Quem decide?

+Um quadro apresentado no “Fantástico” deste domingo gerou revolta em muitos internautas. Na atração, intitulada “Eles Decidem”, Fernanda, uma mulher de 35 anos de idade e solteira, pensa em fazer inseminação artificial, para engravidar. Para pesar os prós e contras, vinte estranhos escolhidos pela produção dão palpites na decisão da mulher.

As pessoas ficaram revoltadas pelo tipo da decisão, nós aqui ficamos revoltados por um programa assim sequer existir. Desfavor da semana.

SALLY

O programa Fantástico lançou um novo quadro já faz algum tempo, nem é novidade, mas como a gente não assiste esse programa, só ficamos sabendo agora, através de notícias. O nome do quadro é “Eles decidem”. Consiste no seguinte: a pessoa precisa tomar uma decisão importante na sua vida e decide delega-la, na frente do Brasil todo, a um grupo de estranhos. Sensacional, não é mesmo?

E não estamos falando de decisões meramente técnicas, que qualquer um de nós delegaria a pessoas com formação específica, como por exemplo perguntar a economistas o melhor lugar para investir dinheiro ou a engenheiros o carro mais econômico para comprar. Estamos falando de decisões pessoais. Esse aborto televisivo foi inspirado em um programa chamado “The Audience”, bem deturpado, diga-se de passagem, para agradar ao Brasileiro Médio.

Cito alguns casos, para que vocês tenham uma ideia do que estamos falando: homem com filho doente tem que decidir se vai trabalhar no Japão para custear o tratamento do filho e fica longe dele ou se fica ao seu lado com poucos recursos. Uma moça de 35 anos perguntou se fazia inseminação artificial ou esperava conhecer um parceiro para ter um filho. Sentiram o nível? E quem responde são pessoas comuns, sem qualquer formação específica relacionada com o problema.

Que fique claro: não é uma crítica à televisão bosta, disso já desistimos faz tempo. Programas tão ou mais bosta como esses sempre existirão enquanto existir essa enorme massa mal educada, fofoqueira e alienada. Sagrado direito de todos que existam centenas de programas bostas, nós amamos e respeitamos a liberdade de expressão e repudiamos a censura. A crítica aqui é a uma sociedade que gera a possibilidade de um programa desses.

“Eles decidem” é a cara da patologia social do Brasileiro Médio: ninguém quer se responsabilizar por nada, por isso, delegam decisões importantes de vida para terceiros e, de quebra, evadem grotescamente sua privacidade, permitindo que todo o Brasil saiba e comente sobre problemas que deveriam ser de sua esfera privada. Um combo e tanto, não é mesmo? Esses adultos infantilóides conseguiram, ao mesmo tempo, se livrar de responsabilidades de vida adulta e ter seus tão sonhados 15 minutos de fama. Parabéns aos envolvidos.

E parabéns também a quem assiste, extasiado pela fofoquinha da vida alheira, cuja cabeça é tão fodida que o desejo voyeur se sobrepõe ao bom senso e ao senso crítico. Em última instância, a culpa é de quem assiste, de quem prestigia, pois se não houvesse público, não existiria uma teratologia televisiva como essa. Muito triste, em primeiro lugar, esse interesse doentio pela intimidade alheia e, em segundo lugar, a falta de bom senso de não perceber quão equivocado é deixar estranhos tomarem decisões que afetarão os rumos da sua vida.

Um plus: geralmente essas pessoas que participam e dão audiência ao programa são as mesmas que se recusam a fazer terapia dizendo que não vão conversar com estranhos, atribuindo psicologia e psicanálise a “malucos”. Bem, se quem conversa com estranho é maluco, quem deixa o estranho decidir sua vida é maluco ao quadrado. Não que eu espere coerência de pessoas que participam ou prestigiam esse tipo de programa, mas não custa pontuar a falta de reflexão dessas pessoas.

Em uma sociedade onde a culpa é sempre do outro, ou de algum fator externo como os remédios, a bebida, a elite branca, karma, vontade de Deus ou qualquer outra baboseira que se queira inventar, um programa como esse vem para coroar a incapacidade das pessoas de se responsabilizarem por seus atos. Se algo der errado naquela decisão, foram “Eles” que decidiram. A pessoa prefere se foder toda graças a uma decisão tomada por pessoas que nem ao menos a conhecem do que ter que segurar a responsabilidade de ter decidido mal.

