Conhecimento fraudulento.

A vida é feita de padrões. Principalmente para nós, seres humanos. Nossos cérebros são moldados para reconhecimento de padrões, uma forma de começar a perceber relações repetidas entre elementos da nossa percepção. O sistema é tão viciado nisso que o simples fato de perceber um padrão já gera recompensas dentro da cabeça. E logo logo vocês vão reconhecer o meu padrão de falar de algo completamente diferente da abertura do texto…

É tão natural aprender através do reconhecimento de padrões que acabamos meio cegos para a nossa própria “fraudulência intelectual” de tempos em tempos. O que eu chamo de fraudulência intelectual? A ideia de que conhecimento presumido acaba tendo o mesmo valor do adquirido através de estudo, principalmente nos dias atuais. Sim, vamos precisar de mais uma definição: conhecimento presumido é aquele que você tira da cartola através de comparações entre teorias, opiniões e fatos. Não deixa de ser uma ideia muito parecida com a de um “chute”, um palpite educado ou não sobre algum tema.

Vivemos num mundo que valoriza cada vez mais a pluralidade do saber, é até inevitável que a humanidade siga para uma linha generalista, onde todo mundo sabe um pouco de tudo ao invés de termos especialistas desconectados um do campo do saber do outro. Inegável que essa guinada tenha grande sinergia com uma sociedade hiperconectada através da internet, onde programas e máquinas conseguem assumir funções muito específicas com uma eficiência que ultrapassa em muito a nossa, mas nenhuma mudança na dinâmica social é uma ilha: cada transformação gera repercussões.

Ok, excelente que as pessoas consigam ser cada vez mais gerenciadoras de processos do que máquinas orgânicas, mas a nossa mente vai ter que se adaptar: a quantidade de informação que nos é exigida aumenta exponencialmente, e é humanamente impossível ser especialista em tudo. Nem tem espaço no cérebro pra tanta informação. Dessa forma, temos que ficar cada vez mais eficientes em relacionar o mar de dados que nos cerca para tirar conclusões e tomar decisões minimamente razoáveis.

Mas, como disse no começo do texto, sorte nossa que o cérebro funciona justamente assim: presumindo o todo pela parte, tomando atalhos sempre que possível e tentando evitar que tenhamos que só reagir sempre. Quem percebe um padrão tem oportunidade de se adiantar a ele da próxima vez: e isso é extremamente básico, até animais irracionais conseguem entender relações entre causa e efeito repetidas e moldar seu comportamento assim. Uma hora o cachorro entende que sentar ao ouvir um som específico gera recompensas, uma hora cidadão percebe que se disser que ama consegue sexo… prevemos e agimos de acordo.

Só que num cérebro complexo, a coisa vai além: não só temos essa vertente comportamental de condicionamento, como usamos o reconhecimento de padrões para extrapolar a lógica de uma situação para a outra. O que pode nos levar a coisas feias como o preconceito (embora ele tenha suas defesas evolutivas) ou a geniais saltos de conhecimento científico. E é nessa área complexa que reside o meu questionamento: será que não está ficando um crime perfeito demais presumir que conhece sobre algum assunto? Já batemos várias vezes aqui na ideia de que o brasileiro se acha especialista em tudo, mas tem um outro lado: o comportamento só vai pra frente se for reforçado.

E foram com as redes sociais que vimos um reforço espetacular da ideia: a soma da ilusão da importância da própria opinião com a facilidade de consumo e pesquisa de informações torna muito fácil achar que esse tipo de conhecimento “chutado” equivale mesmo ao batalhado. Ao traçar paralelos rasos entre informações igualmente rasas, pode-se emular uma sabedoria absurdamente maior do que a real. E eu nem estou apontando o dedo exclusivamente para os outros: notei recentemente que sou especialmente eficiente nisso.

O texto de hoje nasceu sem pesquisa nenhuma. Não tem aprofundamento, é só uma série de ideias até que espertamente concatenadas para parecerem mais complexas do que realmente são. Talvez você não tenha percebido por alguns motivos: posso já ter formado um discurso de autoridade suficiente depois de todo esse tempo, pode ser que uma ou outra ideia exposta aqui tenha sido novidade suficiente para te fazer ficar distraído, pode até ser que você tenha preenchido quaisquer vazios na teoria para fazê-la se adequar a sua visão de mundo…

Não estou pescando elogios não, eu escrevo textos bacanas sim, mas me deixa em dúvida agora se nós percebemos quando estamos absorvendo informações confiáveis ou se é apenas uma sequência de saltos cognitivos baseados em padrões que nos agradam. Pensamento crítico é uma coisa complicada… é meio como precisar de experiência para fazer um estágio. Sem ter bases fortes, ele não consegue se desenvolver. Mas, como conseguir bases fortes sem saber filtrar as informações relevantes para começo de conversa?

