Guerra de terceira.

+Pelo menos 27 pessoas foram dadas como mortas nesta sexta-feira (20) depois que forças de segurança do Mali invadiram um hotel tomado por islâmicos armados para resgatarem 170 pessoas, muitas delas estrangeiras, presas no edifício.

Agora foi a Al Qaeda. Semana que vem, quem sabe? Estamos numa guerra, mas… contra quem? Desfavor da semana.

SALLY

Novamente fomos agraciados com um evento na véspera da coluna Desfavor da Semana. Um ataque a um hotel de luxo em Mali nos fez refletir sobre os caminhos que o terrorismo está tomando.

Minha primeira surpresa foi o ataque ter sido realizado pela Al-Qaeda, uma organização terrorista bem diferente do Estado Islâmico, inclusive no modo de agir. Enquanto mais de 150 pessoas eram mantidas reféns, alguns foram libertados “de graça”, pelo simples fato de saberem recitar o Alcorão. Quando pode, a Al-Qaeda não mata “dos seus”. Estariam eles agindo todos juntos de caso pensado? Ou são oportunistas, e vendo o estrago que o colega fez, resolveram aproveitar e agir?

Ao mesmo tempo, vários ataques e ameaças de diversos grupos terroristas começaram a eclodir em vários países. Em resposta, vários países ameaçando e inclusive começando a tomar providências com o que chamam “Guerra aos Terroristas”. Sim, agora estão usando a palavra “guerra” com mais frequência.

Em redes sociais, pessoas discutem o tema pelos pontos de vista mais equivocados. Briga sobre qual tragédia é mais tragédia, atentados na França ou rompimento de barragens em Mariana. Se comover pelos dois não pode, tem que escolher um. A polarização doentia que vimos nas eleições continua. Metade fala que tem que bombardear e matar todo mundo, a outra metade chama essa metade de assassinos. Começa um bate-boca sem propósito, onde não se discute o mérito da questão e sim pessoas, em ataques pessoais.

Tem também a imprensa, esse grande e constante desfavor, explorando a tragédia de modo a conseguir cliques e audiência. Fotos de corpos mutilados, detalhes sórdidos e posições maniqueístas. E é a imprensa a responsável por espalhar um grande equívoco que já toma forma de verdade para muitas pessoas: a guerra contra o terror.

Eu adoraria ser possível uma guerra “contra os terroristas”, atacando a eles, e somente a eles. Imagina que barato, mísseis teleguiados explodindo na bunda de cada um desses fanáticos? É claro que eu apoiaria uma guerra dessas, da forma como estão vendendo! Aliás, eu seria muito mais feliz se acreditasse que uma guerra assim é viável. Seria a solução dos problemas e de dilemas morais.

A verdade é que não tem como declarar uma guerra ao terror, nem aos terroristas. Tem como praticar um genocídio contra um povo para, no meio de uma maioria de civis inocentes, matar uma minoria terrorista. Se você acha que vale a pena, beleza, joinha, não estou aqui para discutir, viva à diversidade de pensamento! Mas que seja uma escolha consciente.

Claro que a maior parte das pessoas prefere acreditar na guerra contra o terror. O massacre de civis que está acontecendo hoje talvez só venha à tona quando tudo acabar, quando não precisarem mais esconder o tamanho da crueldade que está acontecendo, quando muçulmanos tiverem cotas para entrar em universidades públicas como compensação.

Não digo que se as pessoas pudessem visualizar esse lado B elas mudariam de ideia. Provavelmente não, e novamente celebro a diversidade de opinião. Mas ficaria muito mais desconfortável sustentar sua posição, ter certezas e até mesmo dormir à noite. Desconfortável pensar nisso. Temos essa mania de abraçar a ideia menos desconfortável.

