Aquela do Alicate Pai…

Siago Tomir se aproximou de forma comunicativa e educada, era óbvio que ele queria alguma coisa.

Tomir: Preciso da sua ajuda profissional
Sally: Antes de começar a falar, por gentileza, só para eu me preparar psicologicamente, de zero a dez, o quanto essa ajuda vai me custar?
Tomir: Dez
Sally: Começa a pensar no que você vai me dar em troca, porque no amor você não está valendo esforço dez
Tomir: O que você quiser
Sally: Ok, agora estou interessada
Tomir: O pai de um amigo meu foi flagrado pela Receita Federal sonegando impostos de uma forma pouco convencional
Sally: Essa não é a minha área…
Tomir: O que vale aqui é uma pessoa que seja de confiança e tenha jogo de cintura, técnica é o de menos, isso você estuda e aprende. Precisa saber levar o velho, que é uma pessoa difícil
Sally: Deixa eu entender melhor… ele é um corrupto?
Tomir: Ele é basicamente um idiota. Mas se você ajudar, vai pagar bem
Sally: Não estou entendendo a parte onde isso é um esforço grau dez
Tomir: É o pai do Alicate

Depois de um faniquito me recusando a ajudar, Siago Tomir me convenceu a, ao menos, conversar com o sujeito. Disse que ele o tinha como um segundo pai, que devia muitos favores a ele e que ele era uma pessoa boa que merecia ajuda. Lá fui eu até a casa do Alicate me encontrar com o Alicate Pai que ali me esperava. O estresse começou na portaria, com o conhecido porteiro Navalha, a fina nata da marginalidade campineira:

Navalha: Qual andar?
Tomir: Navalha, você sabe qual andar
Navalha: O seu eu sei, mas e o dela?
Tomir: O mesmo que o meu, Navalha
Navalha: Vou precisar da sua identidade
Sally: Oi?
Navalha: Identidade, por favor?
Sally: Isso aqui é um edifício residencial, identidade pra que?
Tomir: Mostra logo para ele, Sally
Sally: Não trouxe minha identidade
Navalha: Vamos ter que resolver isso aí…
Sally: Como assim?
Navalha: Cinquentinha
Tomir: CHEGA, NAVALHA!
Navalha: Pode parcelar
Tomir: *passando por Navalha na marra

Chegando na casa do Alicate, Somir e ele se trancaram comigo em um quarto, em uma espécie de reunião profana.

Tomir: Sally, você vai lidar com uma pessoa fora do comum
Sally: Como assim?
Alicate: Meu pai é um homem bom, mas ele é muito tosco, teimoso e inconsequente
Sally: Eu lido com vocês o tempo todo e vocês são assim
Tomir: Não, Sally. Alicate é a versão light do pai
Sally: OI?
Alicate: *fazendo que sim com a cabeça
Tomir: Tem algumas coisas que você não pode fazer ou dizer
Sally: Ele tem problemas mentais?
Alicate: Não, é um homem brilhante. Simples mas brilhante. Mas é cheio de manias, tem que respeitar…
Tomir: Em hipótese alguma fale mal da porca dele
Sally: Desculpa, não estou entendendo
Alicate: Ele tem uma porca de estimação premiada que ele ama mais do que tudo, não pode falar mal dela
Sally: Mas a porca está aqui?
Alicate: Não, está na fazenda onde ele mora
Sally: Então como é que a porca vai entrar na conversa?
Tomir: A porca sempre entra na conversa
Alicate: Ele odeia o Governo, qualquer Governo. Acha que querem roubá-lo
Sally: Bom, nisso ele está certo
Tomir: Por último, ele é machista. Aguenta o machismo dele sem confrontar e tudo vai ficar bem
Sally: Você está armando alguma coisa para mim
Alicate: EU? Eu não!
Sally: Você está muito quieto, sem fazer merda, sem me atacar
Tomir: Sally, o pai do Alicate é tudo para ele. É a única coisa no mundo que ele respeita e tem um sentimento sincero
Alicate: Depois que minha mãe morreu, eu só tenho ele e o Somir. E se essa história continuar, ele pode morrer. Ele tem muito problema de coração, não pode se aborrecer..
Tomir: Confia em mim, eu não vou te colocar numa furada. Vai lá e pelo menos conversa com ele
Sally: Alicate está com lágrimas nos olhos?
Alicate: NÃO! *secando os olhos
Tomir: Jogo de cintura, Sally. Jogo de cintura. Você é paciente, você vai dobrar o velho.
Sally: Estou ficando com medo
Tomir: A gente precisa de uma pessoa como você, que tenha poder de convencimento. Vai lá e resolve *empurrando

Entrei em um quarto que mais parecia um escritório. Nele um senhor corpulento estava sentado de forma imponente na cadeira atrás da escrivaninha. Muito educado, ele levantou e beijou a minha mão. Começou a falar com um sotaque forte de caipira:

Alicate Pai: Olá mocinha, pode pedir para sua mamãe entrar
Sally: Como?
Alicate Pai: Sua mamãe, a advogada que veio conversar comigo
Sally: Eu sou a advogada que veio conversar com o senhor
Alicate Pai: Mas além de me mandarem uma mulher, me mandaram uma criança!
Sally: *respirando fundo
Alicate Pai: Você não tem idade para entender a realidade da vida, menina!
Sally: Talvez se o senhor me der uma chance eu possa provar o contrário
Alicate Pai: Pode falar, Minha Criança *rindo
Sally: Queria entender exatamente o que aconteceu
Alicate Pai: Esses filhos da puta do Governo estão tentando me roubar!
Sally: Ok, me conta um pouco mais
Alicate Pai: Eles ficam me cobrando muito imposto, para me roubar, aí na minha declaração de renda eu coloquei um zero a menos e eles perceberam
Sally: Perdão?
Alicate Pai: Eu coloco zero a menos, sabe? Para pagar menos
Sally: Desculpa, mas ao fazer isso, o Senhor achou que eles não perceberiam?
Alicate Pai: Minha Criança, faço isso há décadas
Sally: E nunca descobriram?
Alicate Pai: Descobriram agora, só agora. E querem que eu pague. Mas eu não vou pagar. Podem me prender!
Sally: Se o senhor não pagar, pode ser preso sim
Alicate Pai: Então, mocinha, dá um jeito de eu não pagar, se eu não tiver que pagar, esse zerinho aí que está faltando, eu dou para você
Sally: Posso dar uma olhada no tamanho do problema?

Alicate Pai me estendeu uns documentos amassados. Fiquei chocada com a fortuna que aquele homem tinha. Podia estar tranquilamente no Top 100 dos homens mais ricos do país e ainda assim era de uma simplicidade enorme. E o “zerinho” que ele cortou do imposto e queria me pagar dava para viver o resto da vida de renda.

Sally: Desculpe perguntar, mas já que o senhor está disposto a me pagar o que falta, por qual motivo não paga ao Governo e acerta tudo?
Alicate Pai: Pro Governo eu não dou! Cambada de ladrões!
Sally: O senhor está bem?
Alicate Pai: Uma dorzinha no peito… o médico disse que eu não posso me aborrecer
Sally: Para não se aborrecer, a melhor coisa é pagar
Alicate Pai: Eu dou esse dinheiro todo para a caridade então
Sally: Não é assim que funciona, tem que pagar para o Governo
Alicate Pai: Tá vendo como esse Governo é filho da puta? *hiperventilando e ficando vermelho
Sally: O senhor está bem?
Alicate Pai: Chama meu filho! Manda ele trazer o remédio do coração!

Corri para chamar o Alicate, que colocou um remédio debaixo da língua do pai e veio conversar comigo enquanto o velho se acalmava.

Sally: Ele está bastante exaltado
Alicate: Tem um documento que eu escondi dele… por medo da reação
Sally: Eu já falei que ele pode ser preso
Alicate: Ele está cagando para ser preso
Sally: O que pode ser pior do que ser preso?
Alicate: Estão ameaçado leiloar os bens deles, inclusive a porca
Sally: A porca que ele amam mais do que tudo?
Alicate: Sim. Vai lá e avisa isso para ele, mas sem matar o meu pai
Sally: EU?
Alicate: Eu não consigo. Eu sei como ele vai ficar…
Sally: Eu não vou falar isso sozinha, você vem comigo!

Voltamos para a sala. Alicate reverenciava o pai com o olhar.

Alicate Pai: Filho, quando que o Pai te pediu alguma coisa?
Alicate: Nunca, pai
Alicate Pai: Dessa vez o Pai está te pedindo, filho. Não quero pagar
Sally: Ok, mas se o senhor não pagar, podem pegar seus bens
Alicate Pai: Onde você quer chegar, Jovem?
Sally: Que podem pegar seus bens e vender
Alicate Pai: Eles que peguem, eu processo e tomo de volta!
Sally: Mas até lá, seus bens ficariam longe do senhor
Alicate Pai: Eles não são trouxas, não vão estragar nada
Sally: Eu sei, mas pode ser alguma coisa que o senhor sinta falta
Alicate Pai: Eu compro outro igual
Sally: Para algumas coisas não existe substituição
Alicate Pai: Criança, fala logo o que você está tentando me falar!
Sally: Sinto muito lhe dizer isso, mas eles podem pegar a… *olhando para o Alicate com cara de interrogação
Alicate: É a Adélia, pai. Eles podem pegar a Adélia
Sally: A porca tem o nome da sua mãe?
Alicate: Foi uma homenagem…
Alicate Pai: *tentando conter as lágrimas escorrendo dos olhos
Alicate: Não chora pai! Olha o coração! *chorando
Sally: *olhando surpresa
Alicate Pai: *abrindo um berreiro
Alicate: *abraçando o pai e abrindo um berreiro junto
Sally: Somir, chega aqui um minutinho…

Siago Tomir veio correndo. Nos afastamos enquanto os dois marmanjos choravam abraçados.