O que o Fantástico fez foi institucionalizar a não responsabilidade pela escolha, algo que deveria ser combatido e não incentivado. Ok, nunca esperei que a Globo eduque o povo, mas porra, reforçar um erro grave merece duas páginas de críticas. Se ao menos fossem especialistas ligados à área do problema, existiria algum valor, mas são pessoas randômicas.

Será quem os participantes do programa deixariam estranhos escolherem os rumos de suas vidas se não houvesse uma câmera ligada? Provavelmente não, de onde se concluí que neguinho negocia seu futuro, sua liberdade de escolha, só para aparecer na TV. Parabéns, viu? O pior é que são decisões que afetam terceiros inocentes, como por exemplo, seus filhos. Decidir o que fazer com uma criança doente ou até mesmo se vai colocar um filho no mundo na base do palpite de estranhos? Bem, se um dia eu tiver poder, essas pessoas serão esterilizadas.

Por outro lado, o programa também incentiva essa coisa nefasta de viver dando pitaco na vida alheia. É normal, é feito na TV na forma de programa, é bacana, todo mundo pode se meter a dizer se uma mulher deve fazer inseminação artificial ou esperar aparecer um parceiro para ter um filho! Esse tipo de programa “normaliza” uma atitude sem noção, inconveniente e mal educada. Decisões de foro íntimo devem ser tomadas pelos envolvidos, não por estranhos.

Ao “normalizar” esse tipo de inconveniência, quando alguém vier se meter em decisões importantes da minha vida e levar um fora homérico, vai se ofender, perguntar qual é o problema já que “todo mundo faz” e me chamar de fresca. Então, ainda que por vias transversas, a TV fomentando a inconveniência das pessoas me afeta. O rumo que a sociedade está tomando me afeta, ainda que cada vez eu tenha menos vontade e interesse de interagir com outros seres humanos, essas porras acabam chegando até mim e me incomodando.

Vejo esse programa como um marco. Saltamos da era onde delegar responsabilidades sobre seus atos era um mecanismo oculto para a era onde delegar responsabilidades sobre seus atos é prática institucionalizada, aceita e recompensada. Uma sociedade que delega neste nível se torna altamente manipulável e infantilizada. Vamos e mal a pior.

Para perguntar a 20 estranhos se este texto é bom ou é ruim, para reclamar que a postagem de hoje saiu atrasada ou ainda para agradecer por não falarmos de política: sally@desfavor.com

SOMIR

Já começo dizendo que eu gosto de dar palpites. Não é difícil de acreditar em mim, depois de quase 8 anos escrevendo minha opinião sobre os mais diversos assuntos aqui no desfavor. Desde temas leves e inconsequentes até mesmo decisões complexas de vida, é muito provável que tanto eu quanto a Sally tenhamos abordado algum ponto que acabou influenciando as ações de leitores. Mas… tem uma diferença que não me faz sentir hipócrita ao criticar o tema dessa semana: nós nunca aceitamos aqui o papel de gurus ou coisa do tipo. O palpite vem antes da pergunta.

É preocupante que a ideia de jogar uma decisão difícil da vida na mão de estranhos seja suficientemente aceitável para continuar sendo quadro de um programa de grande audiência na TV aberta. O caráter dos palpites torna-se impositivo. Na internet, cidadão pesquisa sobre o que quer saber e, teoricamente, se informa. Não tem ninguém se colocando na posição de gestor da vida alheia, a não ser que isso seja expressamente pedido e também aceito pela outra parte.

O curioso é que a internet surgiu justamente para completar essa lacuna de informação que era tão comum na nossa vida antes de seu advento. Decisões dependiam demais de quem você conhecia e da informação que estava alcançável naquele momento. A internet era seu círculo social, basicamente. Mas, a revolução da informação veio. Agora seja qual for seu problema, não demora muito pra conseguir muitos dados e opiniões sobre ele. Ao invés de “saltos de fé” baseados nas opiniões alheias, decisões informadas!

Mas, infelizmente, essa parte de se informar ainda gera um esforço que parece incomodar o ser humano médio. Não só o de ir procurar as informações necessárias em fontes seguras (tem gente que vem perguntar AQUI no desfavor o que fazer quando está com algo enfiado na bunda… sério), como também de fazer aquele esforço extra de tratá-las dentro da cabeça e aprender algo no processo. Muito mais fácil só ler ou ouvir o que outra pessoa já decidiu e imitar. “Na dúvida, siga com o bando.”

