Linguagem suave.

Acredito que muitos aqui conheçam George Carlin, um comediante americano dos mais brilhantes que estava prevendo o problema do politicamente correto décadas antes de muitos de nós dizerem suas primeiras palavras. Se não conhece, o Youtube é seu amigo. George tinha um discurso muito interessante sobre a “linguagem suave”, a forma como a sociedade vai usando formas cada vez mais eufemísticas para tratar sobre assuntos que julga problemáticos. E o que em sua comédia era uma análise curiosa sobre nossos costumes vai se tornando uma merda cada vez mais fedorenta… opa, quer dizer, uma situação que carece de mais atenção.

Já começo dizendo que consigo entender como algumas expressões vão mudando com o passar do tempo, considerando uma evolução natural dos padrões de fala do ser humano. Pessoas com vocabulários maiores e mais acesso a informação com certeza vão acabar refinando um pouco sua forma de falar e escrever. Pessoas mais simples com certeza não são de dourar a pílula: dizem o que lhes é mais descritivo.

Em alguns casos, é compreensível que nos policiemos para tornar nosso discurso mais condizente com nossas reais intenções. Por exemplo: nem muito tempo atrás qualquer pessoa com deficiência física seria chamada de “aleijada” em qualquer círculo social. As pessoas entendem o significado da palavra, mas com o tempo ela começou a ficar meio agressiva demais no inconsciente coletivo. Se sua intenção não era essa, o uso da palavra “deficiente” deixava as coisas mais leves. Guardemos o “aleijado” para os filhos da puta e usemos “deficiente” para pessoas neutras ou queridas.

Mas, o tempo passa. E aí começamos a ver os filhotes dessa adaptação linguística tomarem vida. “Deficiente” é uma palavra oriunda de deficiência, uma falta. O que na prática tem sua lógica, afinal, alguma coisa aconteceu com a pessoa para que ela precise ser caracterizada de forma diferente, mas… os deficientes e outros interessados na causa resolveram que não era legal serem definidos pelo o que estava faltando. Daí surge o “portador de necessidades especiais”. Não tem algo em déficit, tem algo especial. Pronto!

Pessoalmente não me importa ter que usar algumas palavras a mais, se eu quisesse ser chamado por algum nome, gostaria que as pessoas respeitassem. Não custa tanto assim, vai… mas, tem algo embutido aí, a evolução da ideia inicial de controlar a agressividade das palavras. Trocar um termo ofensivo por um que não seja faz muito sentido. O passo seguinte de trocar a palavra por uma expressão com objetivos mais ideológicos, por assim dizer, esse exige mais atenção.

Porque esse passo pode ser a porta de entrada para outras revisões na nossa comunicação que na verdade não estão beneficiando ninguém. O ex-“retardado” passou a ter “dificuldades de aprendizado”, e agora dificilmente é chamado por algo além de “especial”. A questão aqui é que os termos começam a ficar cada vez menos descritivos… o “aleijado” te dava uma imagem mental claríssima, o “deficiente” podia assumir muito mais formas, o “portador de necessidades especiais” tecnicamente poderia ser qualquer pessoa nesse mundo. Sim, sabemos o que esses termos significam na prática, mas percebem como as expressões vão se tornando mais abertas em nome do refinamento da linguagem?

Porque se pararmos pra pensar, as pessoas costumam se sentir mais aceitas e acolhidas se não forem isoladas num grupo extremamente específico com as palavras que são usadas para lhes descrever. Nada mais humano do que querer ser parte do bando e se destacar só pelo o que tem de bom. Era previsível que a fala se tornasse mais suave seguindo por esse caminho. E, novamente, tá bom! Eu ainda acredito que o preconceito também está em quem se ofende com as expressões, vestindo uma carapuça que não precisaria, mas… eu sou um homem branco heterossexual… pra mim é mais fácil não dar bola para o que a sociedade me imputa. Não estou discutindo isso agora. Concedo o ponto por não achar que vale a encheção de saco; chamo do que acharem melhor em público, uso os termos que acho corretos com meus amigos.

Então, qual é o ponto deste texto?

A linguagem suave está alcançando mais um grau evolutivo. Como não houve muita resistência ao processo secundário de começar a trocar palavras não mais pela sua agressividade, mas pela ideologia que poderia ser aplicada ao termo mais favorável, a geração seguinte desse discurso politicamente correto começou a reescrever a verdade na cara dura.

O que seria o “privilégio”? Termo usado e abusado nos dias de hoje para explicar como algumas pessoas nascem com vantagens na sociedade e que precisamos equilibrar o jogo para todas as outras, na verdade define um gênero, uma raça ou uma orientação sexual de forma negativa. Talvez, para muitos que o usem, não por mal, mas não podemos tapar o sol com a peneira: uma mulher negra lésbica, por exemplo, vai morrer sem ouvir esse termo sendo usado para lhe definir.

