Dia 4 de Junho: Marcha para Jesus, dia 7 de Junho: Parada Gay em SP. Fica meio nebuloso quem está provocando quem com as datas, mas… de qualquer forma, o que importa é que ambos são basicamente demonstrações de poder. O que não me entra na cabeça é o que exatamente essas demonstrações significam.

Concedo que representatividade faça diferença num sistema democrático, tenha em vista como o político médio tupiniquim representa muito bem o tipo de pessoa que se dá bem nesse país. Mas os homens brancos de meia idade com mais ganância que escrúpulos não fazem o tipo que marcha pelas ruas. Na verdade, eles preferem ficar longe dos holofotes.

E isso tem seus motivos: quanto menos gente prestar atenção neles, mais eles podem consolidar suas posições de poder sem grandes preocupações éticas. Aliás, eles podem ser completos inúteis nas funções para as quais foram eleitos, advogar em causa própria o tempo todo e ainda sim se manterem estáveis no controle da máquina de fazer dinheiro e poder que é o sistema atual. Quem quer mostrar força mesmo não se amarra na ideia de ser visto por todo mundo.

E mesmo na hipotética possibilidade de estarem interessados no bem comum, comoção popular ainda não é o caminho mais indicado. Quando as pessoas se sentem livres para ter opiniões, cria-se um fator de aleatoriedade que engessa a maioria das decisões necessárias. É o dilema da criação: você quer que todos recebam suas ideias, mas se deixar muita gente opinar antes, grandes chances de ter que mudá-la completamente. Opiniões são importantes, sim… mas elas tem seu limite de utilidade. Muitas viram ruído.

Vamos considerar os públicos das duas demonstrações públicas exemplificadas no começo do texto: se você é uma pessoa que concorda suficientemente com o conceito de direitos humanos, provavelmente enxerga mais melhorias para o mundo com a agenda da Parada Gay do que com a Marcha para Cristo. Mesmo que a “causa gay” ainda defenda alguns pontos nebulosos (toda causa defende algum), o conceito de mais liberdade e aceitação para um demográfico tão numeroso soa pra lá de razoável. Do outro lado, a pegada caricata-conservadora dos evangélicos não sugere grandes avanços para a humanidade. Em vários casos, muito pelo contrário.

Mas mesmo assim, vamos “esfriar” a análise e tratar ambos os públicos de forma parecida. Se eles querem mesmo mexer nas estruturas desse país, o caminho raramente passa pela visibilidade. O brasileiro médio – como de costume em populações sem acesso decente à educação – tem consideráveis dificuldades de entender o mundo ao seu redor. Todos os conceitos discutidos são muito mais pessoais do que deveriam. Falta a capacidade de digerir a informação recebida e de se colocar no lugar de outras pessoas, principalmente se não forem muito próximas.

Mexer com a cabeça desse povo exige muito trabalho e muito talento. Não se pode assustá-los com conceitos muito complexos, isso gera reações negativas; não se pode também deixar muito para a imaginação, ela não vai conseguir cobrir a distância necessária para gerar uma mudança de opinião. Talvez alguém como o Lula, lutando a vida toda pela causa gay (ou evangélica) conseguisse mexer com o povo o suficiente para conseguir alguns avanços, mas via de regra pouca gente é capaz de mexer com o brasileiro de tal forma.

Você pode estar pensando que os evangélicos levam grande vantagem nisso, mas… pense de novo… se eles fossem bons mesmo em empurrar os preceitos de sua religião, esse país já estaria mais organizado. Se tem algo mais comum que flamenguista e corintiano na cadeia, é evangélico. Os crentes aprontam até não poder mais, na prática essa fé toda não passa de história para boi dormir. Eu sou mais cristão que boa parte dos crentes no final das contas. Aquele povaréu berrando na igreja e enriquecendo pastores está tão perdido quanto qualquer um com as mesmas deficiências de aprendizado e noção de realidade que se considere de outra religião.

