Corpos virtuais.

+O site Bulimia.com (em inglês), dedicado a ajudar pessoas com distúrbio alimentar e encontrar tratamento, fez um “Photoshop reverso” em heroínas do videogame, mostrando como seriam suas medidas caso fossem como a maioria das norte-americanas. O site pegou algumas imagens de mulheres dos videogames e as transformou em moças um pouco mais parecidas com as que encontramos no mundo real e os resultados são realmente diferentes do que vemos nos games.

É um desfavor que padrões inalcançáveis existam, e também é um desfavor que as pessoas acreditem neles. Desfavor da semana.

SOMIR

Eu ainda me lembro das minhas aulas de desenho e das apostilas que o professor me passava. Ele era um desenhista das antigas que já tinha ilustrado até mesmo quadrinhos da Marvel. Apesar de ter como gosto a forma mais “comedida” como os quadrinhos eram desenhados no seu tempo, adaptava-se aos novos tempos ensinando estilos diferentes. Nos gibis mais modernos, a representação do corpo tinha sofrido uma alteração com o passar das décadas: as proporções estavam diferentes, incompatíveis com a realidade da anatomia humana.

Não vou entediar vocês com detalhes, só vou dizer que apesar de ainda ser ensinado a estudar até mesmo atlas médicos (isso era pré-internet) para entender como representar a forma de homens e mulheres, também deveria aprender a desenhar o corpo dos quadrinhos. Cabeças impossivelmente pequenas, ombros largos, cinturas inexistentes (até mesmo em homens), pernas intermináveis… gostando ou não, aquele era o padrão esperado pela indústria e seus consumidores. Não havia mais espaço para as formas mais comedidas de outrora.

Mas, eu gostava. Pra mim desenhar histórias em quadrinhos significava representar aqueles corpos impossíveis! Para o meu professor, nem tanto. Ele fazia questão que aprendêssemos a fazer o certo antes de fazer o “errado”. Sábio. Essa regra vale para basicamente todas as artes: conheça de coração o básico e o simples antes de começar a inventar. Se você sabe desenhar o corpo humano de forma realista, a escolha de deformá-lo para passar sensações é consciente. Você aprende a diferença e começa enxergar aqueles heróis e heroínas não como pessoas como nós, mas como representações de ideais de grandiosidade e força com qualidades e defeitos exacerbados para ajudar na exibição da história.

A Mulher-Maravilha não é uma mulher comum. Ela é uma semi-deusa! Batman não é só um detetive bom de briga, ele é uma amálgama de coragem e medo. Deve ser imponente e sombrio. Não se percam na nerdice: eu tenho um ponto. Reclamar que personagens de quadrinhos, animações e games seguem padrões irreais da forma humana é mais ou menos como reclamar com o Picasso porque as pessoas são muito “quadradas” nos quadros dele. Oras, sim! Esse é exatamente o objetivo: subverter a visão mundana das pessoas com imagens expressivas.

A arte não deve ser forçada a se conformar com a realidade. Ela trabalha além desse escopo. Pode voar, mas não pode ter uma cintura incrivelmente fina? Cedo o ponto que em indústrias como a dos quadrinhos e a dos games foca-se num público mais masculino (embora as nerds estejam proliferando – ainda bem!) e trabalhamos com elementos visuais mais queridos pelos homens: a força está nos músculos e a beleza está nas curvas. Mas, é papel da indústria cultural quebrar com esses paradigmas enquanto eles são desejados por seus consumidores? Não estaríamos terceirizando nossa capacidade de separar o real do imaginário?

Esses padrões inalcançáveis de beleza apontados pelo site merecem sim alguma atenção, mas na minha opinião mais pelo absurdo que é se pautar pela ficção assumida como medida de representação do corpo humano do que propriamente por reforçar o senso de inadequação de meninas e mulheres pelo mundo. Olhar para o corpo da Lara Croft (nos jogos mais antigos, nos novos já deixaram bem mais realista) e esperar ficar parecida já começa a entrar no campo da falta de conhecimento sobre a anatomia humana.