Sally: Você saberia me explicar?
Tomir: É complicado
Sally: Estou tentando entender exatamente com que estou lidando…
Tomir: Desde que a mãe do Alicate morreu ele anda muito sozinho, se apegou a essa porca. E ele tem problemas cardíacos, não pode se aborrecer, já fez várias cirurgias… controla o velho se não ele vai ter um troço!
Sally: Não pode se aborrecer e tem o Alicate como filho?
Tomir: Alicate não dá mais aborrecimento para o pai, muito pelo contrário, cuida dele. Ele fez tanta merda que um dia o pai cansou e rompeu com ele, ficaram sem se falar um tempo e o Alicate sofreu muito. Quando o pai decidiu dar uma segunda chance, ele virou um filho exemplar
Sally: O velho tá ficando muito vermelho, estou preocupada
Tomir: Está mesmo, vamos tentar acalmar os dois antes que ele passe mal, se ele morrer o Alicate morre junto. O velho é tudo que ele tem.
Sally: Quem diria, um filho da puta desses ser um filho tão dedicado…
Tomir: Pensou em uma solução?
Sally: Pensei, mas não é jurídica, é mais psicológica
Tomir: Qualquer coisa que acalme o velho serve…

Tomir e eu nos aproximamos e começamos a conversar com os chorões

Alicate: PAI EU TE AMO SE ACALMAAAA *chorando
Alicate Pai: A Adélia não, filho! O pai não aguenta se levarem a Adélia!
Sally: Vamos parar com isso? É algo fácil de resolver
Tomir: A Sally tem uma solução
Sally: Olha só, tem um jeito de não dar todo esse dinheiro para o Governo
Alicate Pai: É?
Sally: Sim, o senhor vai ser bastante esperto e vai passar a perna nesses safados de um jeito que eu vou ensinar
Alicate Pai: Como?
Sally: O que eles querem é que o senhor brigue, demora a pagar. Se pagar tudo sem reclamar esta semana ainda, eles são obrigados a dar um desconto, paga menos, daí o senhor não vai ter que dar “tudo” para o Governo, só uma parte.
Alicate Pai: Quanto fica?
Sally: *fazendo as contas
Alicate: *enxugando as lágrimas
Sally: *mostrando a calculadora para Alicate Pai
Alicate Pai: Eu pago isso para não perder a Adélia!
Alicate: Paga pai, paga! Não gosto de ver o senhor nervoso!
Sally: Só a mim, né? *grunhindo
Alicate Pai: O que foi?
Tomir: Nada não, tudo resolvido então?
Alicate Pai: Filha, você me ajuda a fazer esse pagamento?
Sally: Ajudo sim

Alicate Pai me abraçou e disse que a partir daquele dia eu era como uma filha para ele. Não aceitei nenhum pagamento, afinal, não tive trabalho nenhum, ele apenas recebeu um desconto que tinha direito por lei. Ele ficou realmente muito agradecido. Tosco, porém boa pessoa. Alguns meses depois do ocorrido, me mandou um filhote de porco de presente, era uma cria da famosa Adélia. Mas essa éuma outra história, para um outro dia… Alicate nos acompanhou até a porta.

Alicate: Obrigada
Sally: Deve estar doendo muito ter que me agradecer, né?
Alicate: Está
Sally: Seu pai é uma boa pessoa, sempre que precisar de mim, em se tratando do seu pai, temos uma trégua
Alicate: Ok
Sally: E vê se não dá desgosto, se não ele vai morrer por SUA culpa
Alicate: Não vai acontecer, meu pai é a coisa mais importante do mundo para mim
Tomir: Espero que depois dessa você pare de implicar com a Sally
Alicate: Continuo não gostando dela
Sally: Nem eu de você, Querido
Tomir: Não precisa gostar dela, basta respeitar
Alicate: Ela não me respeita
Sally: Negativo. Você que não me respeita
Alicate: Não vou brigar com você com meu pai em casa
Sally: Precisamos convidar o Alicate Pai para vir junto sempre que você chamar ele, Tomir!
Tomir: Chega Sally, vamos embora

No elevador, as luzes piscam, se apagam e o elevador para entre um andar e outro.

Tomir: Cinquenta?
Navalha: Não, agora é mais caro. Cenzinho pra liberar

Para enxugar as lágrimas pelo que está por vir, para jogar contra mim nos comentários ou ainda para não entender porra nenhuma por não ter lido o último Siago Tomir: sally@desfavor.com

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