Memória Digital.

+O uso indiscriminado de tecnologias digitais está enfraquecendo a memória dos seres humanos, revelou uma nova pesquisa. O estudo, conduzido por uma empresa de cibersegurança sediada no Reino Unido, constatou que as pessoas vêm recorrendo a computadores e dispositivos móveis para guardar novas informações em vez de usar seus próprios cérebros.

Não é como se precisássemos da memória para alguma coisa. Não lembramos o porquê agora, mas… desfavor da semana.

SALLY

Um estudo comprovou que o uso de tecnologia está atrofiando a memória humana. Sem uso constante, o cérebro vai perdendo a capacidade de armazenamento e nossa memória vai atrofiando. Os danos podem ser muito maiores do que parecem se pensarmos em longo prazo.

O corpo humano foi desenvolvido durante séculos para algumas atividades essenciais, como se movimentar e armazenar informações aprendidas. Ultimamente não andamos fazendo nenhum dos dois, só que para a falta de exercícios já encontramos a solução: emular atividade física em academias. Mas para a perda de memória que estamos sofrendo, ainda não se inventou nada (fica a dica para quem é empreendedor: academia de exercícios mentais). Não surpreende que o número de doenças mentais degenerativas esteja aumentando e acometendo pessoas cada vez mais jovens.

Ao armazenar tudo em computadores, celulares e o que mais houver, estamos deixando de armazenar informação em nossos cérebros. Com isso deixamos de enviar estímulos para uma região importante, que, ao não receber muito estímulo, tende a “atrofiar”. E isso não significa apenas ter dificuldade em lembrar o nome daquela atriz ou ator, isso significa perder gradualmente a capacidade de construir memórias de longo prazo.

Quer um exemplo simples mostrado pelo estudo? Quem tem mais de trinta anos certamente se lembra de algum numero de telefone fixo importante (o da sua casa, da casa dos pais, dos avós, etc). Você sabe o telefone celular dessas mesmas pessoas de cor? Eu não sei. Não sabemos os telefones de pessoas importantes de cor por ter delegado ao nosso celular armazenar essa informação, em vez de coloca-la onde correspondia: no cérebro.

Esse hábito que inicialmente se pensou ser bacana, pois ao não “ocupar” seu cérebro com “besteiras” sobraria mais “espaço”, é uma furada. Não é bem assim que o cérebro funciona. Muito pelo contrário, quanto mais você aprende e armazena, mais desenvolve a capacidade de aprender e armazenar. Além disso, uma forma poderosa de aprender é tentar lembrar das coisas. Ao tentar lembrar ocorre um processo complexo que fixa a informação no seu cérebro.

Como não estamos fazendo esse movimento de tentar buscar informações em nossos cérebros (pois está tudo ao alcance de um clique e somos uns idiotas imediatistas), estamos deixando de criar memórias de longo prazo. Não apenas deixamos de criar como também estamos colocando em desuso essa área cerebral, atrofiando-a.Isso é tão comum que ganhou um nome: “amnésia digital”.

Graças a essa preguiça mental de não tentar lembrar apenas com o cérebro, delegando tudo a máquinas, estamos gradualmente perdendo a capacidade de armazenar informação, não apenas em quantidade, como também em qualidade.Até mesmo o armazenamento digital de imagens está contribuindo para isso. As pessoas não se preocupam em vivenciar ou memorizar um momento bacana de suas vidas, elas tiram uma foto disso e relaxam, dando o momento por capturado, sem prestar tanta atenção a ele.

Além disso, as inúmeras distrações causadas pela internet, desde redes sociais, e-mailse até mesmo atividades que normalmente envolviam socialização mas agora são feitas online (compras online, pagamentos bancários, etc), nos retiram vivência, capacidade de observação, diálogo e tantas outras experiências que, acumuladas, eram imprescindíveis para que sejamos os seres humanos de hoje. Mais: para que possamos usufruir desse tempo online, abrimos mão de horas de estudo ou de convivência olho no olho com outras pessoas. Isso tem consequências.

