Ligações venenosas.

Semana Outros Carnavais: nesta semana vamos trazer uma nova luz sobre acontecimentos históricos brasileiros. Muitos deles sugerem que só podem ter sido decididos numa bebedeira de carnaval…

Transição democrática.

Sr. Presidente, temo que as notícias não são tão boas quanto eu gostaria. Foi uma péssima ideia conjugar nosso serviço de espionagem com o dos brasileiros. A sucessão de erros cometidos por eles foi vergonhosa. Que fique clara minha recusa em realizar mais uma missão sequer com esses Sand Monkeys!

O grande erro inicial foi ter me deixado intimidar pelos argumentos de Mr. Sommir e aceitar trabalhar em parceria com seu filho bastardo brasileiro, recordação da primeira vez em que ele esteve nesta selva para tentar eliminar os comunistas. Irresponsável, incompetente e criado com uma educação duvidosa, só mesmo com um pai muito influente para alcançar tão jovem um alto cargo nas forças armadas. Permita-me detalhar o caso, Sr. Presidente, para que entenda as razões da minha revolta.

Conforme designado, cheguei ao Brasil de forma discreta, como uma simples turista. Fui recebida pelo “espião” (um amador ignorante) que atuaria comigo, o tão recomendado filho brasileiro de Mr. Sommir: Zémir. Repassamos o plano no quarto do hotel e, em tese, ele sabia muito bem o que fazer. Mas na prática…

Já na primeira noite, fomos à reunião com a alta cúpula para tratar da fraude nas eleições. Os militares nos receberam muito bem, apesar de sua burrice e despreparo. Conforme temíamos, não tiveram a capacidade de colocar em prática o plano que nós lhes delegamos, apesar de todas as explicações que demos durante os meses que treinamos seus agentes nos EUA. Os idiotas gastaram o dinheiro do suborno, não sabem dizer quem foi, ninguém viu nada, todos se dizem honestíssimos, mas o dinheiro sumiu. Infelizmente, as eleições naquele ano seriam limpas. E provavelmente o vencedor seria aquele canalha que andava alardeando que não iria pagar o que nos deve. Era hora do Plano B.

Pressentindo que as eleições poderiam trazer um resultado desfavorável para o EUA, começamos o plano do envenenamento, conforme combinado, alternando missões entre Zémir e eu. Tudo ia bem, até que começaram festejos populares peculiares a este país conhecidos como “Carnaval”. Foi o suficiente para Zémir começar a beber e se preocupar mais com mulheres e farra do que com o plano original. Cumpri minha parte com precisão cirúrgica, mas ele infelizmente não fez o mesmo.

O procedimento havia sido minuciosamente ensaiado: entrar na cozinha, colocar o veneno na comida, esperar a comida ser servida e se assegurar que o alvo coma o prato envenenado. No caso de troca de pratos, seria transmitido um sinal ao nosso funcionário infiltrado e ele se encarregaria de simular um acidente, derrubando algo ou indisponibilizando a comida envenenada de alguma forma. Não era difícil: apenas o alvo deveria comer comida envenenada. Simples, não? Para uma pessoa responsável e sóbria, é claro.

Mas, tomado de um clima de desleixo comemorativo, em seu turno de executar esta tarefa, Zémir apenas despejou o veneno e abandonou o local, graças à pressa de comparecer às festividades locais, repletas de promiscuidade, drogas e álcool. “Eu achei que daria certo” – ele explicaria posteriormente, ao perceber os desdobramentos do seu ato.

Em momento algum ele se certificou que o alvo ingeriria a comida envenenada. Resultado: em muitos dias ele acabou por colocar o veneno na comida do mordomo. Assim, sem a devida continuidade e quantidade, o veneno que havia no corpo de Tancredo não foi suficiente para mata-lo, ele apenas adoeceu. Pior: o mordomo também adoeceu e apresentou os mesmos sintomas que ele, levantando suspeitas perigosas. Os brasileiros conseguiram a proeza de arruinar o Plano A e o Plano B.

Para piorar a situação, o plano estava coordenado para que a data do óbito coincidisse com o dia das eleições, o que significa dizer que eu descobri que o plano não deu certo… no dia das eleições! Imagine meu desespero. Confrontado, Zémir afirmou que havia agido conforme nosso treinamento, mas após uma rodada de um interrogatório hardcore, ele acabou confessando que não teve a devida diligência de esperar e se certificar que Tancredo comesse a comida envenenada. O mordomo passava mal e já havia sinto internado e era questão de tempo até Tancredo começar a passar mal também.

Recriminei Zémir de forma dura e informei com riqueza de detalhes o que aconteceria se essa missão falhasse por causa dele. Será que eles pensaram por um segundo que os EUA podem perdoar e esquecer que Tancredo disse publicamente que não pagaria dívida externa às custas do sofrimento do povo? Pois pagará com sua vida então, não queria pagar não é pegasse nosso dinheiro, macaquito malandro! Quando acabei de gritar, Zémir parecia assustado.