Quando um programa de TV escancara essa preguiça de pensar, acaba até incentivando a busca pelo atalho. Justamente o que esse povo não precisa… é como se a internet das pessoas do passado fosse lentamente tomando controle da internet das informações atual. Continuo criticando as redes sociais nesse ponto: pessoas presas numa bolha de opiniões repetidas, com algoritmos planejados para mostrar mais do mesmo, polarizando visões de mundo e transformando o achismo do outro em fonte de informação tão ou mais válida que algo produzido por um especialista.

E é nesse borrão entre qual informação tem méritos para guiar as decisões de uma pessoa que eu acredito estar o grande problema. Um especialista nem sempre vai dizer algo que pareça “bom senso” ou mesmo seja agradável de se ouvir, as informações não tem obrigação nenhuma de serem agradáveis. É assim que a ciência funciona: os fatos e os dados falam por si, sem precisar se conformar as nossas visões de mundo. Agora, o palpite… o palpite vem carregado com a visão de mundo de quem o profere.

Um palpite pode sim ter uma sabedoria enorme, principalmente se vem com experiência de vida, mas ele jamais pode ser comparado com uma informação conseguida através de algo como o método científico, por exemplo. São categorias completamente diferentes. O que a gente acha que outra pessoa deve fazer vem de uma percepção de mundo inescapavelmente única: a nossa. Não existe isenção completa.

E num mundo onde o pensamento crítico passa longe de ser a norma, a maioria das pessoas vai estar contaminada por uma mentalidade de bando, algo que transforma suas opiniões também em declarações sobre a própria necessidade de inserção social. Dá-se a opinião que a pessoa acredita que lhe trará benefícios. Claro, isso não significa que você tem de ignorar opiniões alheias, mas, pelo menos, saber entender o contexto delas. E a partir das informações coletadas, tomar sua própria decisão.

Mas, ei… isso é frescura. Bacana mesmo é jogar a vida nas mãos de outros, e mesmo que tudo dê errado, você pode pelo menos ficar tranquilo sabendo que não foi culpa sua!

Para dizer que não vai palpitar sobre isso, para dizer que a gente encana com cada bobagem, ou mesmo para me perguntar como se posicionar sobre este tema: somir@desfavor.com

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Comments (7)

  • A mentalidade bovina não para de me surpreender. Esse povo num tem vizinho, parente, gente intrometida no trabalho??? tem que buscar palpiteiros estranhos na tv??? Palpiteiros tem que ser mandados pro raio que parta, pra pqp, pro inferno, pra qualquer lugar que não seja um pedestal. Existem milhares de opções melhores do que essa que ajudam a tomar decisões.

  • Gostei demais desse texto de hj de vcs. Eu, pra variar, não sabia da existencia desse programa e fiquei impressionada como ele é sintomático mesmo. Também acho quase patológico isso das pessoas nao quererem assumir responsabilidades, não se bancarem emocionalmente com uma decisão e escolha feita. Adorei as suas pontuações Sally, ainda mais a parte que fala de estibular o hábito de meter o bedelho na vida dos outros. Brasileiro ten toc com isso.

    Agora mudando um pouco de asssunto…
    Passei muito tempo afastada da Rid… e senti falta de uma coisa na constituição… não existe mais o Dia do Troll na RID? Vcs desistiram de sempre ganhar da gente? Anos seguidos dando surra na gente, perdeu a graça a brincadeira, foi?

    Aquela desatualizada do carái…

  • Decidido pelo pessimismo

    (…) é como se a internet das pessoas do passado fosse lentamente tomando controle da internet das informações atual.

    O que a gente acha que outra pessoa deve fazer vem de uma percepção de mundo inescapavelmente única: a nossa. Não existe isenção completa.

    Mas ainda insistem em considerar “anti-imparciais para baixo” aqueles que simplesmente se opõem aos que aqueles tipos sempre confiaram…”Igrejismo(s)”, oi ?!

  • Decidido pelo pessimismo

    E ainda que eu também já tenha desistido (o quanto posso, enquanto não moro sozinho nem venho a óbito) desses televisionamentos, ainda me decepcionei também com novamente isso ser mais uma cópia deturpadíssima do exterior, ou seja, sequer a própria “Goebbels carioca” elaborou (esse retrocesso a essas custas) (!!!) – isso porque ainda era março terminando e faltando tudo aquilo que está por vir !!!

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