Advogo que não se censure a arte de forma alguma nesse aspecto, mas, evidente, não vejo mal nenhum em medidas como a que ilustra a coluna de hoje. Se há uma dificuldade de entender uma personagem de um game como algo tão quase tão estilizado quanto uma pintura expressionista, que se deixe claro para as pessoas as diferenças entre realidade e ficção. Acho triste que alguém se sinta deslocado por isso sem nenhum conhecimento adequado para se blindar. Eu cresci vendo He-Man, mas nunca me senti mal por não ser um fisiculturista loiro! Homens recebem mais proteção social para não se sentirem deslocados por sua aparência, e isso vem muito na forma de informação e aceitação desde a mais tenra infância. O corpo do Super-Homem é tão inalcançável quanto o de qualquer outra personagem feminina famosa, mas homens dificilmente entram em parafuso por causa disso, são ensinados que podem ser atraentes e interessantes sem esse tipo de corpo.

Defendo que mulheres recebam o mesmo tipo de proteção, mas que ela venha na forma de conhecimento e segurança com a própria aparência. Duas frentes: não ferre com a auto-estima das meninas na infância, mantenha-as bem informadas sobre a indústria da imagem mentirosa depois de mais crescidas. Representações em desenho (ou polígonos) de seres humanos são baseadas em proporções malucas que agradam mais aos olhos, a mídia trata pesadamente as imagens da maioria das mulheres em destaque para aumentar seu impacto, a maioria das imagens de corpos humanos com as quais lidamos em desenhos, fotos e filmes tendem a algum grau de estilização irreal.

Apontar o dedo para quem pode simplesmente desenhar mulheres com proporções mais reais pode parecer a solução mais simples, o que custa colocar um pouco mais de gordura na personagem do videogame? Mas, é isso que queremos mesmo? Colocar amarras na criatividade alheia para manter nossas meninas criadas pela mídia? Se não puderem apelar para o fantástico nas formas do corpo, vão se concentrar em outros aspectos, talvez até sensualizando ainda mais as atitudes dessas personagens para retomar a força de sedução. Arte é como água, se você empurra de um lugar, ela se acumula no outro.

Precisamos ensinar as pessoas que é normal que imagens estilizadas não se conformem com a realidade, e que temos que lidar com isso. De preferência, desde cedo.

Para dizer que eu só quero proteger meus gostos nerds, para dizer que se sente deslocada por ter órgãos, ou mesmo para dizer que a mulher americana média está precisando de dieta e exercícios: somir@desfavor.com

SALLY

Foi só depois de ver as imagens que percebi o quanto minha mente está contaminada: heroínas famosas da ficção com corpos “normais” me parecem FEIAS. Isso mesmo, feias, gordas, caídas. A normalidade me parece feia, e olha que eu não me considero uma pessoa influenciável. Daí eu me perguntei: se isso acontece comigo, uma pessoa adulta a esclarecida, o que será que acontece com meninas, adolescentes, em uma fase onde buscam aceitação social?

A equação não é tão fácil como o Somir pinta. Em tese, eu concordo com ele, as pessoas tinham que perceber que isso não existe. Mas um cérebro feminino bombardeado por um padrão de beleza diariamente por anos, mesmo sem querer, acaba incorporando isso de alguma forma. Acho muito improvável que uma mulher fique totalmente imune ou indiferente a isso. Crescemos sabendo que custa caro, caríssimo, peitar padrão social de estética.

Cabeça de mulher é diferente de cabeça de homem, e as exigências estéticas impostas a ambos os sexos também é bem discrepante. Talvez se homens tivessem desde sempre a noção de que é sua geografia que determina sua história, fossem mais suscetíveis a esse tipo de imagem. O fato é que, em maior ou menor grau, essa exigência midiática entra de alguma forma no cérebro feminino.

Pessoas adultas são mais preparadas para lidar com isso. Se uma revista de moda coloca uma modelo anoréxica na capa, eu apenas lamento. Mas crianças? Muitas das heroínas que tiveram os corpos redesenhados fizeram parte da minha infância. Por mais que se explica para uma criança que isso é irreal, o padrão fica na cabeça se repetido diariamente por anos.

Acho um tremendo desfavor que esse tipo de padrão irreal e impossível de alcançar continue sendo perpetuado desta forma. E quando falo impossível de alcançar, não me refiro a algo difícil e sim a algo cientificamente impossível. Lara Croft não conseguiria ficar de pé se tivesse as medidas que tem na vida real. Essas heroínas com esse padrão de corpo não teriam espaço sequer para acomodar os órgãos naregião abdominal, seriam seres humanos inviáveis.

