A História Desfavor: Capítulo 2

Dizem que não conhece a história está destinado a repetir seus erros. Preocupados com as inúmeras incongruências e lacunas deixadas nos registros da humanidade, Sally e Somir começam um projeto ambicioso: recontar nossos passos como espécie de uma forma que finalmente faça sentido, um evento importante por vez, onde quer que tenham acontecido. Pretendemos transformar “A História Desfavor” em livro, e durante essa semana de comemoração do Dia do Nerd, teremos uma prévia.

E nossa história começa nas cavernas…

Pré História
Capítulo 2: A roda.

Sô sorri ao ver quase toda a tribo reunida diante da grande fogueira que ele e Sá fizeram horas antes. Apesar do medo evidente nas expressões de seus colegas neandertais, o calor, a luminosidade e o cheiro de carne assada funcionaram como um irresistível atrativo para os locais. Sá parece entretida com o preparo do alimento, posicionando suculentos pedaços de antílope alguns centímetros sobre a lenha já carbonizada.

SÔ: Não é melhor colocar direto no fogo?
SÁ: Que nada! Isso estraga a carne… eu estou pegando o jeito disso. Acho que está no meu sangue.
SÔ: Bom, é mais complicado fazer assim. Duvido que pegue… de qualquer forma, tem que manter essa gentalha bem alimentada se quiser que eles me ouçam pelo tempo necessário.
SÁ: Eu ainda acho uma ideia de merda.
SÔ: Quer ser a rainha dessa ralé ou não?
SÁ: O que é uma rainha?
SÔ: Tipo macho-alfa, só que mulher. E não precisa trabalhar nunca mais.
SÁ: Gostei do conceito. Não acho que a humanidade é burra o suficiente para cair nessa, mas… não custa tentar, né?

Sô abre os braços e olha para todos, buscando atenção. Ela não vem. Sô suspira.

SÁ: Cambada de vagabundo, olha pra cá agora! Quem não olhar não vai comer!

Todos olham. Sô sorri para Sá e volta-se para a multidão.

SÔ: Meus caros neandertais… e eu vejo também que temos a visita de alguns afrodescendentes entre nós.
POPULAR AFRODESCENDENTE: Nós preferimos ser chamados de homo sapiens!
SÔ: Homo sapiens então…

Sô se volta para Sá, sussurrando:

SÔ: Esses nerds não vão a lugar algum, anota aí.
SÁ: Foco!

Sô esforça-se para sorrir novamente.

SÔ: Pensemos no nosso futuro…
POPULAR NEANDERTHAL: Você está falando com quem?
SÔ: Com todos vocês, ué.
POPULAR NEANDERTHAL: Mas como é que a gente vai saber quando responder?
SÔ: Eu estou começando uma coisa chamada história oral. Ninguém responde, vocês escutam e depois repetem isso para os outros.
POPULAR NEANDERTHAL: É bom o antílope ser tão bom quanto está cheirando, porque isso parece bem chato…

Começa um burburinho entre os presentes.

SÔ: Agora calem a boca que eu vou iluminar vocês, seus trogloditas! Como eu ia dizendo, precisamos pensar no nosso futuro. A Árvore de Fogo falou comigo. Ela me contou seus segredos.

O grupo reunido diante da fogueira exclama admiração em uníssono. Sá faz uma expressão confusa por alguns segundos, mas logo sua face se contorce de volta num sorriso de realização. Seus olhos brilham.

SÔ: E eu garanto a vocês que se vocês fizerem tudo o que eu… a Árvore… disser, caminharemos juntos para um mundo de felicidade e harmonia eternas. Um mundo onde nada nos impedirá…

Começa a chover. O bando se desfaz em questão de segundos, todos de volta para a segurança de suas cavernas, mas não sem antes pilhar toda a carne caçada a duras penas por Sá e Sô nos últimos dias. A fogueira cede logo depois numa nuvem de fumaça e vapor. Sô não se move um milímetro de onde está, olhar apontado para cima e cara de poucos amigos. Sá logo vem ao resgate, empurrando Sô de volta para sua caverna.

Sô fica mudo pelas próximas horas. Sá eventualmente desiste de conseguir alguma comunicação e recolhe-se a uma área mais profunda da caverna, onde se cobre com as muitas peles acumuladas recentemente. No meio da madrugada, contanto, seu descanso é interrompido.

SÔ: Teto!
SÁ: Hã? *acordando*
SÔ: Se tivéssemos algo para nos proteger da chuva, teria funcionado.
SÁ: Eu quero dormir…
SÔ: Mas não pode ser dentro da caverna, não cabe todo mundo numa delas.
SÁ: Você não vai me deixar dormir, né?
SÔ: Temos que construir algo que nos permita ter uma fogueira e ter a tribo toda protegida da chuva ao mesmo tempo.
SÁ: É, não vai… o que você está pensando?
SÔ: Temos que pensar fora da caverna! Fazer uma caverna!
SÁ: E como você pretende fazer uma caverna?
SÔ: Com… pedras! Caverna é feita de pedra, né?
SÁ: Tem um monte de pedras boas lá pra cima do rio. Mas são muito pesadas, nunca que você consegue trazer pra cá.
SÔ: Você duvida da minha força?
SÁ: Ai, minha Árvore de Fogo…

Na manhã seguinte, um combalido Sô faz o longo caminho até a pedreira mais próxima. Algumas horas mais tarde, já com o sol a pino, volta todo esfolado e ofegante com uma pedra nem tão grande assim. Sá está conversando com um grupo de mulheres quando avista Sô derrubando a pedra e caindo sentado no chão. Ela se aproxima, sorriso debochado.