“Privilégio” define basicamente homens brancos. Evidente que tem sua lógica, mas… como o termo já tem presunção de defender a justiça social, pode ser usado praticamente sem repercussões até se o objetivo é segregar outra pessoa. Tem que fale de privilégio considerando as implicações sociais disso, procurando soluções, tem quem goste do papel de vítima e destile seu ódio pelo diferente através de uma categorização forçada. Sem a linguagem suave, a pessoa teria que dizer que por causa do gênero e da cor de pele de alguém, essa pessoa não teria direito de reclamar da vida ou mesmo de criticar outros seres humanos. Privilégio é um termo que faz sentido em alguns contextos, mas pode beber das fontes do sexismo e do racismo sem expor quem o utiliza.

Crime perfeito. Ainda não está muito em voga por estas bandas, mas temos outros exemplos mais comuns em países mais desenvolvidos. “Espaços seguros” (safe spaces) em tese são lugares onde uma pessoa pode se ver livre de preconceitos e discursos de ódio. Algumas universidades gringas já aderiram à onda, punindo exemplarmente qualquer pessoa que diga algo fora do script local. Na prática, isso é censura prévia. Tudo bem que estamos vindo de séculos de repressão contra discursos de igualdade, mas o uso de uma expressão como “espaço seguro” gera a falsa sensação que todos podem ter uma voz. Na verdade, o espaço só é seguro pra quem concorda com as opiniões de quem o controla. Se querem combater repressão com censura, que tentem, mas não é a expressão que vai descaracterizar o silêncio forçado de vozes dissidentes.

Outra que eu acho terrível é a “microagressão”, a ideia de que só por existir, pessoas privilegiadas (vulgo homens brancos) podem causar danos irreversíveis a grupos mais marginalizados. Uma palavra, um olhar, um gesto… caso tenha alguém que escolha se vitimizar por alguma dessas coisas, já vira “microagressão”. Não precisa tentar ofender ou diminuir a pessoa, não tem mulher que reclama que homem senta com as pernas muito abertas no metrô como se fosse uma forma de repressão contra elas? Ou as que reclamam do ar condicionado, da forma de falar com elas… são todos elementos que nem me cabem julgar se são tão incômodos assim, mas que com certeza podem ser adereçados sem vilanizar o outro. A linguagem suave age dando mais valor ao que antigamente chamávamos de “frescura”. Valorizando demais antiquíssimas questões inerentes ao convívio humano como se fossem tentativas ativas de repressão.

A ideia original da linguagem suave era segurar um pouco a nossa grosseria habitual e procurar expressões mais palatáveis para o consumo geral, mas evoluiu no sentido do eufemismo genérico e logo debandou para a ideologia. Palavras se transformam para mascarar preconceitos e disfarçar o que muitas vezes se aproxima perigosamente do discurso de ódio. E com o passar do tempo, periga das pessoas perderem os significados originais do que estavam falando, assumindo o risco de repetir os erros do passado, apenas com palavras diferentes.

É um caminho sem volta em direção do “não é o que você fala, é como você fala”, uma ideia terrível para uma civilização que deveria se entender através da linguagem. Maquiando qualquer ideia incômoda não só para fingir que os problemas não existem e somos todos iguais (não somos, devemos apenas ter direitos equivalentes), mas também para poder resgatar ideias de repressão e censura com uma roupagem moderna.

A linguagem é uma ferramenta extremamente poderosa. Com as palavras certas, o ódio contra outros povos vira legítima defesa. Se você quer mudar a mente das pessoas, costuma ser um bom caminho sabotar o significado das palavras que elas usam para modificar todo o processo mental relacionado a elas. Estamos suavizando tanto nossa fala, cedendo tanto aos termos politicamente corretos, que eventualmente nem vamos saber mais o que esses termos deveriam dizer pra começo de conversa.

Tá bom que você acha a criança especial, mas… ela está botando fogo nas cortinas. Não tem expressão que suavize isso.

Para dizer que meu texto foi particularmente obtuso, para dizer que meu pensamento foi muito especial, ou mesmo para dizer que acha tudo isso uma paunocuzação escrota: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • “Tá bom que você acha a criança especial, mas… ela está botando fogo nas cortinas. Não tem expressão que suavize isso.” Neste caso, seria criança especial incendiária.

    O eufemismo está descaracterizando as expressões, arrancando sua essência.