É fantasia? Sim, declaradamente é fantasia. Mas uma fantasia apresentada como realidade, como algo alcançável, como algo desejável. Uma coisa é a Pequena Sereia, onde sabemos ser inviável uma cauda de peixe debaixo do umbigo, outra é um corpo onde o único impedimento são as proporções. Crianças não tem condições de lidar com isso. Nem mesmo eu, que sou adulta, tive. Imagina crianças.

Certamente censurar não é opção. Censurar nunca é opção, uma sociedade saudável e funcional repele por ela mesma algo nocivo. Não é o caso do Brasil, sabemos bem. Mesmo pais atentos que procurem estimular modelos mais saudáveis de corpos terão uma missão impossível: os corpos “perfeitos” (porém inviáveis) estão por todos os lados: na tv, na revista, nas propagandas da traseira de um ônibus. Não tem como escapar deles, a menos que criem suas filhas em uma redoma de vidro, atitude ainda mais nociva.

O que fazer? Não tenho a resposta. E o texto também não se propõe a isso. Fato é que essa imagem de corpos irreais é um tremendo desfavor, ainda mais quando lançada contra crianças e adolescentes. O simples fato de VER algumas imagens, independente de explicação, conversa ou diálogo já afeta as crianças. Um estudo recente comprova que meninas estão menstruando mais cedo por verem cenas homem-mulher em novelas e na TV no geral. Sim, muitas vezes o simples “ver” dá o start para algo que nem ao menos é consciente. A mera visão repetida de algo pode fazer mal.

Já imaginou reunir crianças e, todos os dias, sujeitá-las a um vídeo de uma hora com todo tipo de violência? Pessoas tendo suas cabeças cortadas, sendo fuziladas, sendo torturadas… imaginem isso, por anos. Em paralelo, os pais explicando que aquilo é errado, que não deve ser feito, que é feio. Por mais que a criança compreenda, que não se torne violenta, alguém duvida que essas imagens, pela sua força, terão um impacto no desenvolvimento dessas crianças? No mínimo, na melhor das hipóteses, elas terão uma tolerância maior com violência. Imagem repetida banaliza, independente de diálogo.

Convém à indústria do “querer ser” que as pessoas queiram ser algo impossível, pois assim podem te empurrar todo tipo de recurso, por mais estelionatário que seja, para tentar alcançar esse objetivo, que apenas eles sabem ser impossível. É todo um sistema contra um pai e uma mãe, não me parece justo, é uma luta perdida. É todo um sistema bombardeando cabecinhas confusas e inseguras de adolescentes, para as quais a aceitação é a coisa mais importante do mundo. Não tem pai e mãe que possam contra isso.

Muito triste que as heroínas dos dias de hoje não tenham espaço na região abdominal para comportar órgãos. Muito triste que as heroínas dos dias de hoje estimulem um padrão impossível de alcançar. E mais triste ainda que eu tenha me acostumado com elas a ponto de me desagradar um corpo normal. Se aconteceu comigo, o que não vai acontecer com a sua filha?

Para achar que pode proteger sua filha do mundo, para achar que podem existir corpos como o da Lara Croft ou ainda para reclamar que este tema não é novidade: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • Estava olhando os comentários, e só fui ver as imagens depois. E minhas primeiras considerações vão para as personagens originais. Das dez apresentadas, na minha visão, apenas três apresentam proporções irreais (sendo que uma é totalmente caricata – é uma personagem de Zelda, caramba), e uma quarta me deixou em dúvida. Todas as outras me pareceram bem realistas. Consigo lembrar de mulheres reais com o corpo parecido. E não falo de gente que vi na TV ou em outdoors, com a imagem manipulada, mas de conhecidas minhas, mulheres de carne e osso (e órgãos internos). São muitas as pessoas com aqueles corpos? Não. Elas existem? Sim.
    Quanto ao depois… as imagens tratadas ficaram obesas, sim. Mais uma vez, comparando com conhecidas minhas, encontrei correspondência com aquelas mais fofinhas. Pessoas que não são imensamente gordas, mas que estão evidentemente acima do peso. Eis o porquê de tê-las achado feias, Sally.
    Quanto a isso, vale um esclarecimento quanto ao conceito de “média”. A média não existe, ela é apenas um artifício estatístico para facilitar a representação de um grupo. Se nesse grupo existem mais pessoas gordas do que magras, a média será mais gorda. Se existem mais pessoas magras do que gordas, a média será magra. Se ambas existirem na mesma proporção, a média daquele grupo será um meio termo, nem gorda, nem magra. Claro que existem variações, dependendo de quão gordos sejam os gordos e quão magros sejam os magros, dentro da amostra. Se considerarmos a população americana, onde os obesos são, de fato, maioria, o resultado é esse. Como bem colocou o Everton, se fosse na Europa, e média seria outra, mais magra. Na Somália, a média é subnutrida, e o resultado seria diferente. No Japão, já seria uma média baixinha.
    Mas quanto ao ponto principal, acho que você está certo, Somir. Deveríamos blindar nossas meninas desde cedo para que aprendessem a separar ficção e realidade. Embora a Sally tenha razão ao dizer que a luta de um pai e/ou uma mãe contra todo um sistema é desproporcional e injusta, é possível juntar esforços nesse sentido. Não é algo fácil, mas um esforço conjunto pode produzir muito resultado no longo prazo e, quem sabe em algumas décadas, nossas meninas e mulheres sejam mais seguras de si, sem que precisemos implicar com arte e entretenimento.