Ao perceber o que realmente está acontecendo, abre-se uma porta complicada: a de se colocar no lugar dos outros. Vai que um dia um bispo desses evangélicos malucos resolve pedir aos fiéis que matem quem não for evangélico. Vai que os fiéis obedeçam. Vai que se crie o EE, Estado Evangélico, e que comecem a fazer vítimas em nome de religião. Vai que o mundo se emputeça e joguem bombas no Brasil, matando ou ferindo familiares seus que não tem nada com isso? Já fica um pouco mais complicado ter aquela convicção toda.

É doloroso demais para ser pensado. Melhor ficar com a versão de que esta é uma guerra contra os terroristas e que não tem mais nada a ser feito: ou entope de bomba, ou eles continuam matando no ocidente. É isso. É cartesiano. É fechado. Só tem essas duas opções: ou aceita ser morto por terroristas ou soca o país deles de bomba. Ou um, ou outro: escolhe.

Deve ser tranquilizador conseguir acreditar nisso. Deixa a escolha fácil, deixa assistir as notícias de bombardeio fácil. Tudo deve ser mais palatável quando se encara a questão com o argumento simplório da legítima defesa ou da única opção de ação possível. Estas pessoas devem estar mais tranquilas do que eu.

Assim como também devem estar mais tranquilos aqueles que encaram os últimos eventos como algo setorizado. Ouvi muita gente dizendo “estou com medo que comece uma guerra”. A guerra já começou. Só não tem a carinha das duas grandes guerras mundiais: soldadinho com arma, trincheira, tanque de guerra. O mundo mudou, e com ele, o formato da guerra. Virou algo menos definido, menos polarizado, menos corporal. Talvez por isso muita gente ainda não perceba que sim, já estamos em guerra. Outro alento, afinal, quem é que gosta de viver em um mundo em guerra?

São muitos os ângulos equivocados. Esse conflito parece estar se desdobrando da pior forma possível. Talvez nem exista uma forma boa ou razoável de solucionar este impasse, mas certamente existem ângulos melhores para se encarar o problema. O que vai acontecer daqui para frente eu não sei, mas posso afirmar que poucos conseguirão encarar o assunto de frente, cientes de todas as atrocidades que ele envolve, capazes de perceber ambos os lados e todo o rol de vítimas. É doloroso demais.

A opinião de cada um não é o grave neste caso. Não é a opinião que merece ataque. O que devemos discutir é em quais dados, sob qual perspectiva e quais elementos as pessoas estão usando para se posicionar. O importante não é ter razão e sim ter todos os elementos para formar sua convicção.

Para ficar triste por cair a ficha da guerra, para brigar com quem pensa diferente de você a pretexto de combater a intolerância ou ainda para rever seus conceitos: sally@desfavor.com

SOMIR

Mas, de novo? Sim, quantas vezes forem necessárias. Está mais do que na hora de entender que o mundo está em guerra sim. E já faz tempo. Temia-se no passado que a Terceira Guerra Mundial seria muito curta e muito clara: com bombas atômicas não tem o que esticar, todos se explodem o mais rápido que puderem, até para dar tempo de apertar o botão. Mas, esse temor (ainda) não é relevante, na verdade, estamos vendo o contrário.

A Terceira Guerra Mundial é lenta e confusa, na verdade. Quando um lado se faz de liberador ao invadir países alheios e o outro se esconde entre uma multidão de inocentes, fica tudo nebuloso. O lado que tem exército “tradicional” não assume a guerra de verdade, o lado que não tem a declara aos quatro ventos. Isso garante que a coisa se arraste por muitos e muitos anos, talvez até sem o prospecto de uma vitória reconhecível. O desfavor é perceber que o mundo está refém de um conflito que ninguém entende direito como vai se desenrolar.

