Vida feia.

Um dos meus maiores problemas com o conceito de “Céu” é a felicidade eterna. Imagine não ter mais nenhum problema e sentir-se satisfeito o tempo todo, para sempre? Imagino que é o muita gente nesse mundo imagina ser o prêmio ideal para uma existência conflituosa e muitas vezes injusta, mas… para sempre? Se não existe mais o feio, tudo é bonito ou tudo é medíocre? Eu aposto mais na segunda hipótese.

Já falei desse tema num Des Contos antigo sobre um futuro (talvez nem tão distante) onde todos seriam geneticamente perfeitos e saudáveis. A moda entre os adolescentes então seria adicionar cicatrizes e defeitos em seus corpos. Mas eu não trabalhei o conceito como mera rebeldia, porque acredito que seja mais do que isso: no fundo mesmo, temos tanta atração pelo feio e pelo trágico como temos pelo belo e o romântico. A única coisa que muda é a prevalência deles na nossa realidade.

A vida é “feia” na média. O orgânico tem seus momentos de agrados sensoriais, mas até a modelo mais atraente é capaz de interditar um banheiro! Todo mundo é mais ou menos repulsivo por igual por dentro. Estética é um conceito complexo e secundário na vida. Primeiro tem que funcionar, depois pode ser agradável, mas sem obrigação nenhuma.

O que eu argumento aqui é bem mais do que “é conhecer o feio que torna algo bonito em comparação”, é uma teoria (provavelmente maluca) que tudo o que envolve vida é atraente mais ou menos por igual, a única coisa que nos especializou na busca pelo belo e pelo justo (conceito personalíssimo) é a lei de oferta e demanda. Não há nada de intrinsecamente belo em um crânio aberto num acidente de carro, mas a estrada sempre fica mais lenta pelos carros desacelerando para ver melhor o desastre.

Porque nesse contexto de tratar repulsa como uma atração mal resolvida muita coisa começa a fazer sentido nesse mundo. Desde aquela pessoa que adora ver pústulas cheia de pus estourando até mesmo coprófilos derivando enorme prazer de seu fetiche. Talvez tudo isso seja nosso em geral. Talvez todo mundo possa aprender a gostar das coisas mais horríveis e nojentas que a humanidade faz (e frequentemente nos deixam confusos). Eu sei, eu sei… é uma ideia de difícil digestão. Mas nada tema, é só uma ideia. A vida e tudo o que gira ao redor dela nos é extremamente atraente. Inclusive a parte horrível. E não estou falando só do que é físico…

Uma das minhas palavras preferidas no mundo é “schadenfreude”, do alemão. Significa o sentimento de derivar prazer da tragédia alheia. Não se traduz perfeitamente para o português, mas traduz bem algo muito humano. Eu vou mais longe aqui: não enxerguem esse prazer como algo necessariamente odioso, não é só querer ver outra pessoa que você não gosta sofrendo. É muito do que eu estou propondo sobre a atração pelo feio, pelo trágico. A história triste te faz sentir mais vivo, a empatia gera um prazer de “existência”, mesmo no sofrimento.

O que há de feio e trágico na vida é muito do que nos prende a ela. É onde achamos um chão, um terreno comum com quem enfrenta os mesmos desafios e nos faz nos sentir um pouco menos sozinhos. Uma das condições mais torturantes da consciência é o isolamento: tudo é resultado de estímulos interpretados. O Universo está todo na sua cabeça e não há nenhuma escapatória disso. Bom, pelo menos se você exige um mínimo de método científico no que escolhe acreditar. É no entendimento da morte, por exemplo, que finalmente se começa a notar a vida. O que nos incomoda nos dá suporte.

Repulsa (psicológica) é uma construção nossa para manter a busca pelo raro viva. Claro que o corpo humano é feito para rejeitar muita coisa que faz mal, a evolução cuida disso. Sem a rejeição ao feio, talvez ficássemos presos demais ao “utilitarismo” e jamais tivéssemos nos tornado o que somos agora. A busca pelo que é belo e justo nos move rumo aos destinos mais complexos, nos faz gastar muito mais energia do que o estritamente necessário. Humanos gostam muito de sal e açúcar porque nossos antepassados penavam para conseguir, por exemplo. E quem se esforça mais para conseguir alguma coisa com certeza tem mais chances de seguir em frente na evolução.

