“Eu sei ficar sozinho”. Muita gente diz essa frase com o maior orgulho. Sabe mesmo? Acho que a maior parte não sabe.

Ficar sozinho não significa estar ou não estar em um relacionamento. Existem pessoas em relacionamentos que são extremamente solitárias (solidão a dois, o tipo mais doloroso) e existem pessoas que não estão em um relacionamento mas nunca estão sozinhas. No texto de hoje não me refiro a uma vida solitária, me refiro a momentos do seu dia onde você está só, com você mesmo e nada mais.

O momento solitário está em baixa. As pessoas nunca estão sozinhas consigo mesmas, e parecem ter aprendido a funcionar assim, sem entender o prejuízo que isso causa e os ganhos que um momento de solidão trazem. Estar sozinho, consigo mesmo, exerce importante função no ser humano, seja como momento de reciclagem, reflexão ou apenas para permitir que ideias fluam.

No geral, as pessoas estão sozinhas, no sentido de desacompanhadas de outras pessoas, mas estão sempre com a TV ligada, com música alta, com alguma porcaria eletrônica ligada na internet, rede social, e-mail, whatsapp ou coisa do tipo. Estão no celular, no computador ou onde mais gerar estímulo e distração, mas nunca estão efetivamente sozinhas consigo mesmas. Não as culpo, assusta.

Olhar para dentro, conviver consigo mesmo sem distrações, não é fácil. Mas é gratificante, os frutos disso se colhem a longo prazo – e gente limitada não tem paciência para conceber resultados a longo prazo. Eu, eu, eu. Agora, agora, agora. Está demorando muito, desisto. Isto é, claro, se a pessoa tiver sofisticação para sequer perceber que esses benefícios existem, porque às vezes, nem isso.

Trabalho, família, relacionamentos, redes sociais, eventos, jantares, happy hour, compromissos, trânsito, reunião de condomínio, etc etc. Sempre temos algo a fazer, já vamos dormir em dívida, arrastando para o dia seguinte coisas que deveriam ter sido feitas no dia anterior. A verdade é que nunca sobra tempo para estarmos sozinhos com nós mesmos, sem qualquer outro estímulo. Mas, como tudo que é importante nessa vida, não deve sobrar tempo, nós é que devemos separar um tempo para isso, abrindo mão de gastar esse tempo com outras coisas. Tem que tirar de um lugar para colocar no outro, aceita que dói menos.

Mas não. Os imediatistas, os medíocres, os pouco privilegiados de inteligência não conseguem perceber a importância de estar sozinho consigo mesmo. Se enchem de estímulos externos o dia todo, são incapazes de se depararem consigo mesmos e nada mais e chegarão ao final deste texto sem sequer conseguir compreender qual é o ganho final desse estar sozinho, consigo mesmo.

Não se dão conta que nunca estar sozinho consigo mesmo é uma escolha da qual fogem. Eles se entopem de atividades supostamente “por opção”. Mas não é opção, é medo, e quem sabe até uma incapacidade de ficar consigo mesmos. Olhar para si mesmo de frente pode ser difícil.

Ficar só, consigo mesmo, gera um desconforto sintomático em boa parte das pessoas. E elas nem mesmo estranham, não questionam a razão pela qual não conseguem ficar sozinhas consigo mesmas. A arte de tapar o sol com a peneira faz surgirem argumentos patéticos como: “eu não gosto, sou muito ativo”, “eu não sou assim” ou ainda o tenebroso “acho chato”.

Pessoas incapazes de reflexão interna, de um olhar aprofundado para si mesmas e, portanto, incapazes de evoluir, perdoar, reconhecer e melhorar seus defeitos. Pessoas estagnadas ao som de música, TV e Memes que, convenientemente, lhes tira o foco de atenção. Pessoas que acham que vivem bem mas vivem mal, se enforcando nos próprios nós, se amargurando em raros momentos de nitidez mental rapidamente anestesiados. Pessoas que não se conhecem, não se entendem, não se explicam.

Desde Esopo que o argumento das uvas estarem verdes merece um olhar mais atento. Muitos dirão que estar só, consigo mesmo, diariamente é ridículo, desnecessário e até mesmo nerd. Pessoas que tem uma deficiência emocional/cerebral/cognitiva e camuflam o não conseguir com um não querer. Mecanismo recorrente, o ser humano adora camuflar o não conseguir com o não querer.