  • Concordo com tua análise, Somir. E tenho reparado que essa “linguagem suave” é diretamente proporcional ao nível de histeria das pessoas na sociedade. Hoje, me parece, as pessoas estão mais sensíveis e se ofendem facilmente com qualquer coisa, tão logo o politicamente correto se instaure e seja necessário o uso da dita linguagem suave. Uma pena, pois é só mais uma forma mascarar as verdades doloridas e não encarar a realidade de frente. Mas uma hora a máscara cai e a dor é inevitável, as pessoas deviam aprender isso.

    • Nem mesmo mudar as pessoas altera a realidade. Nas imortais palavras do maconheiro disléxico: o bagulho é lento e o processo é louco. As palavras só deveriam mudar de significado quando os significados exigissem isso…

  • Aqui no Brasil eu tenho certeza absoluta que um dos motivos principais para essa fala macia é a inversão de valores que foi pregada desde que o PT assumiu o poder. Quando ignorância e pobreza se tornam sinônimos de boa índole e honestidade, quando pais que mal conseguem se sustentar são premiados com aumento em benefícios de transferência de renda cada vez que nasce um novo filho, junto com a confortável idéia de que você não tem nenhuma responsabilidade por estar na situação em que está, pois essa culpa reside “neles”, os “opressores”, o cenário atual é bem compreensível.

    E sabe o que é engraçado? Aqui no Brasil as pessoas fazem das tripas coração para parecerem longe da situação de oprimido. Ninguém quer parecer pobre, ninguém quer parecer burro, ninguém quer parecer menos capaz de algo por ser negro/mulher/gay…

    …mas quando definitivamente não são pobres (mesmo que não levem um estilo de vida esbanjador), passam a ser os sortudos e privilegiados que com certeza exploram os outros direta ou indiretamente para assim serem. Quando não são burros, ainda mais quando vêm de boas escolas particulares, são os sortudos e privilegiados elitistas, que são bons demais para se misturarem com essa gentalha. E quando não são negros/mulheres ou gays, já são privilegiados de vida ganha, que por alguma razão se tornam opressores só por existirem.

    • O mecanismo funcionou no chamado Primeiro Mundo, e meio até que fazendo um paralelo com o texto da semana anterior sobre a “produtização de ideias”, o que chega aqui é a versão de camelô… é tipo a ideia original, mas custa menos e não tem garantias.

  • É tudo uma disputa de poder. Isso é basicão: se o irmão mais novo se queixa pro pai e ele dá uns cascudos no mais velho, o novo tirano passa a ser o caçula. Não precisa de muita sociologia, nem muita psicologia. Basta não acreditar na roupa nova do rei.

    • Não deixa de ser fascinante como todos os caminhos levam a Roma da segregação. Privilégio não deixa de ser resultado do processo evolutivo…

  • “não é o que você fala, é como você fala”

    Esse termo já evoluiu. Agora é algo como “não é o que vc fala ou faz, depende de quem vc é e de que lado está”

    Se vc for militante, sempre haverá um exercito para relativizar o que vc disse ou fez, por pior que seja. Se for do outro lado, qualquer microagressão será alvo do pior tipo de intolerância e retaliações.

    No fundo, as minorias são o que menos importa. São meros instrumentos para pessoa ter uma causa pra chamar de sua e se sentir melhor, ou para um objetivo ideológico maior.

    Já disse antes, pior que uma sociedade em que todos tentam ser melhores que os outros é uma em que todos tentam parecer piores ou mais dignos de pena e esmolas sociais.

    Sempre haverá alguém mais privilegiado que o outro. O homem é mais privilegiado que um gay, que tem mais vantagens sociais que uma mulher, que ainda é melhor que uma trans, que é melhor que uma trans negra, uma trans negra lésbica, ou uma mulher negra lésbica, gorda e macumbeira, e por aí vai.

    Eu pessoalmente acredito que desde que nascemos temos de lutar cada dia contra o mundo que tenta nos bater de volta (Balboa feelings), pra grande maioria das pessoas a vida é difícil. Mesmo em níveis diferentes, a vida é foda; não sei exatamente até que ponto gritar por mais Estado é a solução, mas ficar parado esperando, que não é…

    • Evoluiremos para uma linguagem extremamente contextual, onde quem diz modifica completamente o significado das próprias palavras. Não deixa de ser prova de complexidade humana, mas… é fazer vistas grossas para uma das falácias mais básicas de todas.

      • Não só o que será dito dependerá de contexto. Meu receio é que até o que será FEITO, se encaixará nesta falácia.

    • “Já disse antes, pior que uma sociedade em que todos tentam ser melhores que os outros é uma em que todos tentam parecer piores ou mais dignos de pena e esmolas sociais.”

      Isso é tão Ayn Rand.

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