Temi cair numa grande contradição ao imaginar a resposta dessa pergunta: procurar pessoas de confiança e consumir delas a informação. Mas, eu sempre fui muito contra a ideia de colocar a pessoa na frente da informação. Não é a posição de especialista que deveria definir o grau de fraudulência do conhecimento. Mesmo especialistas erram, e isso acabaria caindo novamente num dos truques para emular saber mais do que realmente sabe, o discurso de autoridade.

Então, como lidar com isso? Talvez prestando mais atenção na base do processo de aprendizado: nos padrões. Se a conclusão é baseada num salto entre dois assuntos diferentes que por algum motivo compartilham um elemento em comum, o conhecimento deveria ficar guardado em outra área do cérebro. Como se estivesse “pendente”. É muito difícil mudar esse modo de funcionar da nossa absorção de informações, mas acredito que seja de grande valia para separar o joio do trigo. Um dos maiores problemas desse admirável mundo novo de incontáveis fontes de informação é justamente saber no que se pode confiar ou não.

Opinião e informação vão se misturando de forma cada vez mais difícil de se separar, e está na pauta da nossa evolução como espécie uma guinada severa para a pulverização do conhecimento. Saber pouco sobre muita coisa num mundo pós-Google pode até manter esse ritmo de evolução exponencial válido por muitas e muitas gerações, mas isso tem toda a cara de um processo que eventualmente vai trazer ganhos cada vez menores. Eventualmente vamos saber tão pouco sobre tanta coisa que vamos ver padrões em absolutamente todas nossas ideias.

E é aí que me preocupa bastante o fim do pensamento crítico como conhecemos. Posso estar conjecturando sem ter todas as informações necessárias (aliás, é uma certeza se pararmos pra pensar), mas acredito que o próximo passo pra quem quer estar à frente da curva é já se adaptar a essa mudança e começar a se focar em separar conhecimento verificável e conhecimento alcançado por mera visualização de padrões. Para que a informação que retemos não seja meramente especulativa e que só computadores e máquinas acabem trabalhando na “vida real”.

Se é um bug esperado da mente humana ou se é algo que podemos corrigir no meio do caminho não sei, mas, pelo menos eu vou tentar prestar mais atenção nisso. Não precisa abandonar nenhuma fonte de informação, basta começar a prestar mais atenção no que gera as conclusões que aceitamos como fatos. Talvez tenhamos todos que virar jornalistas no sentido de verificar o que relatamos ou acreditamos antes de passar pra frente. Se ninguém mais faz isso por nós, temos que fazer.

Para dizer que isso foi enrolação (né?), para dizer que acabou no meio, ou mesmo para dizer que agora vai reler todos os meus textos pensando nisso (opa!): somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • Opinião não é informação. Informação valiosa produz opiniões.

    Com informação valiosa, pode se incluir, alem de uma fonte confiável, a quintessência dos eminentes autores clássicos. Ir direto na fonte.

    Curioso isto de aprender muita coisa através de padrões. A retórica, o sofisma, a falácia, a enchessão de chorissa, o bal, blá, blá…Tudo isto pode ajudar a parecer que se esta a falar de algo profundo e bem pesquisado. Ah, e ainda tem os números, os dados percentuais, as estimativas…Também são muito usados para impressionar os leitores médios.

  • Gostei muio do texto, Somir. E tenho um pensamento parecido com o seu. Só me surpreendi de ninguém até agora ter comentado. Outra coisa que possivelmente nem tenha muito a ver com o cerne da questão, mas que acho que você vai concordar: de pouco adianta ter tanta informação – e tanta facilidade de acesso – se não se sabe direito o que fazer com essa informação. Por isso, creio que o que você disse de “verificar o que relatamos ou acreditamos antes de passar pra frente” já seja necessário agora. Ainda mais aqui, onde quase todo mundo parece ter certeza de tudo mesmo sem nunca ter lido nada.

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