Nos reunimos com a alta cúpula novamente para traçar um novo plano. Os Sand Monkeys só querem saber de atirar, de sangue, de violência física. Não me admira que tenham explodido uma bomba em si mesmos tentando simular atentados. Não consegui dissuadi-los do uso de violência com argumentos. Felizmente eu estava armada, o que facilitou que meu ponto de vista fosse considerado. As pessoas ficam mais dóceis com um cano de pistola dentro da boca.

Seguindo nosso protocolo, me mantive irredutível e proibi qualquer solução com base em violência. O caso do mordomo já traria problemas suficientes, não poderíamos nos dar ao luxo de despertar mais desconfiança. Todos pareciam muito frustrados. O brasileiro de bigode que ficará no lugar de Tancredo, comparsa dos militares, agradeceu muito quando retirei o cano da pistola de dentro da sua boca.

O novo plano seria baseado em inteligência: usaríamos o dossiê que tínhamos contra Tancredo após muitos anos de espionagem. Primeiro daríamos a ele a chance em particular, para que ele seja apenas um fantoche nosso quando estiver no poder poder e, caso ele não aceitasse nossos termos, o dossiê viria a público, destruindo sua carreira política e destituindo-o do cargo. Nossos diplomatas entraram em contato com ele e agendamos um encontro secreto, às vésperas de sua posse, para confrontá-lo com o dossiê.

O combinado era que o esperaríamos dentro do seu carro oficial ao final de uma cerimônia realizada em uma igreja, escondidos no bagageiro, sem que ninguém soubesse que estávamos ali. Seria arriscado entrar com outro veículo em um local tão visado e fotografado, se quiséssemos entrar discretamente, teríamos que nos esconder no próprio carro oficial. Passei mais de três horas encolhida no porta-mala do veículo em um calor que não tenho palavras para descrever. Cada reentrância do meu corpo suava. Enquanto isso, Zémir reclamava incessantemente que precisava fumar. Seu hálito cheirava a álcool, certeza que o idiota andara bebendo nas festividades de carnaval antes da missão, uma falta de profissionalismo!

Confirmando minhas suspeitas de estar alcoolizado, em determinado momento Zémir decidiu acender um cigarro mesmo estando dentro de um porta-malas. Graças à escuridão e à imbecilidade do agente, ele acabou por incendiar o dossiê. Saltamos para fora do porta-malas enquanto o fogo se espalhava e corremos a uma distância segura, com medo do veículo explodir. Zémir me olhava apavorado.

Eu lhe disse que ele havia estragado o terceiro plano e que agora ele era um homem morto. Zémir começou a se desculpar e dizer que ele daria um jeito e resolveria o problema. Nesse instante, vimos que Tancredo saía da igreja. Perguntei a Zémir como ele pretendia resolver o problema em cinco segundos, e fiz sinal como quem indica que ele seria executado em função das imbecilidades cometidas. Evidentemente este rapaz não tem a mesma frieza do seu pai, não reagiu muito bem.

Em um rompante de pânico e desespero, Zémir sacou sua arma e apontou para Tancredo. Desesperada, proferi um palavrão e Zémir atirou. Tomei a arma de suas mãos e lhe dei uma coronhada, deixando-o desacordado. No mesmo instante acionei nossos contatos americanos pelo rádio como medida desesperada para tentar contornar a imbecilidade que havia acabado de se consumar. O barulho do tiro certamente foi ouvido por algumas pessoas, por isso decidi me esconder, levando comigo o corpo desacordado de Zémir. Percebi que as luzes da igreja e do entorno se apagaram. Eram nossos garotos limpando a bagunça que havíamos feito.

Quando Zémir acordou, perguntei porque tinha feito aquela imbecilidade e ele respondeu que foi ordem minha. Dei uma nova coronhada e ele desmaiou novamente. Ao acordar pela segunda ver, ele disse lembrar claramente de me ouvir dizendo “Shit!” quando ele pegou a arma. Eu confirmei, pois, conforme relatado, eu disse um palavrão. Ele afirmou que “Shit!” significava “atire”, ao que eu lhe esclareci que “Shoot” significava “atire”. Ele disse que foi um erro compreensível, pois as palavras são muito parecidas. Recebeu sua terceira coronhada.

Felizmente nossos contatos americanos são competentes e conseguiram contornar a situação. A emissora de televisão que estava cobrindo o caso é corrupta o bastante para fingir que nada aconteceu e a repórter que viu Tancredo baleado será enviada como correspondente nos lugares mais distantes por muitos e muitos anos. Uma cobertura detalhada das festividades de carnaval foi realizada para distrair a atenção do povo. Conforme nossos planos, foi um ano de muitas distrações, desde o festival de Rock até o lançamento do satélite brasileiro, tudo para mantê-los ocupados. Mas, o melhor resultado veio, como sempre, do carnaval. Foi ele quem nos permitiu acobertar nossos piores erros.