Mesmo os políticos religiosos não são tão bons assim em empurrar esse atraso todo goela abaixo da nação. Eles são ótimos para atrapalhar e impedir medidas mais humanitárias, mas suas propostas tendem a ser tão burras e deslocadas da realidade que ninguém consegue fazer valer na vida real. Espero não queimar minha língua no futuro, mas o adversário aqui é muito burro e/ou muito imediatista para causar danos duradouros. O pouco apoio político que os gays tem também não preza pelo resultado: acabaram entrando num embate pirotécnico com os conservadores e não conseguem se articular para passar nada de realmente importante.

O que eu argumento aqui é que ambos os lados seriam mais poderosos se seguissem a fórmula clássica de sair dos holofotes e começar a jogar o jogo político. Bem subornados, nossos legisladores passam qualquer lei. Bem chantageados, também. Empresas vem se dando bem nesse jogo há muito tempo criando facilidades e reduzindo obstáculos legais ao jogar o jogo em silêncio. O público que não se ressente de nenhuma perseguição conquistou essa posição, muitas vezes jogando sujo.

A visibilidade de paradas e marchas chama atenção, cria opiniões. Faz surgirem defensores e detratores. Reforça a ideia de perseguição (razoável para os homossexuais, ridícula para os evangélicos) e cria uma sensação de unidade entre o público. Mas, ao mesmo tempo… cria obstáculos técnicos para a verdadeira resolução das questões que os afligem. É como se manter um inimigo comum fosse melhor para os negócios. Isso é muito claro na estratégia dos crentes, mas começa a me preocupar que pareça o mesmo para os gays. A verdade é que o público médio não entende basicamente nada do que está acontecendo, e se revoltaria por meio minuto se qualquer um dos lados forçasse alguns dos pontos de suas agendas. Aliás, se a mídia estivesse comprada também, nem revolta teria.

Conscientização é útil para ensinar o povão a usar mais camisinha ou a fumar menos. Mas para gerar mudanças consideráveis na legislação? Muito difícil imaginar que o brasileiro ponha a mão no coração (provavelmente do lado errado) e comece a enxergar o mundo de outra forma. E mesmo assim, ele esqueceria antes da próxima eleição e votaria nos mesmos de sempre. Então… o que que são essas paradas e marchas? Masturbação pública? Algo pra fazer? Demonstração de poder? Talvez tudo isso ligado a uma inocente vontade de fazer o mundo melhor, seja lá por que caminho.

O que que se ganha com isso? Democracias são feitas de lobbies e acordos longe dos olhos do povão. O segredo do sistema é não concentrar poder demais na mão de ninguém, não depender de conscientização de analfabetos funcionais. Quer algo do sistema? Entre nele. Quer festa e continuar vítima? Sai pra rua!

Para dizer que eu estou mais chato que o habitual, para dizer que eu consegui ofender os dois públicos, ou mesmo para dizer que uma hora os crentes deixam de brincadeira e todos vamos nos arrepender: somir@desfavor.com

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Comments (30)

  • Certamente, participação popular nao é o único meio. Entrar no Sistema dá mais resultados. Contudo, nao fazer ambos, para mim, é atitude passiva.

    Enquanto eu nao participo nos bastidores, vou continuar indo as ruas e lutando contra leis arbitrarias e politiqueiras.

  • marcha ateísta

    Também acho que honestidade de crentes não passa de fachada. Onde eu trabalho, tenho 2 colegas crentes fazem tanta trapaça e sujeira que chega a assustar. Um deles quer ser pastor, já sinto pena dos fiéis. Vai ser daqueles que pedem pra deixar até a bolsa no altar. Um deles, ao mesmo tempo diz que gays tem que morrer e ir pro inferno, vive se abraçando com homem. Crente se acha blindado em nome de Gezuiz.
    Fiquem espertos quando lidarem com crentes, fazer negócios etc, eles costumam ser muito trairas! Prefiro os GLBT!

  • Uma moça evangélica

    Mas os evangélicos já estão mais avançados em termos de jogo político. Para ficarmos em um exemplo macro, a isenção de tributos obtida em 1988 permitiu a conquista de uma prosperidade que permitiu a aquisição de um canal de televisão, horários em outros canais, um importante mercado editorial, etc, o que permitiu financiar a bancada evangélica e, principalmente, alcançar um patamar autossustentável. Tanto foi assim que, quando o Templo de Salomão foi inaugurado em São Paulo, um dos primeiros políticos a prestigiá-lo foi o católico apostólico Alckmin. E o prefeito Haddad, sempre tão certinho, prorrogou a licença provisória de funcionamento do templo por seis meses sem maiores exigências. Acham pouco esse avanço a facilidades como essas em menos de trinta anos? Logo, os evangélicos podem dar-se ao luxo de manter a marcha de Jesus, por mais que, pessoalmente, também tenha minhas reservas. Além do mais, aquele Templo é uma aberração.