Essa confusão toda pode ser mais explosiva que todos os mísseis do Ocidente e os homens-bomba terroristas. A ilusão de que alguém vai ter a resposta mágica para esse problema dos radicais islâmicos pode gerar uma reação em cadeia rumo a uma mudança de ordem de magnitude do conflito. Somos humanos, a esperança de uma solução fácil é muito tentadora. Uma guerra em escala total contra o Estado Islâmico e pronto! Quem prometer isso ganha a atenção do público. Fácil, né? Bom, mesmo sabendo que os motivos eram bem escusos na verdade, não foi exatamente isso que os EUA fizeram no Iraque? Duas vezes? E para não perder a viagem, no Afeganistão também.

Já tivemos guerras “de verdade” contra os radicais. Sempre com a desculpa que não era contra o país e que era para liberar o povo de regimes tirânicos, mas mesmo assim, com tudo o que tinha direito. Só faltou bomba atômica. Resultado? Estado Islâmico. Quando se fez guerra na Europa e até mesmo na Ásia, o resultado foi catastrófico, mas já tinha algo funcionando ali. Sistemas e populações com condições mínimas de recuperação. Alemanha e Japão se tornaram países ricos. Aceitaram a derrota e entraram na dança dos vencedores.

Agora, no Oriente Médio, que já estava uma bagunça antes dos EUA entrarem lá “oficialmente”… aquele lugar é um barril de pólvora histórico, mas ficou ainda pior quando rabiscaram um país chamado Israel lá dentro. A situação foi azedando progressivamente desde então. Quando Saddam invadiu o Kuwait, a região toda estava amarrada por um fio muito frágil. Aí, mexeram. E tudo o que estava cagado há décadas começou a feder. O mundo Ocidental deu de cara com o resultado da sua gracinha pós Segunda Grande Guerra. (Deviam ter ouvido o Somirberg e feito no Suriname!)

Aquele lugar não vai reagir da mesma forma que os “inimigos de outrora”. Quanto mais cacetar o Oriente Médio, mais coisa ruim vai sair para assombrar o resto do mundo. Pode mandar todas as bombas e soldados que quiserem que vai ficar cada vez pior. O triste é notar que não aprenderam com os erros, ou pior, que interesses econômicos estejam forçando as vistas grossas das nações que lutam contra o terror. Fez uma vez, deu merda, fez duas, deu mais merda ainda, fez três, quatro… cada mexida só piora as coisas. Deixa o povo local mais e mais furioso e torna os muçulmanos do mundo todo mais e mais alvos de preconceito.

O terrorismo é a Hidra, corta uma cabeça, surgem duas no lugar. E pior, com a atual conjuntura do mundo, não se sabe nem mais onde vão surgir essas novas cabeças, são mais de um bilhão e meio de muçulmanos pelo mundo, progressivamente mais marginalizados e/ou isolados. O radical islâmico tem todos os motivos para acreditar estar sendo perseguido, e o Ocidente todos para acreditar que não está mais seguro. É claro que eu prefiro a babaquice dos americanos e cia. do que a babaquice de quem parece estar preso num século distante do passado, mas do ponto de vista do “você começou”, ambos os lados tem argumentos sólidos.

Como o genocídio é opção abjeta além de impossível (a pior guerra de todas matou dezenas de milhões, é MUITO chão para chegar nos bilhões), vamos ver essa “troca de gentilezas” entre os lados por muito tempo ainda, ambos indispostos a aceitar a derrota de parar de lutar. Mesmo que os radicais continuem sendo malucos enquanto viverem, a tendência é que percam apoio se o Ocidente sossegar. Atentados sempre vão existir, ainda mais depois que a ideia se consolidou oficialmente, mas uma coisa é uma tragédia eventual e outra é elas virarem parte do cotidiano.

A falta de capacidade de aceitar que já é uma guerra e uma guerra burra demais vai manter as engrenagens do ódio girando sem parar, ganhando momento até que os radicais tragam para o “mundo civilizado” o mesmo medo que seus povos originais sofrem diariamente. O que morre de civil nessas operações militares não é brincadeira. O povo foge dali e tenta se refugiar na Europa inclusive por causa dos ataques dos “bons moços”. A verdade é que na vida real é muito difícil atirar só nos terroristas, até porque muitos deles não seriam terroristas se não tivessem motivos sólidos para odiar os países ricos que vem despejar fogo sobre suas cabeças.