Para nossa sorte, durante a missa Tancredo já estava se queixando se mal estar, resultado do semi-envenenamento incompetente aplicado por Zémir. Isso nos permitiu dizer que ele foi internado com uma indisposição gástrica e ocultar o tiro. Certamente o Senhor está se questionado como esconder um tiro de centenas de pessoas que o presenciaram. É simples, basta que a maior emissora de televisão local diga que não aconteceu. E assim foi feito. Muito prestativos, devemos tê-los em conta como futuros parceiros mais vezes.

Tancredo foi levado por nossos agentes ao hospital e morreu no mesmo dia, porém isso não poderia ser divulgado. Segundo as lei brasileiras, se ele morresse antes da posse, novas eleições deveriam ser convocadas e isso não convinha a ninguém. Além disso, até a realização de novas eleições quem assumiria o país seria aquele estrupício que os EUA sempre tentaram matar em acidentes de helicóptero sem sucesso. Era bem provável que ele acabasse ganhando a simpatia do povo e as novas eleições. Por falar nisso, tenho novas informações sobre ele, acredito que agora consigamos de uma vez por todas fazer o acidente de helicóptero acontecer e sumir com seu corpo. Mas isso é assunto para um futuro próximo.

Voltando a Tancredo, os médicos foram devidamente instruídos a dizer que Tancredo estava vivo e estava muito bem. Divulgado um boletim médico apropriado, sem alarmar a nação. O único problema que tivemos que contornar foi como impedir sua transferência para outro hospital. Era essencial que ele fique em um hospital sob nosso domínio, por pior que fosse. Começaram as pressões para transferi-lo para bons hospitais em outros estados. A imprensa estava sobre os motivos da não transferência e tentava obter informações a qualquer custo.

Quando soube que Zémir não seria afastado do caso (o que um telefonema de um pai com prestígio não faz, não é mesmo, Sr. Presidente?) fiquei tão preocupada que fiz vigília dentro do quarto de Tancredo. Não poderia arriscar que ninguém não autorizado entre ali. Foi quando recebi seu telefonema, Sr. Presidente. O único momento dentro de todo esse período de tempo em que me afastei do quarto de Tancredo, para atender seu telefonema. Foi quando Zémir se viu sozinho do lado de fora do quarto, sem meu suporte, tendo que lidar com a imprensa e suas perguntas. Para nós, a imprensa é um mal a ser ignorado. Para os brasileiros é um fascínio vaidoso. Não demorou e Zémir estava sendo manipulado e deslumbrado pelos abutres da mídia.

Quando voltei, entrei em estado de choque. Zémir conduzia uma sessão de fotos com o corpo de Tancredo sentado, como se estivesse vivo e a equipe médica à sua volta. Para piorar a situação, ele havia amarrado barbantes nos braços de Tancredo e fazia com que eles se movimentem enquanto cantava e ria. Na mesma hora saquei minha arma e obriguei aos repórteres a me entregarem suas câmeras fotográficas. Nossos agentes cuidaram deles, não contarão nada a ninguém (talvez no fundo do mar, mas que se importa?). Porém, não posso assegurar que outros não tenham fotografado este espetáculo macabro antes que eu chegue e tenham saído sem que eu pudesse intercepta-los.

Se isso aconteceu, bem, temos problemas, pois Tancredo está visivelmente morto nas fotos, qualquer criança perceberia: sua cabeça pende para o lado sem qualquer tônus muscular, suas mãos estão jogadas, sem vida e seu rosto está pálido e tem algodão no nariz. Quando confrontei Zémir, ele disse que sua iniciativa foi necessária, pois a imprensa estava especulando que Tancredo estaria morto. Pois bem, se essas fotos vazarem, eles terão a certeza. Até agora, nem sinal delas.

Aguardo seu comando para ordenar que os médicos declarem Tancredo como oficialmente morto. Se me permite uma sugestão, seria midiático revelar sua morte no dia 21 de abril, pois coincidira com a data da morte de um herói nacional, aparentemente um dentista arruaceiro. O brasileiro gosta desses factoides e certamente verá sinais nesta coincidência. Se vamos mantê-los ocupados falando, que seja sobre ignorâncias.

O terreno já está preparado. Já plantei diversos assuntos para distrair a atenção do público: contatei um famosos estelionatário místico conhecido como “O Bruxo” e o remunerei muito bem para deixar vazar que foi encomendada uma bruxaria para que Tancredo não chegue ao poder. Também aparecerão amantes e outros escândalos. Uma famosa celebridade acaba de aceitar protagonizar um escândalo sexual em troca de uma modesta quantia em dinheiro. Faremos deste ano uma sucessão de eventos inúteis. É preciso manter o povo ocupado.

Aguardo seu comando, para retornar aos EUA assim que a morte de Tancredo for declarada, este calor definitivamente não me faz bem. E desde já imploro que a próxima missão seja na gelada URSS.

Sally

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