estariam em branco? Como foi o processo de descoberta de que o deus e todo resto eram projeções dele?

  • De quando as máquinas achavam que criar o mundo ideal deixaria as pessoas satisfeitas e que não encheriam o saco.
    Somir assistiu reprise esses dias.

  • “E se a gente já souber a resposta e fazemos isso para esquecer por algum tempo???”

    Se o paraíso fosse meu, não ia querer voltar nunca mais.
    Mas ia querer lembrar.

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