Não raro os alunos travessos que tem mau desempenho na escola não o tem por serem travessos, são travessos inconscientemente para que ninguém perceba como são burros. Se você não se esforça, quando não consegue o objetivo, ninguém questiona sua inteligência, todos partem para sua conduta. Uma isca inteligente para mentes não tão aguçadas: melhor parecer indisciplinado do que burro. Mas mentes atentas percebem. Ah, percebem. O mesmo vale para a incapacidade de estar sozinho consigo mesmo.

Se vocês pensarem bem, em todas as culturas, em todas os tempos o ser humano se cercou de rituais para obrigar os mais novos a estarem consigo mesmos, tornando isso um hábito para a vida adulta. Um exemplo: Ajoelhar no pé da cama antes de dormir e fazer uma síntese do seu dia e seus desejos pode ser chamado de “orar” quando entra o aspecto lúdico do Amigo Imaginário, mas, nada mais é do que ensinar uma criança a estar consigo mesma. A vida da pessoa melhora, uma eventual solução para o problema surge, as coisas acontecem porque um ser divino te ouviu? Não. Acontecem porque você passou tempo com você mesmo e isso esclareceu dúvidas, abriu sua percepção, colocou as coisas em perspectivaa longo prazo.

A neurociência já comprova os ganhos de tirar um pedacinho do seu dia para passar só, com você mesmo, sem mais nada, nenhum estímulo. O cérebro também precisa de musculação. Redes sociais, TV e internet costumam ser fastfood para o cérebro: uma delícia, o corpo pede mais, mas no final das contas faz mal em excesso. Um vício, um prazer imediato que acaba por roubar tempo de coisas verdadeiramente importantes se excessivamente utilizado. Amadurecimento é isso: deixar de pensar no que você quer hoje e passar a pensar no que você quer para a vida.

Quanto tempo faz que você não fica sozinho com você mesmo? Crianças o fazem o tempo todo mas, à medida que vamos crescendo, vão nos empurrando obrigações, distrações e estresse e vamos perdendo esse hábito. Você se lembra da última vez em que ficou sozinho com você mesmo, sem qualquer estímulo externo, voluntariamente? Talvez seja hora de tentar. Talvez seja hora de cultivar isso na sua vida. Ou ao menos de parar de encher o saco e ridicularizar quem o faz.

Pare o que está fazendo. Ouça o som do silêncio e reflita sozinho. Se for capaz.

Para perguntar que tipo de droga eu estou usando, para perguntar se eu não vou falar da Guerra dos Cabides ou ainda para perguntar se eu não vou falar do Humaniza Redes peidando e sendo apagado: sally@desfavor.com

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Comments (37)

  • A sós, mas nao solitários. Somos seres gregários, mas ficar algum tempo sozinho é produtivo. É como se fosse um segundo sono. Um reabastecimento no estado de vigilia. Aprecio muito estes momentos. Quando era fumante, o fazia com mais frquencia. Atualmente, tenho usufruido de minha propria companhia, especialmente na madrugada, embora seja por pouqissimo tempo.
    Obrigado por me ajudar a cultivartal hábito.

  • Que texto fantástico! Curioso que esses dias tirei um tempo para refletir e no dia seguinte…. um texto do desfavor falando sobre essa pausa para reflexão.
    Parabéns Sally, como sempre escrevendo coisas que precisam ser lidas e ninguém escreve. O desfavor é único mesmo!
    P.S: Sempre sumido (nos comentários) mas sempre lendo os posts do blog.

  • As pessoas

    “imediatistas, os medíocres, os pouco privilegiados de inteligência, os pouco sofisticados. As pessoas que tem uma deficiência emocional/cerebral/cognitiva, enfim, os burros”

    que não vivem num mosteiro como budistas. Ou que não concordam com a definição e contexto do texto sobre o que é, e como ficar sozinhos deveriam tirar um tempinho agora e refletir sobre si mesmo.

    Ainda mais se “pensar em si mesmo” envolver não subjugar as pessoas sob sua régua.

    ;)

  • Sally, interessante o texto e concordo com ele. Mas e quando é o sentido contrário? Quer dizer, raros casos, mas… E quando a pessoa é sozinha até demais e tem a necessidade de ter mais amigos, mais companhias pra pelo menos falar um A? Nesse sentido oposto, acredito que a solidão em excesso também seja prejudicial, não?

  • Interessante esse texto porque ele me mostra um outro ponto de vista – aquele das pessoas pessoas que não conseguem ficar sozinhas e como estar só pode ser frutífero.
    Eu sou o contrário dessas pessoas, o excesso de interações sociais me cansa de tal modo que eu preciso ficar completamente só periodicamente. Caso contrário, eu sinto como se meu cérebro entrasse em pane.

