Chega de nerdice!

Acabo de ver o trailer do novo Star Trek. Se eu fosse um youtubber, já teria gravado minha reação: uma cara de “hã?” durante o um minuto e meio do material. Mais ou menos uma década atrás eu tinha certeza que mesmo não sendo um fã ávido (trekkie), pelo menos era público alvo de qualquer coisa relacionada à franquia de Kirk, Spock e cia., mas dessa vez eu não consigo mais sentir que foi feito pra mim. O que aconteceu?

O primeiro filme do reboot da série eu achei meio “animado” demais, mas ainda tinha seu charme. O segundo eu tolerei mais ou menos até as cenas finais, quando cagaram tanto as personagens que parecia um filme de ação genérico. Agora… só de ver o trailer do terceiro eu já sei que não vai rolar. Esse só quando cair no Netflix, se cair. A sensação é que o filme deixou de ser… nerd! Vai ser dirigido pelo mesmo cara que fez Velozes e Furiosos!

E foi mais ou menos essa sensação que tive vendo a maioria dos últimos grandes sucessos dessa onda nerd que tomou os cinemas e as séries ultimamente: alienação. Como se um amigo seu de longa data começasse a te ignorar porque começou a andar com uma turma mais popular… isso deixa um gosto amargo na boca. A cultura nerd está tão popular que parece cada vez menos interessada em ser vista andando junto com os… nerds?

Nem estou dizendo que essa enxurrada de filmes e séries são necessariamente ruins, de algumas coisas eu até gostei (como as séries da Netflix da Marvel), mas em algum lugar desse caminho até a glória, não dava mais para agradar o público que manteve essas personagens e histórias vivas para vivenciar o momento. O nerd historicamente tinha um foco de atenção maior, pelo menos quando se falava de seus temas queridos. O público original de um Star Trek segura numa boa uma cena de dez minutos de conversa sobre diplomacia espacial, mas quem entrou no barco agora vai bocejar se passar mais que um minuto sem alguém correndo ou lutando na telona.

Claro que tem um componente geracional aqui: gente que teve mais tempo da vida dentro desse mundo hiperestimulante da internet vai ter um foco de atenção mais estreito mesmo. Pessoas cada vez mais mimadas por excesso de conteúdo disponível. Era de se prever que com o passar do tempo a indústria cultural se adaptasse às novas necessidades do público, mas isso é muito pouco para explicar porque os “nerds de raiz” andam tão reclamões com o que deveria ser conteúdo criado para eles.

Se eu tivesse que teorizar, eu diria que tem um componente psicológico aí também: a cultura nerd sempre foi baseada em franquias longas e explicações detalhadas de realidades paralelas porque isso ressonava muito bem com aqueles dispostos a consumi-la: em tempos onde o nerd não estava na moda e era complicado achar outros (pré-internet você ficava feliz se achasse alguém que gostasse de qualquer coisa parecida com você), a cultura específica deles servia como uma espécie de amigo postiço. Havia mais envolvimento com personagens e histórias porque, francamente, eram basicamente elas que se prestavam ao papel de acompanhar o nerd.

E como se faz com todo bom amigo, o nerd aceitava vários dos defeitos da cultura feita pra ele como sinal de agradecimento. A série original do Star Trek tem um grau de produção risível, até mesmo se comparada com vídeos feitos para o Youtube atualmente. Muitas vezes nessa cultura os atores eram ruins, os desenhos estranhos, as coisas eram mal explicadas e exigia-se muita atenção e estudo paralelo para compreender o conteúdo apresentado. Mas tudo bem, era tosco, mas era querido do nerd.

Quando o que era nerd torna-se pop, o grau de exigência aumenta. Agora a cultura desse grupo ostracizado tinha que se adaptar a gente que não tinha paciência ou dedicação aos temas apresentados. O Spock deixa de ser lógico e passa a ser insensível (porque é essa a visão do “médio” sobre lógica), e ao invés de achar violência um absurdo, sabe enfiar umas porradas e fica putíssimo se sacaneiam um amigo dele. É exigir demais do público comum que entenda os detalhes de uma personagem que só conhecem pelo nome e pela fama de ser sério. Tem que apresentar tudo muito rápido e manter o ritmo do filme alucinante antes que alguém comece a achar chato. Isso torna o conteúdo previamente nerd acessível para a massa, mas aliena os fãs originais. Eu juro que vi a última parte do segundo filme do reboot do Star Trek com olhos arregalados e mãos para o alto, fisicamente em choque pelo o que acontecia ali. Pra quem não conhecia nada sobre a série, deve ter sido bem divertido.