  • Padrões comerciais utópicos de beleza…promoção de uma imagem falsa da realidade…

    Faz lembrar a informação de que em épocas anteriores as “gordinhas” eram a bola da vez.

    Posso afirmar que quanto mais fora do “padrão”, tais medidas se enquadram cada vez mais no padrão de minha preferencia.

  • Outra coisa a se levar em conta são as características das próprias personagens. A Lara Croft precisa ter um treinamento específico para realizar suas proezas e isso reflete no físico esbelto e ágil.
    PS: A pressão dos padrões de beleza em cima dos homens está crescendo bastante… Tem muita gente enchendo meu saco para fazer academia…

  • Nossa! É um pouco chocante mesmo ver as imagens! Eu tmb acabei achando feias! E saber que essas são as medidas de uma mulher normal, choca ainda mais! O problema é que desde muito cedo, meninas são criadas para serem “perfeitas”, ou seja, magras e cheias de curvas… E isso caga a nossa cabeça! CAGA DE VDD! A gente fica neurótica, cheia de merda na cabeça… E acaba buscando durante toda a vida ter um corpo perfeito…
    Eu mesma, me olho no espelho e me pergunto: Pq caralhos eu tenho q ter essa barriga feia? Pq sou assim e não assado? Pq não tenho o corpo perfeito como a das mulheres q saem nas revistas? E a gente se acha feia, se acha gorda, se acha estranha… E pensamos que somos nós que estamos fora do lugar, quando na vdd, é o padrão que nos imponem é que está…
    É difícil nos proteger, com tantas balas que nos são disparadas todos os dias… É difícil…

  • Agora vão querer dizer que obesidade é normal… mas ter uma alimentação saudável nem pensar, fazer exercícios nem pensar. Tá foda.

  • Não sei… Tendo um pouco mais a opinião do Somir…

    Crescemos vendo He Man, super homem, batman e outros super heróis masculinos cheios de músculos impossíveis. Crescemos cantando atirei o pau no gato, vendo bullying no chaves, jogando jogos violentos (e assistindo pica-pau e tom e jerry) e outras coisas semelhantes, e, na média, não tendemos a nenhum comportamento extremado de violência, bullying ou fuga da realidade como fazemos com corpos femininos.

    Penso , e posso estar redondamente (sem trocadilhos) enganada, que a informação e educação sobre esses assuntos acabam ultrapassando a exposição simplista a eles. Acho que sempre esteve muito claro, para esses outros assuntos, que existe um limite, uma diferença entre realidade e fantasia, ficção.

    Só que esse limite não foi muito bem explicado e explorado sobre dois assuntos que assombram a mente dos adultos: corpos femininos e a existência de bem e mal em uma única pessoa. E acredito também que limitar a arte ou a ficção não fará com que as pessoas parem para pensar sobre a realidade, amor próprio, pensamento independente e outros assuntos que tornam uma pessoa capaz de fazer escolhas realmente conscientes…

  • Afinal esses corpo são mesmo corpos normais ? Parece que exageraram no Photoshop e transformaram elas em gordinhas desproporcionais, sou a favor do meio termo não precisa buscar um padrão irreal mas também não é bom incentivar o padrão gordo, tem que ser um corpo saudável

      • Na média dos EUA, onde a obesidade é um problema sério. Ta longe de ser uma referência considerada boa. Se fizessem com base na média das mulheres da Etiópia ou da Somália ia resultar em um monte de mulher magra, talvez no nível da subnutrição.

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