    • Eu também. Às vezes abro mão de valiosas horas de sono e passo o dia seguinte sonolenta apenas para conseguir esse tempo comigo mesma, sozinha, que só é possível no final do dia.

  • Sempre fui introspectivo, prezando por se isolar quando da minha própria vontade – em muitas vezes, conforme já contei…Faz tempo que não consigo ser decidido através desta forma, mas ainda “chego lá” na paz interior com o que envolve me expor / arriscar muito mais do que eu já tenha feito…

    =)

  • Essa é uma das benesses de morar sozinho: chegar em casa e não ter que dar satisfações a ninguém que não eu mesmo. Recarregar as baterias para o dia seguinte.

    Porém, confesso que quando estou em casa, me agarro muito a estímulos externos (computador, redes sociais, vídeos) justamente para não me aborrecer, mas há horas em que me abstraio dessas distrações e começo a divagar em reflexões e pensamentos sobre mim próprio e sobre o meu lugar no mundo.

    Pergunto-me se consigo mesmo viver sozinho, se sou introvertido demais, se realmente entendo essa sociedade que não faz sentido… até fico vendo “replays mentais” de coisas que fiz ou disse durante o dia… e olha que ouvir música me ajuda pra caramba a me isolar do mundo, facilita que eu me abstraia e deixe as reflexões fluírem.

    Não sei se isso que faço qualifica como estar sozinho comigo próprio, mas certamente é bem melhor do que perder tempo em interações sociais que não trazem nada de produtivo ou interessante. Se estiver bem comigo mesmo, não sou obrigado a estar com mais ninguém.

  • É muito difícil encontrar um local livre de tudo e todos para refletir. Penso que é por isso que na hora do banho e aquele momento pré-sono (sem nada ligado) os pensamentos fluem e as melhores ideias vêm à mente. É por isso mantenho um caderninho do meu lado no criado para anotar tudo que pensei de legal.

    Às vezes esses momentos dão um mindfuck do caralho, do tipo: Ontem estava eu pensando, será que vivo uma outra realidade e na verdade eu sou igual esse povo LOUCO que parece viver em outro mundo? Como será que funciona o cérebro deles? Será que eles se acham “normais”, como eu me acho? Será que eu sou uma deles e me acho normal e no fundo estou vivendo internada num hospício?

    É muita viagem estranha que rola, mas também rola um amadurecimento interno bacana!

    • Sim, às vezes algo que parece louco, bobo ou inútil é um primeiro passo em caminhos de auto-descoberta ou de um insight maravilhoso que as pessoas não desenvolvem.

    • Eu também tenho alguns pensamentos insanos (dos quais sempre tento fugir)

      Não tenho certeza se o que percebo da realidade é, de fato, real.
      Não tenho certezas se o que eu acredito ser verdadeiro é verdadeiro.
      Não tenho certeza se o que eu vejo é real, porque meus olhos são limitados. Todos os meus sentidos são limitados e eu posso estar vendo menos do que penso ver.
      Quando vi o filme Matrix achei que aquilo poderia ser real. Não há garantias de que somos livres. Não há garantias de que somos humanos. Quem garante que não somos robôs? Máquinas pré-programadas para pensarem como pensamos.
      Quando li “O mundo de Sofia” fiquei muito incomodada. E se formos personagens de um grande escritor? E se estivermos presos a um enredo que outro (Deus?) escreveu para nós? E se o real for outra coisa? E se não formos livres?
      Tenho medo de enlouquecer. Fui a um Psiquiatra que não me passou nenhum remédio. Ele disse que ter medo de enlouquecer, medo de estar errado, medo de não estar vendo as coisas certas não é sinal de loucura. Falou algo como: “Quem tem medo de ficar louco não está louco”. Disse que a dúvida nos protege da insanidade. Os fanáticos é que estão mais próximos da insanidade.
      Eu nunca tive medo de estar fisicamente sozinha. Mas sempre terei medo de mim.

      • Este é o clássico sonho de Chuang Tzu: o mestre Chuang sonhou uma noite que era uma borboleta; quando acordou, ficou em dúvida se ele não era uma borboleta sonhando ser o mestre Chuang.

        Você não aprece louca; daria uma boa Taoista.

