Enquanto isso…

Enquanto isso, numa sala de uma grande gravadora…

PRODUTOR: E esse aqui?
PRODUTORA: Não combina… falta mais rebeldia… vai ser a voz de uma geração, né?
PRODUTOR: E se aumentar o topete?
PRODUTORA: Taí… eu consigo imaginar sim. Mais topete… isso!
PRODUTOR: Ah, esquece… esse não é aquele gay?
PRODUTORA: Desde quando isso impediu a gente?
PRODUTOR: Esse aqui já assumiu.
PRODUTORA: Já exploramos o público GLS?
PRODUTOR: Não é LGBT hoje em dia?
PRODUTORA: Faz diferença?
PRODUTOR: Não. Mas nosso público consumidor são mulheres e os homens que querem fazer sexo com elas.
PRODUTORA: Verdade. E se a gente fizer um lance cura gay? Ele vira evangélico e…
PRODUTOR: E vai cantar sobre bebedeira? Bêbado é o novo corno. Cantou sobre estar bêbado, vende!
PRODUTORA: Merda! Eu realmente vi ele estourando com um topete maior…
PRODUTOR: E essa moça?
PRODUTORA: Mulher rebolando e falando baixaria? Só se fosse no Rio ou na Bahia…
PRODUTOR: Não, eu digo algo mais comportado.
PRODUTORA: Talvez como algo secundário, mas precisamos de um herói do movimento. Alguém que fique, sabe?
PRODUTOR: Vamos em frente então… olha! Olha o topete desse!
PRODUTORA: Potencial!
PRODUTOR: Ah, merda, olha a de corpo inteiro…
PRODUTORA: Outro viado?
PRODUTOR: Não, quer dizer, não que eu saiba… mas ele é muito musculoso.
PRODUTORA: Ótimo, mais mulheres vão gostar da música dele.
PRODUTOR: É, mas a gente quer identificação. Tem que ser alguém… mais normal, só que arrumadinho. Uma coisa mais acessível. Ficar com esse corpo dá muito trabalho. E ninguém vai acreditar que ele bebe todas.
PRODUTORA: Verdade, tem que parecer um que elas vão conseguir segurar.
PRODUTOR: Deve ser tão mais fácil produzir bandas de rock…
PRODUTORA: Se você quer passar fome, só se for. Vai demorar mais uns dez anos até a moda voltar.
PRODUTOR: Está cedo para tentar outra boy band?
PRODUTORA: Vai demorar mais algumas gerações para esquecerem o que fizemos nas últimas tentativas. Acho melhor deixar pra lá.
PRODUTOR: Foco então. Esse aqui não tem cara de nada.
PRODUTORA: Pode funcionar. Parece alguém que você encontraria numa fila de banco de roupa social e estressado.
PRODUTOR: Põe uma roupa de adolescente, enche de maquiagem…
PRODUTORA: Faz parecer rico…
PRODUTOR: Vamos tentar?
PRODUTORA: Vamos. Chama pra conversar.

Alguns minutos mais tarde, um jovem com mais gel do que neurônios na cabeça adentra a sala, sorriso largo e sotaque caipira carregado.