Eu arrisco dizer que estamos também perdendo a empatia, pois online somos capazes de barbaridades que nunca faríamos ao vivo. Ao não olhar olho no olho, somos capazes de uma crueldade que, talvez, não faríamos se fosse frente a frente. O cérebro está desaprendendo coisas boas, seja registrar memórias a longo prazo, imagens e acontecimentos com fidelidade ou o simples lembrar que ali existe um ser humano que merece respeito.

Essa “flacidez cerebral” está fazendo com que comecemos a lembrar das coisas de uma forma equivocada, pois não conseguimos capturar o que realmente aconteceu, não temos massa cinzenta capacitada. Não estamos mais atentos como estávamos antes de ter esse “backup digital” da nossa vida. Essa falha vai se fazer sentir em diversas áreas: amorosa, profissional e até mesmo na criação de filhos. Se continuar assim, vamos ter que reescrever algumas regras sociais. Mas isso é assunto para outro texto.

Estamos falando de pessoas que vivenciaram os dois mundos. Imagina quão grave é se for uma criança nascida já nessa era da digitalização excessiva? Essa criança pode nem ao menos chegar a desenvolver a capacidade cerebral plena de armazenar dados a longo prazo ou imagens e informações com a precisão que seu cérebro poderia. Toda a forma como construímos nossa sociedade pode necessitar de adaptações, já que os novos membros virão de fábrica com um probleminha de memória.

Utilizar smartphone ou computador como uma extensão do seu cérebro, guardando nele conhecimento ou imagens importantes que deveriam estar dentro da sua cabeça, não te ajuda. Te prejudica. Te atrofia. Mas é muito mais fácil, mais cômodo. É por isso que eu não vejo ponto de retorno. É simplesmente ridículo se colocar em uma situação em que, se a máquina falha, sua vida para. Delegar seu cérebro a um smartphone e perder o cérebro se a bateria acabar é medíocre.

Mas, tudo bem, a realidade já é essa, como eu disse, acho que chegamos ao ponto de não retorno. Existe um desfavor maior ainda do que essa realidade que eu considero cagada: como se adaptar a ela. Para onde vamos? No que estamos nos transformando? Queremos nos transformar? Eu não quero, mas, tal qual saída de vagão de trem lotado, estou sendo arrastada junto. É um estupro social. Esse é o termo: estupro social, ter que fazer coisas que não quer, pois sua recusa praticamente inviabiliza a vida social.

Você se lembra do numero de telefone dos seus filhos? Dos seus pais? Do seu trabalho? Do seu companheiro(a)? A maioria dos entrevistados não sabia esses números, mas metade lembrou do numero de telefone fixo da sua casa na infância. O ato de discar o número, a repetição de discar o número, o ter que se forçar a lembrar do número para o qual ia discar, sem ter uma cola em uma tela à sua frente, tudo isso solidificou essa memória. E tudo isso seria classificado como perda de tempo nos dias de hoje.

O que hoje seria perda de tempo, é, na verdade, ginástica cerebral para te manter saudável e esperto. A tal otimização de tempo está te custando neurônios. Talvez não seja saudável precisar otimizar seu tempo para desempenhar tantas tarefas. Não se o preço for esse. Vida digital tem que ser para facilitar a vida real, não para gerar dependência.

Para dizer que não se preocupa com isso pois sua memória foi toda embora com as drogas, para dizer que não tem nada nesse mundo que mereça ser lembrado ou ainda para me mandar vender gnomos na beira da estrada: sally@desfavor.com

SOMIR

Já parto de um ponto diferente: eu sou favorável a estender o cérebro humano com máquinas. Essa máquina orgânica que carregamos dentro do crânio é sim impressionante, mas começa a demonstrar seus primeiros sinais de atraso em relação às que estamos construindo. Tem muita coisa no mundo moderno que já não pode mais depender da capacidade de processamento de cérebros humanos. Vocês estão lendo este texto numa delas: a internet depende de máquinas que “pensam” mais rápido que qualquer mente humana para funcionar como funciona. Imagina se alguém tivesse que decidir pra onde mandar cada um dos e-mails que envia?

