Dando bandeira.

As maiores redes de lojas americanas acabam de anunciar que vão banir a venda de produtos com a famigerada “Bandeira dos Confederados” nos EUA. A bandeira tem conexão histórica com a Guerra Civil dos americanos, representando o lado sulista, também conhecido como o lado contrário à abolição da escravidão. Pode-se até entender o conceito de tirar de circulação um símbolo “do perdedor”, mas… cento e cinquenta anos depois da guerra acabar? Soa histérico.

E não foram só as lojas que tomaram medidas do tipo. A governadora do estado da Carolina do Norte (que curiosamente faz parte do sul) discursou publicamente em favor da retirada da bandeira de qualquer prédio público no estado. Outros parecem estar seguindo o mesmo exemplo. É temporada de caça à segunda bandeira mais famosa dos EUA. O motivo é a vergonha de ter lutado para manter a escravidão? É… tem algo mais recente nos trending topics da história…

Até mencionamos a notícia no último Top Des: semana passada um maluco invadiu uma igreja frequentada quase que exclusivamente por negros e começou a atirar. Matou nove pessoas. O maluco, chamado Dylann Roof, apareceu em fotos de arquivo segurando essa bandeira. Quando perguntado sobre seus motivos para o massacre, disse que queria começar uma guerra racial. Que o rapaz não regula, ficou claro. Agora, o que essa bandeira tem realmente a ver com isso nos dias de hoje fica mais nebuloso.

Símbolos são poderosos, não estou negando isso. Mas é uma espécie de poder bem mais relativa: o símbolo adapta-se à crença, raramente vice-versa. Estudiosos da história ianque costumam pintar um quadro mais “colorido” sobre os motivos dessa guerra civil. Claro que a proposta de abolição do trabalho escravo dos negros mexeu com gente rica e poderosa no país, mas tem muito da intervenção estatal indesejada nessa briga. O Sul queria ser mais libertário, o Norte aceitava um Estado mais controlador com impostos, regulação e tudo mais que vem nesse pacote. Complicado imaginar que tanta gente se matou pelo destino de escravos, essa era apenas mais uma faceta da história.

Então, embora o Sul tenha se posicionado contra o direito à humanidade dos negros, o “orgulho” local não se deriva exatamente do racismo. Não que seja um grande orgulho… eu tenho essa teoria que quanto mais próximo do equador mais dor de cabeça um povo dá, e nos EUA não é lá muito diferente. A parcela da população que vota no Bush feliz da vida costumava usar essa bandeira no passado. Com todos os problemas de excesso de religiosidade e vistas grossas para o racismo, tem algo de interessante nessa mentalidade sulista: a liberdade. Não é muito comum ouvir essa informação, mas o estado do Texas, por exemplo, não é parte dos EUA por “obrigação”. Tecnicamente eles estão sob contrato dentro do país, podendo se liberar a qualquer momento. Na prática é bem complicado fazer isso, mas exemplifica como as coisas funcionam diferente nesse aspecto de independência do Estado nessa parte do país.

É de lá que vem muito dos discursos (muitas vezes hilariamente alienados) sobre libertarianismo, aquele mesmo conceito de cada um por si sem Estado para regular que aquele pastor (que eu já esqueci o nome e faço questão de não procurar) tentou propor nas eleições passadas aqui em terras tupiniquins. A ideia em si não é horrorosa: o governo tende a ser uma merda (perigosa) e por isso não deveria ter tanto poder. A prática que não seria muito aprazível… em tempos de direitos humanos faz sentido trabalhar com algum grau de rede de proteção social. Esse povo do Sul tende a se orgulhar muito de sua rebeldia contra o sistema, e faz dessa bandeira confederada um dos símbolos mais poderosos disso.

Mas é claro, ela acaba adornando movimentos desprezíveis como a KKK (que não é DIBOA! – piada que só gente muito da velha guarda vai entender). Mas o símbolo não significa racismo. O que se derivou dele que muitas vezes é. Numa análise fria, a bandeira confederada é usada pelos “rednecks” deles como símbolo de liberdade. Liberdade que infelizmente é usada como motivação para malucos feito Dylann cometerem suas barbaridades debaixo de uma presunção de direito de tomar a lei e o sistema em suas próprias mãos.