Se ainda não parece que estou indo para alguma direção com esse texto, tento esclarecer: estou separando tudo entre comum e raro. Beleza, feiúra, felicidade e tristeza… queremos o raro. Somos descendentes diretos de quem procurava o raro, e essas maçãs não caíram longe da árvore. A mesma lógica de quem se encanta pela beleza funciona para quem se encanta pela feiúra (e o nojento). E eu, talvez dessensibilizado pelos horrores da internet, começo a desconfiar seriamente que não há vantagem clara para nenhuma das preferências, desde que exista o fator da raridade.

Por isso eu volto e explico a única instância de “feia” com aspas neste texto. Justamente ao falar da vida em média. A média é comum, não é bonita nem feia. Seja lá o que te move, não aposte que está nessa média. O horrendo nos prende à existência, o encantador nos mostra que ela pode ser melhor. O resto – a grande maioria – é apenas a sopa primordial que permite o nascimento de ambos. O “Céu” é algo estranho por tirar de nós o médio, justamente a vida. Evidente que eu não estou escrevendo o texto apenas para enfraquecer um conceito de crenças que acho ridículas, mas muitos de nós nos perdemos às vezes com ideias parecidas.

Ideias de perfeição. Excesso de limpeza, por assim dizer. Seja no que os sentidos te trazem, seja no que a mente faz com esses estímulos. No final das contas, o “Céu” é um conceito limitado no que pode nos oferecer. A busca pelo o que é belo, nobre e justo com certeza deve fazer parte do que nós somos, mas negar a atração do lado feio da vida é furtar-se da capacidade de “estar aqui” para vivenciar o que buscamos. A escrotidão da vida é aquele cheiro pungente que nos acorda de qualquer sono.

E uma das condições primordiais para sentir o que a vida nos oferece… é estar vivo. Vivemos num mundo tão abarrotado de pessoas esperando por um prêmio depois da vida que acabamos ancorados numa noção de que o feio é passageiro, que tudo vai melhorar consideravelmente e isso aqui não passa de um pedágio. O que talvez explique bem a dificuldade de evoluir e lidar com os próprios problemas. Abandonar o conceito de beleza e felicidade perenes – mesmo que como prêmio do além-vida – significa também colocar os pés no chão e assumir-se responsável pela busca. Justamente a função da “feiúra”.

A vida? A vida é média.

Para dizer que eu claramente não sei mais do que estou falando, para dizer que sente-se motivado e desmotivado ao mesmo tempo, ou mesmo para dizer que eu devo rir muito quando escrevo essas coisas: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • A certeza de que posso morrer agora e o Universo se extinguirá junto com meu cerebro, me motiva a escrever este comentário rapidamente. Caso contrario, eu poderia deixar pra postar via psicografica, mas dai, é possivel que, do mesmo modo, eu nao visse nada de importante neste comentario.
    Bah, eu ja postei, ora!

  • Essa imagem é tão feia que parece a minha sogra! Agora vou poder chamar a véia de minha vida e ela nem vai desconfiar…

  • Nossa, essa semana eu to meio avoado no desfavor, pq estou achando o começo desse texto (bem como todo o texto de segunda do Somir) com cara da Sally tentando imitar o Somir, e o final bem com a cara do Somir.

    Cheguei a conclusão que não sei mais o que está acontecendo, vou estudar matemática que perco menos…

      • Imaginei minha tia falando isso para o “eu” de 5 anos, haha

        Enfim, me sinto um BM nesse lugar, mas volto todo dia pra ter certeza que posso melhorar com os textos tão legais e desafiantes de vocês.

  • Minha mãe sempre dizia que quem não tem problema procura. Por que gosta do raro, será? Nem fodendo que eu ia preferir vencer dificuldade do que ter coisa boa fácil
    dificuldade =ruim =problema

    • Pra mim é claro poder preferir vencer dificuldade(s) se existir(em) por motivo(s) justo(s) ou quase, mas quanto a “obstáculos de terceiro / quarto mundo” eu obviamente tenho que concordar.

  • Achei o texto curto, Somir. Mas o tema é muito interessante. Realmente, a vida é média. Não é bonita nem feia. E todos nós queremos o raro, queremos encontrar algo especial. E é incrível como a feiura nos atrai tanto quanto a beleza. Há um prazer sádico universal diante da queda de um inimigo.

    “Uma das condições mais torturantes da consciência é o isolamento: tudo é resultado de estímulos interpretados. O Universo está todo na sua cabeça e não há nenhuma escapatória disso. Bom, pelo menos se você exige um mínimo de método científico no que escolhe acreditar.”