Então, ok, tem coisas que realmente não cabem mais na nossa cabeça. A complexidade da sociedade moderna não aceita mais nossa pequena capacidade de armazenamento de dados e nosso longo tempo para tomada de decisões. Precisamos terceirizar muita coisa para a memória digital para continuarmos minimamente eficientes no mundo. Mas isso não deixa de ser um padrão da nossa evolução: antes dos celulares, as pessoas mantinham uma agenda de telefones na mesinha ao lado do aparelho. Se ali não contava como “roubar”, tecnicamente não contaria no meio digital também. Afinal, pra que decorar dezenas ou centenas de telefones diferentes na mesma memória que guarda a cena do seu primeiro beijo ou mesmo o rosto amassado do seu filho recém-nascido? Número é supérfluo. O papel ou o chip de memória que cuidem disso. Temos mais o que lembrar!

Mas… o ser humano tem esse hábito de perder a linha quando uma facilidade lhe é apresentada. Somos descendentes daqueles que aprenderam a simplificar processos básicos de subsistência ao ponto de se preocupar com “bobagens” como socialização e entretenimento. Uma raça forjada na dificuldade e na escassez tende a abusar de qualquer vantagem que lhe traga mais facilidade na vida. Novamente, justo. Quem gosta de sofrer se chama masoquista, nós temos mais é que levar essa vida mais na boa possível. Memorizar números é um saco! Deixa o computador fazer. O difícil é saber diferenciar quando essa busca pelo conforto entra no caminho de algo que mesmo sendo difícil, é importante para nós.

Quando traçar a linha entre terceirizar memórias desnecessárias para a vida cotidiana e as essenciais para nosso auto-conhecimento? Porque tem essa divisão: você provavelmente não precisa decorar aquela fórmula matemática que usa no trabalho para ser uma pessoa melhor para os que te cercam, mas internalizar experiências de vida através de um mínimo de atenção nos seus arredores vai sim definir quem você é e como lida com os outros. Deixar sua memória dentro de uma máquina é uma forma de perder contato consigo mesmo. Precisamos dessas imagens e sensações dentro da cabeça para formarmos nossa noção de “ser”.

Já escrevi um texto há muito tempo atrás criticando a mania de fotografar e filmar TUDO o que acontece na vida. E não é só questão de evasão de privacidade, é uma mudança de ponto de vista. É como se os olhos que captassem seu mundo tivessem se deslocado pra fora de você. A terceirização da memória também é a terceirização do ponto de vista. E isso desumaniza, desumaniza muito. Quando a informação sobre a sua existência não faz parte de você, há um hiato de significados. A imagem captada mostra um mundo que te observa, ao invés do mundo que você observa. E isso pode acumular até o ponto onde você começa a se enxergar apenas pela visão alheia.

Ao invés de ser roteirista da sua vida, você é o ator principal dela. E isso é muito diferente. Sua história começa a perder os significados originais, é reinterpretada cena a cena. Cada foto e vídeo manufaturados para passar uma impressão. Depois de tirar mil selfies sorrindo, como é que você vai saber em qual daqueles dias estava se sentindo triste? A sua forma de manipular a visão alheia sobre você acaba virando uma realidade. A memória que é só sua vem carregada de impressões e até mesmo distorções relativas ao que você sentia no momento. Sim, a memória mente muito mais do que a foto, mas ela mente para te dar o contexto da cena. É o roteirista adicionando um elemento fantástico na cena para reforçar a ideia central dela. Se você está só atuando até mesmo na sua memória, como lidar com sua percepção das coisas? Você está lendo um roteiro e agindo para “agradar” a plateia.