Até por isso a bandeira foi celebrada por muitos e tolerada por tantos outros nesses últimos cento e cinquenta anos. Ela representa o sagrado direito de fazer merda com orgulho! Nas partes mais liberais e esclarecidas dos EUA essa bandeira é atestado de atraso e ignorância, mas o país parecia saber lidar com o conceito estendido de liberdade ao invés de focar no lado da guerra civil que ela foi utilizada. Tudo isso até acontecer o que aconteceu. Os milhares de negros assassinados desde o fim da guerra não foram motivo para banir essa bandeira, mas esses nove são? Foi a gota d’água?

Eu pessoalmente sou contra banir símbolos. Eles sobrevivem com uma força toda especial entre simpatizantes conscientes ou desinformados fascinados com seu poder. A suástica tem esse poder até hoje. Tudo bem que o símbolo é bem antigo e não significou nazismo em 99% do tempo que esteve entre nós na humanidade, mas desde que foi considerada inaceitável pela sociedade, ganhou uma força impressionante. Nazistas, racistas, intolerantes, adolescentes em busca de afirmação, completos ignorantes e afins ainda fazem grande uso dela. O símbolo cresceu em significado. Eu sempre aposto em debochar de um símbolo “maligno” até ele virar paisagem, mas eu sou voto vencido… as pessoas preferem se escandalizar mesmo.

Mas mesmo assim, eu até compreenderia se a bandeira fosse tornada ilegal logo após a guerra ou mesmo no fim da segregação institucionalizada. Dois excelentes momentos para se mexer nisso com alguma presunção de tocar a vida em frente e passar uma mensagem para a população. Mas, agora? Agora tem cheiro de oportunismo. Tanto que as vendas de itens com a bandeira subiram vertiginosamente, muitos até subindo os preços. O momento não parece mais razoável. Já vive-se por lá num Estado completamente contrário ao racismo. Tudo bem que em tese, mas o momento das ações práticas se esvaiu. Uma pena que essa gente tenha morrido nas mãos de um cretino sem noção da realidade, mas se nove pessoas mortas são o suficiente para se banir um símbolo… isso diz muito sobre a dificuldade de entender a gravidade dos crimes contra os negros na história deles. Se estava liberado até agora, não se presumia que a bandeira não era oficialmente um símbolo racista?

Ou agora com a internet as mortes começaram a valer mais? Não quero soar insensível ao trauma passado por aqueles que velam seus entes queridos, mas na escala geral das coisas, foi até pequeno o que aconteceu. Se Dylann tivesse aparecido com uma bandeira de um time de futebol (deles) nas fotos divulgadas pela mídia, o time teria que trocar de bandeira? O que não pode acontecer é se pautar por ações de malucos. Se estão arrependidos de deixar aquela bandeira sulista ficar tão famosa nos país, que ajam da forma adequada: façam uma campanha contra ela. Mas banir? Isso é dar pano pra manga. Isso é reforçar a crença dos defensores dela que o governo não tem noção ou direito de mexer com suas vidas.

Um cretino vai ter todo esse poder? Acaba sendo até uma contradição com o que se quer pregar. Se o símbolo é o problema, o maluco é o motivo para derrubá-lo? Se era o símbolo, chegou-se tarde demais, um século e meio tarde demais. Ele já está arraigado no inconsciente coletivo de boa parte da população local como motivo de orgulho. Esse tipo de merda demora-se séculos para desfazer, e assim como estamos vendo no caso da suástica, periga tornar-se ainda mais prevalente no caso de ataque direto. Se o maluco é o problema, bom, então lidemos com os malucos. Estejam usando qual bandeira estiverem.

Até porque corre o risco de conseguir o que Dylann quer: mais e mais malucos seguindo o exemplo, agora com a certeza que estão enfrentando uma guerra contra seu modo de vida. Mexer com símbolos diretamente é receita de desastre. Na sanha de querer fazer alguma coisa, como sempre parecem preferir as alterações cosméticas. É fácil parar de vender bandeiras, mas é complicado tratar um povo onde vários de seus representantes ainda seguem uma mentalidade do século retrasado no que tange os direitos humanos. O Sul sempre disse que não queria governo, enfie governo goela abaixo deles e você terá uma guerra. Se não aberta, pelo menos racial… e quem vai pagar o pato? Pois é.

Ações desastradas para dizer que está fazendo ALGUMA COISA não são exclusividade de país nenhum. Talvez o que mude é que no Brasil não pegariam o atirador. Cada um com seus problemas… mas, a humanidade é previsível mesmo. Sempre que possível, mate o mensageiro!

Para dizer que agora quer ler sobre o que acontece na Polônia, para dizer que essa bandeira é tipo da do Corinthians por aqui, ou mesmo para dizer que vai começar a vender por aqui para ganhar um trocado: somir@desfavor.com

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