CANTOR: É um prazerrrr estarrr aqui.
PRODUTORA: Você é a cara que queremos estampada na frente do movimento!
PRODUTOR: Só para saber… você tem algum irmão ou amigo com quem se apresenta?
CANTOR: Não, sou só eu mesmo.
PRODUTORA: Ainda bem, dois iam confundir. Você é compositor ou só intérprete?
CANTOR: Eu faço as minhas músicas, querem ouvirrr uma palhinha?
PRODUTOR: Não. Não precisa. Temos gente muito profissional para fazer as músicas.
CANTOR: Mas…
PRODUTORA: Veja bem. Temos um sistema complexo aqui, você vai ser a engrenagem mais dourada de todas, mas mesmo assim, uma engrenagem. Você sabe trabalhar em equipe?
CANTOR: Acho que sim, eu tenho uma banda…
PRODUTOR: É… não vai precisar. Nós te damos uma bem melhor, o que não falta nesse mundo é músico bom passando necessidade!
PRODUTORA: Eu já disse que conseguimos uma violonista só pagando a passagem e a estadia para aquele último DVD?
PRODUTOR: Acho até que foi caro, só o microfone da sanfona que funciona mesmo.
PRODUTORA: É que parece mais música de verdade com instrumentos assim. A pessoa não escuta, mas vê que é mais… música.
PRODUTOR: Já pensou em contratar atores para isso?
PRODUTORA: Gênio! O público nem sabe como se toca o instrumento mesmo…
CANTOR: Oi? Gente?
PRODUTOR: O seu nome é…
CANTOR: É…
PRODUTOR: Péssimo!
PRODUTORA: Tem que ser composto. O sobrenome conta demais em mercados mais interioranos.
PRODUTOR: Costume local. Sobrenome vale mais que nome. E o seu sobrenome é… porra… Silva?
PRODUTORA: Não dá não… a gente podia tentar um… Carvalho?
PRODUTOR: Almeida! Eu sempre quis ver um Almeida!
CANTOR: Eu vou trocar de nome?
PRODUTORA: Nome artístico. Todo mundo tem. Super normal. Almeida então?
PRODUTOR: Fechou. Temos que falar de algo importante agora…
CANTOR: Sempre disseram que a minha voz é meio…
PRODUTORA: O topete! Não está ornando, sabe? Tem que ser maior, mais imponente. Barba?
PRODUTOR: Está na moda. Mas vai esticar demais a cara.
PRODUTORA: Verdade. Vamos botar uma tatuagem nesse braço… com aquelas letras cursivas!
PRODUTOR: “Sou mais eu!”
PRODUTORA: Gostei!
CANTOR: Eu não gosto muito de tatuagem…
PRODUTOR: Trabalho em equipe. Eu não gosto de ficar indo em festa de rodeio para achar talentos locais, mas eu vou. Faz o seu, eu faço o meu.
PRODUTORA: Numa escala de 1 a 10, o quão bem você rebola?
CANTOR: Três?
PRODUTORA: Marca umas aulas, tem que ficar no 5. Viado o suficiente para as mulheres gostarem, macho o suficiente para acharem que você vai comê-las. Cuidado para não chegar no 6, não tem mais volta depois disso. Vai ter que se mudar para uma cidade de praia ou algo do tipo.
PRODUTOR: Tem namorada?
CANTOR: Sim.
PRODUTOR: Muito bonita?
CANTOR: Eu acho…
PRODUTORA: Deixa eu ver no seu Face… ah, aqui. É… o que você acha?
PRODUTOR: Hmmm… é uma nota 8. Acho que se cagar um pouco o cabelo dela desce pra 7 e você não precisa trocar.
CANTOR: Tem que ser nota 7?
PRODUTORA: Sim. Tem que ser bonita para acharem que você é disputado, mas não bonita demais para acharem que não vão ter chance. Eu até argumento que deve ser 6, porque dá pra dar um banho de loja, chegar no ponto certo e ainda ter fotos antigas dela mais estragadinha… as fãs adoram isso.
PRODUTOR: E aí sim troca por uma 9 depois de estourar. Mas tem que terminar logo. Mulher muito bonita…
PRODUTORA: “É mais difícil… sou mais eu com minhas gordurinhas…”.
PRODUTOR: Hahaha!
CANTOR: Vocês vão me contratarrrr?
PRODUTORA: Não vejo motivos para não fazer.
PRODUTOR: Nem eu. Bem-vindo ao time!
CANTOR: Eu não acredito…
PRODUTORA: Aproveita e passa nos estúdios para ir aprendendo suas músicas.
CANTOR: Hã?
PRODUTOR: Fica tranquilo, está tudo pronto. Lançamos o disco mês que vem, já em turnê. Agora, chega de papo! Vai trabalhar que arrumamos toda a papelada. Vai! Vai!

O cantor sai meio confuso da sala.

PRODUTORA: Em seis meses?
PRODUTOR: Acho besteira matar antes…

Para dizer que está feliz por não entender nada, para dizer que estou entrando em rota de colisão, ou mesmo para me mandarrr ir cagarrr: somir@desfavor.com

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