Você é o que a memória externa diz ou é o que se lembra naturalmente? Porque na falta do que está guardado no seu “HD natural”, que se utilize o mais próximo. A memória digital vai substituindo a nossa humanidade, se deixarmos. Basta ver o mundo atual e as críticas que vivemos fazendo por aqui: o ser humano virando uma caricatura de si mesmo quando cai nas redes sociais. Isso é desconexão de si próprio, é puxar o que se é por uma memória que não armazena significados.

E pior, a memória digital é estática. Ela não se adapta às nossas costumeiras mudanças. Na dúvida, cidadão segue a “metatag” que o descreve e não o que está pensando no momento. Memórias naturais existem para nos lembrar do que já aconteceu, mas também para se transformarem de acordo com o que vivemos. Uma experiência traumática pode ficar mais leve ou vice-versa, dependendo do contexto atual de vida. Enquanto o digital não for capaz de aplicar essas “lentes emocionais” no que guardamos sobre nossa vida, ele não pode substituir a formação de caráter do desenvolvimento natural da nossa memória.

Eu sou muito favorável a deixar aqueles números chatos de telefone na memória do celular, mas quando nossa vida se torna digital o suficiente para ter uma tela na sua cara o tempo todo, além de você não viver a situação que se desenrola na sua frente, ainda vai lembrar dela com os olhos de um câmera desinteressado. Uma espécie de voyeur de si mesmo.

Lembra quando você vivia sua vida?

Para dizer que eu só estou ficando velho, para dizer que eu provavelmente respondia pergunta de prova assim, ou mesmo para dizer que não se lembra do que ia comentar: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • E acrescento: hoje em dia há mais pessoas cometendo erros gramaticais bem exdrúxulos. Ex: a muito tempo, mais eu não posso, eu adoro assisti seriados, eu vou manda essa foto pra ela… E falo de pessoas que tem/tiveram acesso à uma boa educação.
    O fenômeno da amnésia digital também está ligado a isso. Além da pessoa não querer se dar o trabalho de lembrar certas coisas, também não quer se dar o trabalho de anotar (vide caligrafia de pessoas mais viciadas em celular e internet).

    Estupro social? Bem, eu espero que um dia as pessoas “do contra” (não propositalmente, acho que deu pra entender) não sejam mais vistas como esquisitonas. Que pelo menos sejam aceitas, não precisa nem tratar como um bichinho especial. Será que no futuro haverá demanda pra quem não é um humano médio?

  • Talvez já exista uma versão primitiva de “academia de exercícios mentais”. Os games fazem a gente ter que usar o cérebro pra decorar informações. Não chego perto de jogos modernos demais (emulador de SNES e GBA me bastam), mas imagino que esses jogos mais modernos como Doom 3 e GTA exijam bastante concentração e memorização pro jogador conseguir avançar.

    E talvez aí tenha também outra utilidade pro RPG, que a Sally acha que não tem benefício nenhum. Nunca joguei, mas pelo que sei os jogadores de RPG usam bastante os cérebros enquanto jogam…

  • Uma coisa é facilitar a vida como o Somir disse, mas se deixar ficar dependente de tecnologias já acho demais.
    Por exemplo, gente que abre a boca pra dizer o quanto se orgulha de não saber andar de carro sozinho, só anda com waze, acha emocionante o desespero de se perder por aí quando a internet e o waze param de funcionar. Babacas. Cada vez que escuto alguém falando isso penso que eu tenho que arrumar logo formas de tirar vantagens de ser tão diferente da média…

  • Que medo! Antigamente eu nem usava agenda e decorava todos os tels. Fazia contas sem usar papel, agora só na calculadora e até desaprendi a escrever algumas palavras porque tem o corretor. Vou começar a parar de usar tanto essas coisas.

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