Vontade de sumir.

Às vezes eu tenho vontade de jogar tudo pro alto e fugir. Ir para algum lugar longe, onde ninguém me conhece e eu não tenha responsabilidade alguma. Viver a vida de acordo com o que se apresenta à minha frente e não dar a mínima para o futuro. Mas eu nunca faço. E aposto que 9 de cada 10 pessoas que leram este parágrafo se identificaram na hora, a que sobrou provavelmente nem está prestando atenção. Acho que todo mundo sente essa vontade eventualmente… mas por que não fazemos?

Se pararmos pra pensar, desde que você abdique da segurança (mesmo que mínima) da sua vida atual e aceite as consequências de simplesmente sumir, não está amarrado fisicamente a nada. Nada te impede de sair pela porta mais próxima e vagar por esse mundo. Se tiver dinheiro, vai de avião, se não tiver, arrisca uma carona! Sério, é só levantar a bunda de onde estiver e fugir agora mesmo. As pessoas ao seu redor nem vão ter tempo de reação.

Agora, se você vai se dar bem nessa aventura, garantia nenhuma. Quanto mais precária sua situação atual, maiores os riscos. Com certeza existem vantagens de estar num lugar conhecido cercado por pessoas com as quais se está habituado. E eu só estou falando dos riscos de curto prazo de sair sem rumo por aí. Com o passar do tempo, sua estrutura de sustento tende a ruir e te deixar sem nenhuma rede de segurança. A não ser que você tenha sorte, é muito complicado se manter viável nesse mundo sem fincar raízes. Ok, talvez seja simples entender porque não fugimos mesmo.

Para dizer que esse texto foi…

Não, espera. Talvez eu esteja me entregando fácil demais. Tem gente que faz mesmo essas coisas e se dá bem. Questão de troca: sem cama quente, mas com liberdade. Não tem quem resolva abandonar tudo para viajar pelo continente de bicicleta? Ou que vá passar a vida cuidando de vítimas de guerra em países longínquos? Com certeza existe algo de muito redentor em abandonar o sistema no qual vivemos para fazer uma maluquice dessas.

Teoria: no fundo a maioria de nós mal acredita na sociedade na qual vivemos. Nem mesmo a escolhemos. Caímos nesse mundo, aprendemos algumas regras de convivência compatíveis com as pessoas mais próximas geograficamente… e aí precisamos arranjar um jeito de ganhar dinheiro para comprar comida e qualquer outro badulaque que nos seja interessante. Ninguém te pergunta mesmo se é isso que você quer. E mesmo que perguntasse, existem poucas vagas nas funções dos sonhos da maioria de nós. Se fosse colocar no Barcelona todos os meninos que sonham jogar lá, precisaríamos de uns mil campeonatos espanhóis acontecendo em paralelo para acomodá-los. E os que ficassem na reserva fariam cara feia…

Só por educação, eu pergunto: é isso mesmo o que você quer? A vida, do jeito que ela se apresenta atualmente, é algo que você escolheria caso tivesse outras opções viáveis? Nem digo de ganhar mais, porque se você sonha com mais dinheiro para aproveitar melhor a vida está basicamente escolhendo esse sistema mesmo. Você pode até não ser muito bom jogando esse jogo, mas pode apostar que está cobiçando o mesmo troféu de quem está se saindo melhor. Estou perguntando algo ainda mais abrangente: essa forma de viver a vida baseado no seu valor como mão-de-obra seria a sua opção original? Nesse modelo capitalista, você investe sua liberdade para receber dividendos em bens materiais e reconhecimento social.

Você poderia ter fugido a qualquer momento, mas provavelmente está no meio de alguma coisa que toma seu tempo livre em troca de dinheiro ou aceitação. Não é papinho hippie não: nem estou dizendo que isso é algo reprovável, é um modo de vida com bases tão sólidas que basicamente o mundo inteiro já se converteu. Na dúvida sobre o propósito da vida, acumule riquezas. Pronto, já tem um objetivo! Sai da cama sabendo o que fazer, mesmo que nem sempre dê para cumprir a tarefa.

Mas a ideia fica nebulosa quando começamos a considerar esses surtos de fuga tão comuns. A vontade de fugir é frustração com o sistema no qual vivemos ou é um momento de claridade no meio de uma vida vivida no automático? Até mesmo quando você está fazendo algo que gosta tem seus momentos de querer uma pausa. Não é obrigatoriamente falta de vontade de continuar fazendo pra sempre. Mas sempre existe o risco de estar numa situação miserável e não conseguir perceber isso claramente. Estou louco quando quero gastar minhas economias viajando para um país distante só para estar lá ou estou louco quando não quero?