SÁ: E então?
SÔ: Ok… admito… que o plano… não correu tão bem… quanto… o imaginado.
SÁ: Você perdeu o pessoal da tribo expulsando aqueles homo-sapiens que vieram nos visitar.
SÔ: O que aconteceu?
SÁ: Viram um deles fazendo sexo com sua mulher…
SÔ: E?
SÁ: Ela estava de frente para ele.
SÔ: Eca! Selvagens!
SÁ: É, que estranho, qual seria a vantagem de… peraí…

Sá fica pensativa. Sô estica o braço pedindo ajuda para se levantar, mas ela continua distraída. Resignado, levanta-se sozinho. À distância, pode observar um amontoado de objetos dos homo sapiens no local onde montaram acampamento, provavelmente abandonados na pressa de fugir dali. Sô se aproxima, atenção voltada a curiosos discos de pedra empilhados no chão. Logo sua expressão torna-se gananciosa, e começa a carregá-los rapidamente para dentro de sua caverna. Ao terminar, sai para caçar a refeição noturna. Algumas horas mais tarde, encontra-se com Sá, mas nem sinal dos discos em sua residência.

SÔ: O que você fez com as pedras que eu trouxe?
SÁ: Eu levei pro fundo, não tinha espaço pra nada aqui. O que era aquilo?
SÔ: Eu tive uma ideia genial!
SÁ: Medo…
SÔ: A gente pode trocar esses discos por comida e não precisar caçar por muito tempo!
SÁ: E quem vai querer isso?
SÔ: Quem quiser escapar da chuva!
SÁ:
SÔ: Você segura por sobre a cabeça e a chuva não cai em você!
SÁ: E precisa usar os dois braços para segurar uma pedra incrivelmente pesada para escapar da chuva?
SÔ: Isso!
SÁ:
SÔ: Tá bom, eu não pensei em todos os detalhes ainda, mas você disse algo que me deixou confuso. Como você conseguiu levar essas pedras pro fundo da caverna? Eu quase morri para trazer.
SÁ: Ah, é fácil. Olha só…

Sá volta do fundo da caverna com uma das pedras, ao invés de carregá-la ou empurrá-la como Sô fez, ela rola a pedra com facilidade.

SÔ: Hmmm… eu… eu deveria ter pensado nisso.
SÁ: Né?
SÔ: Bom, vamos comer, vai…
SÁ: Mas não se empanturra que eu quero testar uma coisa mais tarde.
SÔ: Ok…

Na manhã seguinte, Sá e Sô saem da caverna sorridentes.

SÁ: Quando se fala parece maluco, né?
SÔ: Eu sei! Mas é melhor ficar entre a gente.
SÁ: Tudo bem. Desistiu do plano de fazer a caverna?
SÔ: Não, ontem você estava cheia de boas ideias. Eu já sei como trazer as pedras pra cá! A gente se encontra mais tarde.

O dia passa, Sô consegue o apoio de vários outros homens com a promessa de mais um banquete de carne assada à lá Sá. Durante várias horas ele o os outros homens da tribo se matam para trazer e empilhar de forma correta as várias pedras necessárias para se construir a caverna da Árvore de Fogo. Uma chuva fina torna o processo ainda mais perigoso tornando as pedras especialmente escorregadias. Com apenas quatro fatalidades no processo, a construção é considerada um sucesso retumbante pelos homens presentes.

Sá, que observava de longe, aproxima-se de um Sô visivelmente extenuado.

SÁ: Vocês quebraram as pedras num formato redondo, rolaram até aqui e colocaram uma em cima da outra?
SÔ: Isso!
SÁ: E por serem redondas e não encaixarem, as pedras caíram diversas vezes e esmagaram alguns dos nossos?
SÔ: É… *bufando*
SÁ: Vocês poderiam ter colocado pedras quadradas em cima das redondas e trazido, sabia? As quadradas ficariam no lugar e não precisaria ser tão arriscado.
SÔ: Ha! Eu não vou escutar conselhos de construção de uma mulher…
POPULAR NEANDERTHAL: Mas o que ela diz faz sentido.
SÔ: Tá, em teoria faz sentido… mas vocês… é…
POPULAR NEANDERTHAL: Seu imbecil! Você matou dos nossos à toa!
SÔ: Sá, diz alguma coisa…
SÁ: Não posso, eu sou apenas uma mulher…
SÔ: He…

A tribo começa a se juntar ao redor de Sô, vários rosnando pedidos de expulsão para o arquiteto desastrado. O tempo fecha de vez, adicionando trovoadas por cima dos gritos dos neandertais. Sô começa a suar frio, preparando o que podia ser sua última frase como membro da tribo.

SÔ: Isso… isso foi um teste! Um teste da Árvore de Fogo! Ela queria saber se nossa crença era verdadeira… foi isso o que ela me disse. Aqueles que morreram nessa construção serão lembrados para sempre como mártires! Vamos enterrá-los nas raízes da Árvore de Fogo, irmãos!

Todos ficam em silêncio. Sá vai tentando acalmar os ânimos enquanto se aproxima de Sô.

SÁ: Pede desculpa que ninguém é tão bu…

Um raio acerta a árvore, botando fogo novamente num dos galhos superiores. Logo em seguida a tribo começa a berrar palavras desconexas, alguns já começam a cavar as covas. Vários vem abraçar Sô. Sá fica sem reação enquanto Sô se aproxima dela com um sorriso vitorioso.

SÔ: Ideia de merda, né?

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