    Por mais que tenhamos muitos defeitos, é irônico que os irmãos homossexuais não sejam efetivamente mais coesos do que os evangélicos em prol de sua causa. Mas isso não é algo exclusivamente deles. Por um lado, vivemos em uma era de declínio do engajamento, e da ascensão inexorável do individualismo, do não ter que prestar contas a ninguém senão a si mesmo e de descrédito generalizado nas instituições. Por outro lado, os direitos que eles vêm obtendo, por mais festejados, não são propriamente um avanço, mas sim a tentativa de meramente encerrar o absurdo da segregação e acabar com o abismo.

    A questão é se, no que e quando desejarão ir além desse aparente nivelamento, e continuar a sacrificar-se para aprofundar seus direitos. Nada contra a Parada Gay, tão válida quanto a Marcha. Mas os evangélicos já não são mais tão obrigados a empurrar os preceitos da nossa religião para os outros. Não vamos predominar nesse mundo, tão interessante na sua pluralidade, mas já temos um mundinho confortável para nós.

    • Olha, não sei se dá pra concordar contigo. Os principais grupos de vertente evangélica tem ora base nos EUA, ora relações fortes de apoio por parte de grupos de posição religiosa afim por lá.

      Creio inclusive que há uma tendência da força do grupo dos evangélicos aumentar ainda mais, ainda que não no mesmo ritmo dos últimos 30 anos.

      Quanto as estratégias adotadas pelos pentecostais e neopentecostais do naipe do R. R. Soares, Silas Malafaia, Marco Feliciano e Valdemiro Santiago, dentre vários outros, é bem interessante pra analisar sob o ponto de vista de “case” de “marketing”.

  • “Opiniões são importantes, sim… mas elas tem seu limite de utilidade. Muitas viram ruído.”

    Isso lembra o trabalho de física, onde se montou dois grupos enormes que ficaram discutindo, discutindo e discutindo quanto a como fazer o trabalho e não chegaram a lugar nenhum. Até estou preocupado com a nota da matéria justamente porque boa parte dela sai justo desse trabalho.

  • O seu texto tocou em um ponto bastante delicado. O que há em comum entre quem marcha por Cristo e quem vai para a Parada Gay? Muito. Muito mais do que o suportável para ambos os lados. Tanto os gays quanto os cristãos são filhos de uma época em que o “Penso, logo existo” foi substituído por “Sou visto, logo existo”. As pessoas precisam aparecer desesperadamente, porque só assim sentem que estão vivas. E precisam pertencer a um grupo e a uma rede social repleta de gente disposta a dar likes ou abraços para se sentirem acolhidas e visíveis. As ruas são mais calorosas do que a Internet. Mas só as redes sociais podem divulgar as fotos dos abraços e documentar a importância dessas pessoas. A maioria não quer mudar o mundo. A maioria de nós só quer uma coisa: se sentir especial.

    O problema é que a forma mais rápida de aparecer é o vitimismo. As pessoas se sentem profundamente conectadas às outras quando são “irmãs de sofrimento”. Eu já fui pra rua em marchas feministas e a sensação é uma mistura de “O mundo é escroto! Tudo o que deu errado na minha vida foi culpa do machismo! Eu tenho razão! Eu tenho certeza! Estou vivendo a História! Meu corpo, minhas regras! Estou lutando contra uma injustiça! Estou enfrentando os inimigos reacionários! Minhas centenas de amigas estão aqui comigo! Juntas somos fortes!” É uma sensação de união de torcida de futebol. Intensa e viciante.

    O que eu quero dizer é que mudar o mundo, mudar as leis, diminuir o preconceito não são os objetivos principais da maioria. A verdade é que se tudo mudar, as vítimas vão ter que abandonar o confortável lugar de vítimas, de queridas, de unidas, de conectadas, de visíveis. Mas há algo pior do que ter que superar o fim do “sofrimento acompanhado”: Vão ter que abandonar o maniqueísmo.