A guerra contra o terror é uma guerra também contra quem “nasceu errado” e está perto do grosso dos malucos locais. Você acha que o Estado Islâmico ou a Al Qaeda vai ter peninha de inocente francês ou americano depois de ver hospitais e escolas bombardeadas? Não estou defendendo os terroristas, mas estou dizendo que essa dinâmica de fingir que só tem um lado fazendo besteira vai manter essa merda de guerra rodando por anos a fio. Eu só consigo ver uma solução: sai de lá. Tira todos os soldados, tanques, aviões e afins e deixa o pau comer solto. Abriga quem fugir, tenta ações humanitárias nas áreas… mas, sai daquele lugar. O que, claro, não vai acontecer: calha do petróleo estar justamente ali.

Aliás, sabem como eu acho que essa guerra termina? Quando os poços secarem. Antes disso, vamos ficar vendo essa guerra pulsar no mundo e um monte de idiotas defendendo que fazer justamente o que cagou tudo pra começo de conversa é a solução mágica para todos os problemas.

E viva a humanidade.

#TerceiraGuerraMundial

Para dizer que culpar os judeus é muito retrô, para dizer que o problema se chama religião (as três que mais cagam o mundo saíram de onde?), ou mesmo para dizer que cansou do assunto: somir@desfavor.com

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Comments (15)

  • “Se comover pelos dois não pode, tem que escolher um.”

    Por isso não finjo comoção por lado nenhum. Só me comovo por pessoas ‘próximas’ ou que eu tenha condições físicas e logística de ajudar.

    Acontece morte, e injustiça o tempo todo e em todo lugar. Não tenho como hipocritamente escolher um deles, ou 2, que seja.

  • Na semana passada fiquei pensando em quem poderia encontrar uma solução inteligente e totalmente inovadora para nos livrar dessa tragédia anunciada. Mas vocês têm toda razão: Tragédia anunciada, nada: Guerra real.

    O mundo mudou, a guerra mudou, mas o ser humano continua teimosamente maniqueísta. Precisamos ainda de um vilão caricato para colocar toda a culpa por todo esse ódio que nunca termina e que está sempre no outro, nunca em nós mesmos…

    E precisamos, igualmente, de um salvador da pátria , de um herói que vai nos salvar bem no último instante com uma ideia revolucionária…

    Mas além de não ter aparecido ninguém, agora foi a Al Qaeda. Semana que vem quem será? O terrorismo é a Hidra. Não há lugar seguro debaixo do sol…

    • A guerra não é entre fronteiras, entre países. Agora ela é fluída, em um grupo espalhado pelo mundo. Se tratar essa nova realidade da forma como se tratavam as guerras convencionais (bombardeios e etc), não vai funcionar. Nova realidade pede novas atitudes.

  • Acredito que o foco deveria ser a destruição dessa ideologia, não deixem muçulmanos viajarem, censurem o alcorão no ocidente proíba a divulgação do tema desse lado do mundo, a guerra é ideológica e o que mais me assusta é justamente a possibilidade de pessoas proximas (geograficamente) passarem pro lado do inimigo

  • Sally, tua fala me lembrou a entrevista desse cara aqui ó:

    http://www.dw.com/pt/n%C3%A3o-se-combatem-ideias-com-armas/a-18862323

    Só achei um tanto bizarra a concepção dele de que o ocidente precisa mudar, que o capitalismo apaga as especificidades, e é preciso “renascer”. Como ele mesmo diz na entrevista, “Renascimento: reconstruir, reviver, renovar os valores do Iluminismo, a arte e a cultura. Para isso acontecer, seria preciso limitar as leis de mercado e a globalização a um certo nível. Esse é o problema.”

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