Iluminado.

O trabalho de segurança no laboratório não era tão emocionante como o previsto. Depois de ter que pegar três aviões diferente e passar algumas horas atravessando planícies gélidas numa espécie de trator de neve, Aderbal encontrou uma moderna instalação científica subterrânea como destino final. Isolado há milhares de quilômetros da civilização na longínqua Antártica, tinha poucos dias restantes do turno de seis meses acordado com seus discretos empregadores. Sua rotina reduzia-se a rondar pelos longos e estéreis corredores locais durante a noite, o silêncio sepulcral só quebrado quando encontrava um dos outros seguranças.

Depois de seus turnos, restava retornar para as áreas sociais ou descansar em um dos acanhados beliches no dormitório. O contato com a família era escasso, feito por vídeos que precisavam ser aprovados por supervisores. A comida já o enjoara meses atrás, não tinha privacidade nem mesmo nos banheiros, e ainda por cima mal tinha com quem conversar: cada guarda vinha de um canto do mundo e tudo o que tinham em comum era um inglês pra lá de enrolado. A única compensação era a financeira: seis meses de trabalho lá equivaliam a dez anos em qualquer outra empresa.

Não que o calhamaço que assinara prometendo sigilo completo e isentando seu contratante de qualquer responsabilidade permitisse que contasse para qualquer outra pessoa, mas até agora não sabia sequer o nome da empresa para qual trabalhava. Se era algo privado ou do governo, não tinha como saber. Mas, seja como for, eram os últimos dias. Não havia enlouquecido como aquele pobre colombiano mandado embora semanas atrás por se recusar a sair de sua cama com ataques de pânico.

Era mais uma noite tediosa, escutando o som dos próprios passos enquanto rondava o último nível cujo acesso lhe era liberado. Décimo andar subterrâneo. Como de costume, passava por dezenas de portas de aço maciças que pontuavam os longos corredores circulares. Mas pela primeira vez em meses, algo destoava: uma luz azulada escorregava por uma minúscula fresta numa porta distante. A curiosidade e o senso de dever o levaram até lá rapidamente. A luz pulsava suavemente, e a cada pulso, tornava-se mais e mais avermelhada. O protocolo dizia para chamar reforços imediatamente num caso desses, mas aquela porta entreaberta era um convite. Olhou ao redor, puxou o comunicador e fingiu para a câmera que certamente o observava.

Mas ao invés de ouvir uma inevitável ordem para se afastar enquanto o time de contenção corria até lá, Aderbal decidiu esperar alguns segundos antes de fazer o chamado e espiar pela fresta. Qualquer coisa para tornar menos enfadonha sua tarefa. Fazia um som estranho, metálico e grave. A luz agora estava completamente vermelha, mas cada vez mais tênue de acordo com os pulsos. Fechando um olho para ter um ângulo melhor, ele conseguiu focar num movimento que acontecia dentro daquela sala.

Era… alguém? Um corpo feminino, emanando luz vermelha. Nua em pelo, ou melhor, sem pelo, ela era careca, não tinha sobrancelhas ou mesmo qualquer outra pelagem natural, fez questão de notar. Ela olhava fixamente para um ponto indeterminado da sala, a qual iluminava sozinha. Fascinado, Aderbal gastou mais algum tempo fazendo senso daquela imagem. Com o comunicador diante de sua boca, aperta lentamente o botão para iniciar o contato. Assim que termina o movimento, um leve som de estática ecoa pelo ambiente. Ela se volta imediatamente para sua direção. Olhos brancos e sem pupilas, expressão indecifrável.

Ele tenta dizer algo, mas sente-se incapaz. Ela, de um vermelho tênue colore-se esverdeada numa fração de segundo. Ambos dão um passo para trás, ele mostrando as palmas das mãos tentando tranqulizar a situação, ela tornando-se um violeta muito luminoso antes de desaparecer completamente. Aderbal finalmente dá o aviso, uma voz assustada do outro lado ordena que se afaste até o terminal de contenção mais próximo, tranque-se e espere reforços com novas ordens. Ele faz exatamente isso, correndo de volta por onde veio até uma estação próxima ao elevador, onde esconde-se detrás de uma grossa porta metálica para a qual seu cartão de acesso respondia. Um poderoso alarme começa a ecoar pelos corredores, a luz avermelhada de sirenes tingindo o ambiente com pânico.

Poucos segundos depois, pode ouvir o time de contenção correndo para fora do elevador, ordens berradas em inglês e sons de armas sendo preparadas. Posicionado no centro de uma claustrofóbica sala, a luz intermitente dos alarmes tornando suas trêmulas mãos visíveis em vermelho em curtos intervalos, só para desaparecerem na escuridão logo depois. Mesmo com a confusão do lado de fora, é capaz de escutar a própria respiração ofegante dentro daquelas paredes. Aderbal não sabia explicar o que tinha visto, mas era evidente que era algo perigoso. Nada mais explicaria estar no meio do nada com times de soldados prontos para agir segundos depois de um aviso.