    Eu já fiz experiência com crianças e a maioria NÃO suporta história sem vilão. Você vai contando os dias felizes e cheios de paz do personagem, que tem amigos sinceros e pais amorosos, tira boas notas e é saudável… Chega uma hora em que as crianças perdem a paciência e perguntam:
    – Sim, ele foi pra escola de novo e depois vai almoçar de novo com os pais. Mas o que mais aconteceu? Como assim todos os colegas dele são legais?

    Eles se entediam, perdem o interesse pela história. Mas é só inserir um vilão ou um problema, que todos voltam a se interessar pelo “herói”. Triste é que eles crescem e continuam assim. Não existe Deus sem demônio. Nem Batman sem Coringa. Nem Cinderela sem madrasta má. Como ter final feliz sem luta? Como ser importante sem ser invejado? Como ser especial para Deus se ninguém for condenado ao fogo do inferno?

    Faz parte do gozo do cristão se sentir perseguido. Faz parte do gozo do gay se sentir perseguido. Faz parte do gozo das feministas se sentirem injustiçadas. Não estou dizendo que não existe homofobia e machismo. Existem e matam! Estou dizendo que os injustiçados tem um lado sombrio que precisa se alimentar não apenas de verdades mas também de ilusões vitimistas para que se perdoem pelos próprios fracassos (A culpa não foi minha! Foi dos preconceituosos!)

    Tanto os gays quanto os cristãos se sentem heróis injustiçados e perseguidos e precisam um do outro para continuarem nessa estranha zona de conforto. Como você muito bem observou, Somir, os “homens brancos de meia idade com mais ganância que escrúpulos não fazem o tipo que marcha pelas ruas. Na verdade, eles preferem ficar longe dos holofotes.” Eles, sim, mudam as regras do jogo. Eles, sim, interferem no Sistema. E eles devem torcer muito para que esses ruídos aumentem cada vez mais. As briguinhas por bobagens como beijo gay em novela ou comercial do Boticário, ou piadinha de comediante tiram o foco das vítimas verdadeiras e se misturam com outras causas realmente justas (e aqui eu me refiro aos gays, claro. Os da marcha para Jesus são deprimentes, mas isso é imparcialidade minha e não vem ao caso.)

    “Quer algo do sistema? Entre nele. Quer festa e continuar vítima? Sai pra rua!” Já saí da rua. Mas ainda não consegui entrar no sistema. Para isso, é preciso entendê-lo. E não é fácil, porque os ruídos nos desconcentram. E estão cada vez mais altos.

    Parabéns pelo texto.

    • Marina, a Psicanálise também existe em lugares que não existem?! E você não quis me conhecer por causa de umas cortinas amareladas… que mundo é esse?! :-(

    • Muito bom. Duro é querer mudar alguma coisa, perceber que não está bom, mas não querer participar de vitimismo, nem conseguir ser frio o suficiente para entrar no jogo. Acho bem deprê .

      • Bem deprê mesmo, concordo plenamente ! E esse é o preço mais “brando” de ser ride diante “da Suíça”, fora desses “eixos”…

  • As marchas são um negócio na área do entretenimento com viés político e ideológico. Só isso. Carnapolítica.

    • E viés comercial também. A parada gay rivaliza com a fórmula 1 pra ver quem causa maior lotação nos hotéis de São Paulo.

    • J,

      Eu sugiro uma marcha para Lúcifer gay. O anjo caído que foi expulso do céu por ter se apaixonado por outro anjo. E que, por isso, se revoltou e hoje odeia todo mundo. Inclusive os gays.

      • Eu iria com o cartaz: “Deus só expulsou Lúcifer porque teve ciúme e não suportou vê-lo apaixonado por outro. Só de raiva, Lúcifer passou pela cura gay e hoje é hétero convicto.”

        Meu cartaz irritaria todo mundo. Melhor não. Cria um melhor aí. E bora marchar!

      • hahahahaha

        Paulistanos “facebookers” chegaram a fazer uma “Marcha para Satanás”, se tivessem pensado mais além ainda… xD

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