    Como é que você lida com isso? Com essa impossibilidade de saber… Com essa incapacidade de poder afirmar se vemos o que estamos vendo, ou se interpretamos tanto a ponto de deturpar e modificar a realidade… Como lidar com a limitação dos próprios sentidos na hora de perceber o mundo? E se somos tão limitados a ponto de não estarmos conscientes dos fatos “óbvios” que nos rodeiam?

    Outra coisa: Como é que você lida com a certeza da morte? Porque essa certeza é pra poucos. A maioria acredita que sobreviverá ao fim. Que Deus pode até nos condenar ao inferno, mas não à morte, ao nada, à inexistência. A maioria acredita que temos alma, que vamos continuar vivos quando não houver mais vida.

    Como você lida com a certeza de que vamos morrer mesmo? MESMO! Como faz para levantar da cama e seguir em frente, rumo a uma evolução que não vai ter continuidade? Como faz para segurar os impulsos, ser cauteloso com o presente e ter esperança em um futuro que, a longo prazo, será morte, será o nada, será o fim, será pó?

    • Eu lido com isso com o pensamento que depois que morrer, acaba tudo.
      Acaba o prazer de ler, o prazer de passear com o cachorro, o prazer de viver, mesmo que seja uma vida feia e medíocre.
      Se não ser cauteloso, não vai desfrutar de tudo o que pode, e não é depois da morte que conseguirá desfrutar.
      O que dá sentido a minha vida, é a certeza da minha morte. Comecei a curtir e ser mais cautelosa depois que ‘descobri’ a morte. Afinal, se vamos viver para sempre, mesmo que não nesse corpo/mundo, para que ser cauteloso com nossa vida? Para que ir atrás de nossas vontades, se é só sentar em um banco da igreja 1hr por semana que teremos vida eterna?

    • Existe uma regra nesse jogo que é “você não pode quitar”. Essa regra não é imposta por alguém e sim pelo fato de que se você fizer isso, outras pessoas poderão sofrer. Concordo que não há um ponto em se jogar isso e particularmente eu não escolhi começar, mas pra mim conseguir achar graça em algumas coisas e ir levando sem causar mal a outras pessoas mesmo que o fim seja só o fim, ponto final, sua consciência simplesmente acaba e suas memórias são perdidas para sempre, é o mais próximo de ganhar que alguém pode chegar, porque nem mesmo viver pra sempre seria considerado ganhar. Viver pra sempre também seria uma merda total sem dúvida alguma, pense sobre isso.

    • Como é que você lida com isso?

      Pessoalmente, eu acredito na “melhor resposta possível”. Existem limitações inescapáveis nesse modelo de “prisão dos sentidos”, e elas enlouquecem se pensarmos demais nelas. Eventualmente aceita-se que há um grau de certeza máximo e que faz muito sentido trabalhar com ele na vida. A melhor parte disso é que não importa o que você entende da vida, do universo e de tudo mais (wat), é muito provável que ainda exista uma resposta mais lógica disponível. Pra quem gosta de aprender, estar errado não é tão ruim assim.

      E sempre tem aqueles momentos onde você se sente realmente conectado com outra pessoa e sente-se menos perdido.

      E sobre a morte… cheguei à mesma conclusão que tantos outros: o jogo é jogado aqui. Acorda-se para viver aqui. Minhas fantasias de imortalidade estão apontadas para o transhumanismo, mas… pergunte-me de novo daqui a 40 anos e veremos quão macho eu serei no meu desdém pela própria mortalidade.

      • Enlouquecem mesmo. Vou parar de pensar nisso. Sempre que vejo um louco dizendo que é perseguido por ETs, que estão envenenando a comida dele ou que Deus falou com ele e pediu para que ele espalhasse a palavra santa, sinto calafrios.

        É medo da loucura refletida no outro e que pode ser minha. Medo de enlouquecer. Medo de perder o pouco controle que tenho sobre escolhas, ações e pensamentos. Medo de perder a razão. Medo de sofrer, medo de morrer… A vida não é fácil. Eu lido bem mal com a falta de certezas. Estou tentando achar um equilíbrio entre o Carpe Diem e a prudência. Tentando aproveitar o máximo possível sem me expor ao risco de morrer mais cedo do que poderia.

        Mas não é fácil. Como a vida não dá garantias, cada escolha em busca de alegria é um risco de errar e de me aproximar perigosamente da morte, ou da amargura, ou da frustração, ou da violência, ou da loucura.

        Sigo arriscando.

  • A coisa que eu mais queria era que a vida não tivesse problema. A vida da maioria e na maior parte do tempo é feia sim. São inúmeros desfavores toda semana. Ah…e vc deve rir quando escreve certas coisas.

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