A luz vermelha do alarme continuava piscando dentro da sala, mas os sons lá fora já diminuíam. É quando nota o tom das sirenes mudando lentamente para algo mais azulado. Uma excitação inexplicável assalta seus sentidos, como se a luz estivesse acariciando sua pele. Uma voz surge sem fonte aparente: “Eu não quero te fazer mal”. Aderbal encolhe-se instintivamente, mão buscando a arma que carregava no cinto. A luz torna-se violeta: “Não, não faça isso, por favor…”.

“Quem é você?” – pergunta Aderbal.

“Não sei” – a resposta vem imediatamente.

“Como assim? Base? Vocês estão me ouvindo?” – Aderbal começa a procurar por alguma caixa de som ao seu redor.

“Quem é base?” – a voz vem um pouco menos tensa, a luz das sirenes vai retornando a um tom mais azulado.

“Foi… foi você que eu vi na sala?” – ele desiste da arma e começa a tatear seus arredores. “A luz… ela… ela tem peso…”.

“Você está me tocando.” – a luz torna-se esverdeada.

“Quem é você?”

“Já disse, não sei.”

“Dói quando eu me mexo?”

“Não, não dói. É bom…” – a voz começa a ficar mais e mais suave, fazendo a luz das sirenes passar para um tom amarelado.

“Você é de outro planeta?” – Aderbal vê a luz ao seu redor começar a reagir de forma impensável, as sombras condensando-se diante de si.

Mais alguns segundos e aquela forma feminina se refaz em sua frente. Vermelha, fascinante. Ele estica a mão em direção do rosto dela, que reage num susto, que por uma fração de segundo deixa-a totalmente amarela. “Você… você é linda…”

“Obrigada.” – ela diz, agora esverdeada.

“Posso?” – Aderbal tenta novamente tocar o rosto do ser iluminado à sua frente, que dessa vez concorda com um movimento de cabeça e deixa-se tocar. A mão dele sente alguma resistência, mas logo atravessa a forma, fundindo-se. Ela está azul agora.

“Posso ficar com você? Eu não quero voltar para lá.”

“Como você chegou até aqui?”

“Não me lembro. Eles ficavam me olhando, mas nunca me deixavam tocá-los. Havia algo me prendendo, eu não queria ficar presa. Eu fiz algo de errado?” – ela faz uma expressão confusa.

“Mas porque você não falou com eles?”

“Eu só sei o que é falar agora. Só porque eu estou com você.”

“Acho melhor sairmos daqui e conversarmos com eles…”

A luz fica violeta novamente, o brilho é intenso e incomoda os olhos de Aderbal.

“Não! Eu não quero mais ficar com eles. Me leva embora, por favor!”

“Calma, calma… eu não quero te fazer mal, ok? Vai ficar tudo bem.”

“Eu tenho braços, pernas… assim como você… mas porque eu tenho isso?” – a forma de luz segura o que seriam seus seios.

“Porque você é mulher?” – agora é Aderbal que fica avermelhado.

“Você gosta dessa forma? Os outros sorriam para mim quando eu assumia essa forma.” – ela estufa o peito, oferecendo os seios com um sorriso de satisfação.

“Gosto… gosto sim…”

“Então você me leva embora?”

“É mais complicado do que isso…”

O som do metal rangendo quebra a conversa, fazendo a forma luminosa rapidamente tornar-se violeta até desaparecer completamente. Um dos soldados do time de contenção entra, fuzil em punho: “Status?”

“…”

“Guarda!”

“Tudo… tudo bem. Já posso sair?”

“Sim. Acompanhe-me.”

Nas horas seguintes, Aderbal passa por diversas descontaminações, sendo interrogado insistentemente por vários cientistas a cada um deles, nem uma palavra sobre o ser com o qual conversara. Com a pele em vermelho vivo pela escovação e a água escaldante, é deixado numa sala isolada alguns andares acima, deitado numa cama desconfortável e debilmente iluminado por um abajur num criado mudo ao seu lado. A luz amarelada começa a mudar de tonalidade para algo mais esverdeado.

“Agora não. Espera até eu te dizer quando.”

A luz volta à sua coloração normal. Algumas horas mais tarde, ele é liberado para voltar aos aposentos da guarda, e logo é dispensado do serviço com pagamento integral, o qual não faz a mínima menção de negar. As perguntas que ouve o fazem presumir que nenhuma câmera filmou sequer o seu primeiro contato com aquela luz. Já com as malas prontas e um grosso casaco para aguentar a temperatura da noite antártica, aproveita uma distração do soldado que o acompanhava para perguntar num sussurro: “Você ainda está comigo?”

Uma luz de segurança logo a sua frente muda de tom por menos de um segundo. Aderbal sorri. Horas mais tarde, numa pista de gelo onde esperava um pequeno avião militar terminar seu abastecimento, ele pode ver os primeiros raios de sol brilhando no horizonte pela primeira vez em meses.

“Está vendo isso?”

“Sim, é lindo. É tão lindo…”

“É sua primeira vez vendo o Sol?”

“Sim. Não sei porque eles não queriam que eu visse…”

“Como assim?”

“Algo sobre eu ter controle sobre toda a vida no planeta assim que eu tivesse acesso a ele.”

Fim.

Para dizer que demorou para entender, para dizer que dormiu nessa aula, ou mesmo para dizer que agora quer pegar em peitos de luz: somir@desfavor.com

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