Infelizmente, eu não sei. Nunca me perguntaram se era isso que eu queria, então, não deu pra formular direito a ideia. Claro, ter raízes, emprego, relacionamentos estáveis e tudo mais pode ser bem agradável, mais do que suficiente para tornar válida a existência da maioria. Até porque imagino que para muitos de nós aqui, mesmo que não estejamos nadando em dinheiro, provavelmente demos muito mais sorte que a média, sem ter que escolher nada. Só nascemos com condições mínimas para ficarmos nos preocupando com “problemas de primeiro mundo brasileiro” nas horas vagas. É consideravelmente mais fácil aceitar um destino imposto se ele presume estar livre das agruras mais imediatistas com as quais a maioria da população mundial tem que conviver. Se eu tivesse que escolher, com certeza escolheria manter a condição de não passar fome ou de não ser perseguido por extremistas armados. Podia ser melhor, mas com certeza podia ser bem pior.

Mas mesmo assim, não sei se escolho essa vida como contrapartida para a relativa estabilidade que me foi apresentada. Não sei quem definiu que o sistema seria assim, mas com certeza essa pessoa não me pediu nenhuma sugestão. Essa “ética protestante” de se matar de trabalhar como norma para ter a alforria de uma ou duas folgas por semana nem parece tão necessária assim. Acredito que já tenha escrito sobre isso: tenho a impressão que muitos dos trabalhos disponíveis nesse mundo servem mais para as pessoas terem algo pra fazer do que para propriamente servir a um bem maior. É quase como se o sistema existisse só para manter-se vivo.

Aliás, parece um círculo vicioso até nisso: você não foge porque se o fizer, deixa de ser válido numa sociedade que te fez querer fugir para começo de conversa. Tem algo de errado aqui, só pode ter. Ou estamos sob pressão demais fazendo o que queremos, ou estamos fazendo o que não queremos. Difícil enxergar o meio termo. Continuo sem saber quando que eu estou louco, quando quero ir embora ou quando quero ficar. Alguém sabe?

Para dizer que está só esperando o chamado para o Suriname, para dizer que vai fugir desse texto e só voltar amanhã, ou mesmo para demonstrar que é das antigas e lembrar do Júnio por causa do título: somir@desfavor.com

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Comments (24)

  • Me identifiquei muito com o texto estou a muito tempo com esse desejo parece ate loucura me sinto isolado,
    não me sinto bem onde vivo e parece que minhas frustrações e tudo aquilo que passei de negativo não sai da mente parece que estou acorrentado ao passado e sumir me parece uma ótima ideia sair sem rumo so não fiz pelo sofrimento que causaria a meus pais se não fosse por eles ja estaria por ai vagando sem rumo.

  • Eu basicamente to numa situação que, se me mandarem embora da empresa que eu estou, que aqui é conhecida por muito, mas muito dificilmente demitirem alguém, ou eu passo num concurso público ou eu passo fome. E já não seria a primeira nem a segunda vez que eu fracassaria e teria que voltar a morar com meus pais, e pra mim isso é humilhante demais pra mim, tanto pela ato em si quanto pelo número de vezes que já tive que recorrer a eles. Se tudo der errado, eu simplesmente saio vagando, busco um lugar pra morrer e deito ali. Já to com saco cheio demais da vida pra me permitir ficar fracassando e recomeçando ad infinitum.

    • Só no Brasil a falha é vista como fracasso. Essa é uma imagem muito equivocada e você deveria se livrar dela. Falhas são comuns e acontecem aos montes na vida de todos nós. Nos EUA a pessoa que falhou, que faliu, é vista como ótimo candidato a um emprego, pois passou por uma experiência onde aprendeu o que não fazer e soube dar a volta por cima.

      • Sério isso aí? Sei lá, até onde eu sei o fracasso constante é mal visto em qualquer lugar do mundo.

        Antes do meu trabalho atual, quando eu estava morando com meus pais (fiquei 1 ano desempregado), me dava um puta desgosto quando eu saía com eles pra algum lugar e inevitavelmente encontrávamos conhecidos e amigos da família, e vinha aquela pergunta: “E então? Tá fazendo o que da vida?” Era humilhante e constrangedor, toda santa vez, falar que eu tava parado e procurando emprego. Eu tava também estudando pra vários concursos, mas mesmo assim eu achava muito chato e não pegava muito bem falar que eu tava desocupado, passa a impressão de ser vagabundo; 25 anos e sem a “vida feita”, enquanto amigos meus, que estudaram comigo, viajando pro exterior, indo bem na carreira, etc. É uma bosta essa sensação.

        • O fracasso é mal visto em qualquer lugar do mundo, mas ser demitido ou falir não é visto como fracasso em países mais civilizados e sim como experiência.

        • E como me sinto tenho 24 anos e nunca trabalhei e fiz curso e tudo mas , mas não conseguir ainda um trabalho e com 24 sem vida feita isso e chato demais não ter grana pra compra nada e ainda sem fala q vc tem uma filha pra cuida , e não pode compra nada pra ela quando ver algo q vc tanto gostaria de pode compra.pra ela

  • Eu as vezes sinto vontade de Somir.