        • Era uma vez
          Um sábio chinês
          Que um dia sonhou
          Que era uma borboleta
          Voando nos campos
          Pousando nas flores
          Vivendo assim
          Um lindo sonho…

          Até que um dia acordou
          E pro resto da vida
          Uma dúvida
          Lhe acompanhou…

          Se ele era
          Um sábio chinês
          Que sonhou
          Que era uma borboleta
          Ou se era uma borboleta
          Sonhando que era
          Um sábio chinês. (Raul Seixas )

  • Apesar da ausência de um silêncio absoluto (obrigada trânsito), ficar um tempo parado, sem fazer nada, apenas pensando é muito bom e eu sempre notei isso. A criatividade expande.

  • Sempre achei estes momento de reflexão quando pratico meu esporte. Estar em locais afastados e sozinho me deixam mais tranquilo e destes momentos surgem soluções e decisões muito importantes para minha vida.

  • Sempre me senti mal por gostar de passar um tempo comigo mesma. Principalmente quando me vi rodeada de obrigações e horários que não escolhi e fui obrigada a concordar em ter, todos diziam que isso era preguiça minha… Mas era nessas horas que eu achava soluções para problemas, escrevia… Atualmente, fico muito estressada por não poder fazer isso sempre. Ficou restrito aos domingos, até meu sábado tem minutos contados :/

  • O assunto do texto é realmente muito bom.

    Mas me incomodou a maior parte dele ter se focado em criticar quem não se sente confortável em ficar só consigo mesmo, do que falando dos benefícios que isso trás pra vida de quem o pratica.

    • Os benefícios estão aí, no Google, ao alcance em apenas um clique. Entretanto, ninguém te diz que não é OK não conseguir ficar sozinho consigo mesmo, isso você só vai ler aqui.

  • Muito bom o texto. Mesmo!
    Estou refletindo sobre o quanto eu procuro lá fora o que deveria buscar dentro.
    Eu e todo mundo.
    Só o fato de termos celulares que nos deixam disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar já mostra o quão acompanhados estamos de ruídos e de gente chata que posta piadinhas nos grupos do WhatsApp.

    Solidão é rara. Um verdadeiro privilégio do qual fugimos por medo de nossas sombras, de nossa verdade, de nossos desejos…

    • É que a sociedade atual dá uma conotação terrível à palavra “solidão”. Remete a abandono, sofrimento. Solidão é necessária e tem sua função.

  • Aprendi a ser introspectiva assim no Japão ao ir e voltar do trabalho sozinha nas ruas desertas no período noturno. A filosofia de vida que levou às conquistas (até) hoje, em termos profissionais e pessoais, foi pensada e analisada nessas longas caminhadas geladas madrugadas afora três décadas antes. Às vezes sonho (acordada) estar lá de volta fazendo isso, por mais que esteja cercada de pessoas.

    Aqui, continuei a ter esse hábito ao sair diariamente do trabalho a pé (dá uns 10 km). Pego as ruas mais tranquilas, mesmo que prolongue em muito o tempo na volta, pois é o único momento do dia em que posso repensar a vida. Se tomasse o metrô na porta de casa, utilizasse a vaga de estacionamento da firma ou mesmo morasse a poucos passos do trabalho, dificilmente (para não dizer nunca) usaria o tempo economizado nesse deslocamento com tanta qualidade, até porque em casa sempre aparece algo a fazer ou alguém à espera para dar a devida atenção.

  • Algumas coisas na vida me ensinaram a ser introspectivo… Além de tímido, servi o exército e fiz minha busca mágica/esotérica/espiritual… A timidez me fez uma pessoa calada…. o exército me fez entender como funciona o mecanismo do trabalho em grupo e em como colocar ele ao meu favor…. e a busca pela magia tornou como prática obrigatória o silêncio e a paz interior… Fico sozinho até mesmo no meio da multidão e tem sempre alguém que faz a irritante pergunta “No que está pensando?”… sempre sou obrigado a responder “nada”…. pensar no nada e ficar calado incomoda muito as pessoas. Entender como funciona o sistema, como as pessoas normalmente agem então nem se fala… Quer entender a vida? Entender a si mesmo? De onde veio e para onde vai? Apenas a solidão e o silêncio te mostram esse caminho….

  • Mais uma da série: Parece texto do Somir.
    Ficar longe da internet ou celular até seria o de menos porque depende só da própria pessoa. Vcs conseguem refletir com barulho de trânsito ou de vizinhos? Tá cada vez mais difícil ouvir o som do silêncio!

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