E antes que achem que eu estou só fazendo um mimimi nerd, não fiquei puto não, só achei muito bizarro. E não é como se meu gosto não encontrasse material muito interessante de tempos em tempos, podem ficar com o Star Trek por mim… sempre saem vários filmes e séries de ficção científica “paradona” para quem gosta. Não tem os orçamentos fabulosos do conteúdo que fica cada vez mais famoso, mas está de ótimo tamanho.

A questão aqui é que a ideia que o nerd clássico ainda existe é um tremendo engano. O nerd morreu quando sua cultura popularizou. Não precisa mais de nenhum estigma para consumir esse tipo de conteúdo. Usar uma camiseta com um desenho nerd é tão relevante para a própria identificação quanto é se declarar surfista por usar uma camiseta com uma onda e uma prancha desenhadas. O nerd como o aficionado por um tipo específico de conteúdo deixa de ser uma categoria válida. A cultura explodiu um milhares de pedaços.

Durante muito tempo eu achei que estava tendo um ataque de elitismo ao rejeitar a popularização assustadora desses temas, mas a verdade é que quem formou seu gosto por ficção com aquele estilão nerd pré ou começo da internet vai gostar de um tipo de material que provavelmente nunca ficará popular de verdade. Não é qualidade, é gosto. É o gosto pelo que até pode ser tosco, mas faz questão de… estar com você. Infelizmente algumas dessas franquias tem que me abandonar para buscar pastagens mais verdes. Adoraria um filme do Star Trek bem paradão, lidando com um dilema ético e uma civilização estranha, mas agora vai ser na base da explosão e da adrenalina.

Não tem mais o público nerd para alcançar. Eles se subdividiram em inúmeros grupos, cada um com conteúdo feito especificamente para eles. O grosso da cultura das “décadas de isolamento” virá para grandes telas e públicos maiores ainda. E cultura nerd não vai significar mais nada, como pode se ver cada vez mais naqueles que a exploram pelo lucro. Se todo mundo é nerd, ninguém é nerd!

É, o Spock morreu mesmo. O lance é seguir a vida e achar uma nova série que a maioria das pessoas ache chata. E quando deixarem de achar, é hora de seguir para a próxima. Grande mentira essa que os nerds foram aceitos pela sociedade… só “roubaram” o brinquedo deles. Daqui a alguns anos recomeça (dica: vai começar a era dos animes logo logo).

De qualquer forma, nerds, descansem(os) em paz! E enquanto isso, vida longa e prosperidade…

Para dizer que achou o trailer bacana (nada contra, oras), para dizer que eu só estou desfazendo o clube porque quero ser especial, ou mesmo para jogar uma bolinha de papel na minha cabeça: somir@desfavor.com

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Comments (20)

  • Eu era nerd e nao sabia, e acabei virando cientista. Sempre lutamos pela popularização da ciencia, e um dia fazer ciencia tambem vai deixar de ser diferencial. É só ver os movimentos DIY e Science Hackers que correm o mundo. No que isso vai dar não sei, mas é divertido.

    • Eu fiquei focado na parte de cultura pop, mas realmente: a popularização da “nerdice” tem seu lado muito positivo quando espalha conhecimento científico para quem não achava graça nisso antes.

  • Também não gostei de Star Trek. E tenho essa mesma impressão de produtos de ficção tendo de virar produtos de ação em nome da popularidade e mudança de público alvo.

    Até mesmo esse novo Star Wars. Já saiu tanto trailer, Tantos personagens apresentados, tanta molhação de roupa de baixo por causa da questão das minorias, feminismo (toda porra de filme que tem mulher fazendo alguma/qualquer coisa, é feminista agora), que tenho a impressão de que o produto completo final vai ser mero remendo de tudo apresentado até agora.

    PS.: VC TEM DE ASSISTIR a série Black Mirror do Netflix.

    Se não fez ainda, faça. É uma série inglesa com formato semelhante ao Sherlock (3 episódios por temporada). E é uma espécie de Além da Imaginação. Mas ao invés do elemento sobrenatural, temos o elemento ‘tecnologia’, como gatilho pra se pensar, ou até ter medo.

    Achei muito bom. Cada episódio é seguido por alguns minutos vendo a tela preta dos créditos passar enquanto pensa na vida presente e futura.

    Fica a sugestão de review Somir e/ou Tender

    Até.

    Ps.: Cade meu prêmio de machista do ano Somir?! Manda antes do aumento. :)

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