    Já pensei em me alistar na legião estrangeira (sim, ainda existe), mas não consigo fugir da minha mente. (Até tentei com drogas mas não ajudou, piorou)
    Meu plano B é sair do país e com uma mochila nas costas, limpando privadas, fugir por aí.

  • Isso me lembrou o filme Into the Wild.

    Já levantei esse assunto em uma conversa entre amigos e me surpreendi com a opinião da maioria.
    No ponto de vista deles, a única razão justificável para “sumir” no mundo seria a oportunidade de começar do zero após uma cagada épica. Diante disso também me pergunto se estou ficando louco por pensar da mesma forma que o somir, se eu sou muito pessimista/insatisfeito ou se essa gente leva uma vida maravilhosa.

  • Só eu tenho a sensação de que não existe fuga ? De qualquer lugar que você esteja ou seja lá qual for sua ocupação sempre vai fazer parte do mesmo sistema trabalhar>consumir>trabalhar a não ser que você seja rico e viva de investimentos não existe forma de se libertar do trabalho

    • Desde que o “choque” seja de realidade ao invés de decepção…

      Ainda não percebi nada tão aplacador ao meu “gringuismo ppr convicção” – ainda haverá muito para avançar com o conceito de “cidadão do mundo”, inclusive para o requer menos adaptação.

    • A vida esta perdendo o sentido pra muita gente. E isso não é depressão não. A vida esta perdendo a graça. Até parece que nascemos com uma lembrança de que já estivemos aqui. E estar por muito tempo no mesmo lugar é entediante. Então fica a pergunta: “Qual o objetivo dessa estadia entediante ?”
      Fugir pra onde ?
      E ficar por que ?
      Nunca teremos essas respostas !

      • Matheus, essa resposta está dentro de você. E você sabe, só esqueceu. Se sua vida está sem sentido, talvez ela não esteja alinhada com o seu propósito. Você sabe qual é o seu propósito? Busque conhecimento e busque autoconhecimento.

  • Esse texto me lembrou um doloroso e visceral poema do José Régio. “Cântico Negro”

    “Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
    Estendendo-me os braços, e seguros
    De que seria bom que eu os ouvisse
    Quando me dizem: “vem por aqui!”
    Eu olho-os com olhos lassos,
    (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
    E cruzo os braços,
    E nunca vou por ali…
    A minha glória é esta:
    Criar desumanidades!
    Não acompanhar ninguém.
    — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
    Com que rasguei o ventre à minha mãe
    Não, não vou por aí! Só vou por onde
    Me levam meus próprios passos…
    Se ao que busco saber nenhum de vós responde
    Por que me repetis: “vem por aqui!”?

    Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
    Redemoinhar aos ventos,
    Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
    A ir por aí…
    Se vim ao mundo, foi
    Só para desflorar florestas virgens,
    E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
    O mais que faço não vale nada.

    Como, pois, sereis vós
    Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
    Para eu derrubar os meus obstáculos?…
    Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
    E vós amais o que é fácil!
    Eu amo o Longe e a Miragem,
    Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

    Ide! Tendes estradas,
    Tendes jardins, tendes canteiros,
    Tendes pátria, tendes tetos,
    E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
    Eu tenho a minha Loucura !
    Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
    E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
    Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
    Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
    Mas eu, que nunca principio nem acabo,
    Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
    Ninguém me peça definições!
    Ninguém me diga: “vem por aqui”!
    A minha vida é um vendaval que se soltou,
    É uma onda que se alevantou,
    É um átomo a mais que se animou…
    Não sei por onde vou,
    Não sei para onde vou
    Sei que não vou por aí!

  • Fugir. Esse é o mais universal dos desejos. Em menor ou maior grau todos sonhamos com a liberdade. Mas é igualmente humano termos que lidar com a contradição de também precisarmos desesperadamente de segurança e estabilidade.

    Não sabemos qual urgência é maior: a necessidade de construir vínculos fortes e ter raízes protetoras, ou o a fúria e a revolta que nos atacam, de tempos em tempos, quando nos damos conta de que não somos livres. Não somos donos do nosso tempo e talvez nem mesmo dos nossos sonhos (que repetem, muitas vezes, as tradições dos avós. Quem DE VERDADE sonha em casar, em ter filhos, em trabalhar 8 horas por dia em um emprego que nunca paga bem o bastante para que compremos a nossa alforria?)

    Vamos todos morrer e não é só isso: a longo prazo a maioria de nós será completamente esquecida. Vai ser como se NUNCA tivéssemos existido, o que ê ainda pior que morrer.

    E por que ficar em vez de partir? Por quê???

    Seu texto foi ótimo. Dificilmente alguém não vai se identificar.

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