Mundo cão.

+O cão Bob levou um tiro fatal na cabeça enquanto corria atrás do carro da polícia, no bairro Heliópolis, em São Paulo. Revoltados, os moradores da região que fizeram protestos. Na estrada das Lágrimas, um ônibus foi incendiado e na avenida Almirante Delamare caçambas foram viradas e lixos queimados para impedir a passagem de veículos.

Não se discute que foi muito feio o que a polícia fez, mas… manifestação por cachorro morto? Banalizou. Desfavor da semana.

SALLY

A forma mais fácil e rápida de desvalorizar algo é banalizando. Pergunte a marcas como Louis Vuitton, que tiveram seus produtos “camelotizados” em cada esquina, sofrendo uma enorme desvalorização de logotipo. Por isso, quando um recurso é valioso, é preciso saber usá-lo com parcimônia, respeito e moderação. Exatamente o contrário do que o brasileiro médio está fazendo.

Faz pouco tempo o brasileiro médio descobriu que pode sair às ruas e fazer manifestação. Tal qual adolescente que descobre que pode beber e sai todos os dias para encher a cara, o brasileiro agora resolveu que vai fazer manifestação para tudo. Inclusive para a morte de um cachorro, notícia que ilustra a coluna de hoje.

Matar um cachorro é algo muito escroto, não se enganem, eu não sou a favor de morte brutal e desnecessária de animais. Porém, acredito que manifestações sejam medidas extremas para lutar contra aquilo que há de pior e mais urgente na sociedade. Se nessa cidade o pior que acontece é a morte de um cachorro, bem, me passem o endereço que eu quero me mudar para lá.

Em qualquer lugar do mundo, as pessoas vão às ruas quando há algo grave, urgente, significativo acontecendo. Pessoas escolhem as causas pelas quais querem se manifestar, algumas tocam mais outras menos, normal. Porém, se supõe que para mobilizar um grupo de pessoas a se deslocarem de suas casas e trabalhos para ir às ruas e tumultuar o andamento da cidade, a causa deve demandar isso.

Manifestações são demonstrações de descontentamento coletivo, são uma forma de cientificar o Poder Público de que algo que ele achava estar de acordo com a vontade do povo de fato não está. Para todo o resto, que converge com a vontade social, a lei e as decisões do Poder Público, está a lei, a imprensa e tantos outros recursos. Manifestação é para mudar o status quo, não para “dizer como me sinto”. Você não é tão importante, ninguém quer saber, muito menos transtornar o andamento de uma cidade por causa disso.

Então, morreu um cachorro e você está triste? Recorre à imprensa, recorre ao Judiciário e processa o filho da puta que fez essa crueldade. Não gasta energia e a paciência alheia fechando rua e fazendo manifestação, pois manifestação é uma medida extrema para quando nenhum dos outros recursos tem efetividade. Se banalizarem as manifestações, ficaremos sem este recurso. Repito: o que você sente não é matéria para manifestação. Escreva na sua rede social, em vez banalizar um mecanismo importante.

Além disso, por coerência, supõe-se que se você aciona o recurso mais valioso e impactante por uma pequena causa, também participará dele quando uma grande causa vier. Não faz sentido manifestação porque cachorro morreu enquanto descacetam o país com corrupção, enquanto pessoas morrem por falta de atendimento médico e até mesmo de fome. Manifestou pelo cachorro? Suponho que organize e vá em todas as manifestações por pessoas mortas por falta de atendimento médico né? Se não, fica parecendo que a morte de um cachorro é mais importante do que a morte de pessoas.

Obviamente coerência é algo que passou longe do Brasil e do brasileiro médio. Não vou insistir nesse ponto. Mas gostaria de jogar na mesa para reflexão os desdobramentos dessas manifestações por tudo. Faça um exercício mental e pense como teria sido a história do Brasil se manifestação fosse algo risível, desmoralizado e descreditado, que não tivesse o poder de pressionar ou assustar o Poder Público. Talvez, nem eleições diretas teríamos.

Se manifestações ficarem banalizadas, fatalmente deixarão de surtir o efeito desejado e, de dois um: ou o povo fica sem recursos para se impor perante aqueles que estão exercendo o poder em seu nome, ou precisa criar um recurso ainda mais extremo para ser ouvido, provavelmente carregado de violência. Nenhum dos dois cenários parece bom.

O brasileiro parece aqueles filhotes de cachorro que passam um tempão correndo atrás do rabo e quando finalmente o mordem, não sabem o que fazer com ele. Lutaram por décadas para ter liberdade de expressão, o direito de ir às ruas e dizer o que pensam. Quando conseguem, fazem mau uso, uso excessivos, estragando a ferramenta que eles mesmos cobiçaram por tantos anos.

Depõe contra um povo ter causas imorais como pessoas morrendo de fome, de violência urbana, de falta de atendimento médico e ir às ruas protestar porque mataram um cachorro. É, no mínimo, esquizofrênico. É risível. Falta bom senso. Mas falta, acima de tudo, vergonha na cara e a percepção do vexame que começa a despontar com esse excesso de manifestações. Mais uma vez o Brasil será motivo de piada na imprensa mundial, enquanto o brasileróide sorri e se acha bem quisto no mundo todo.

Parecem crianças que aprenderam a fazer uma coisa nova e, apenas por isso, a repetem à exaustão, ainda que fora de contexto. Se sentem super cidadãos manifestando por qualquer bosta e não se dão conta do sintomático que é essa postura infantil e impensada. Lamentável, vergonhoso e ridículo.

Apenas parem. Parem de fazer manifestação por qualquer merda, pois apesar de ser um direito individual de cada um, essa banalização prejudica a mim, a você e à sociedade como um todo.

Para criticar o tema, para criticar o texto ou para me acusar de ser a favor do assassinato de um cachorro: sally@desfavor.com

SOMIR

Já vou para a parte das manifestações, mas primeiro faço questão de falar sobre a forma como as notícias sobre o cão Bob foram escritas. Normalmente matérias jornalísticas resistem ao impulso de estabelecer a personalidade de uma vítima, para não colocar opinião acima de fato. Depende de quem se ouvir, uma pessoa pode ser excelente ou terrível. Mas, como quem morreu foi um cachorro, todos os textos que eu li estabeleciam como Bob era amigo das crianças e querido na comunidade. Longe de mim questionar esse ponto, mas não é como se um cachorro fosse ser muito diferente, ainda mais nas condições que se encontrava.

Estatística tirada da bunda, mas acredito que 99% dos cachorros que vemos por aí são tão ou mais carismáticos. Pudera, o cão evoluiu junto com o ser humano e criamos uma relação muito especial com o passar dos milênios. Eles sabem nos ler e vice-versa. Todo esse ponto é para estabelecer que eu não estou criticando nem mesmo a parte de se sentir revoltado quando alguém maltrata um cachorro, nenhum outro animal gera tanta empatia conosco como esse.

Porém, eu não posso deixar de apontar que é muito mais fácil se doer por um cachorro desconhecido do que por uma pessoa desconhecida. Certeza que o cão não estava mal-intencionado e não entendia o problema. Certeza também que no fundo o bicho só estava tentando sobreviver e/ou agradar alguém. Cães mexem com aquela parte nossa que sempre procura merecimento na violência que alguém sofre, tema que eu já abordei algumas vezes nas semanas recentes. Mantenho meu argumento que não se pode julgar o mérito de uma violência ocorrida, e sim apenas lutar contra a prevalência dela.

Mas, pelo visto, é uma longa jornada até as pessoas entenderem isso. Aqui mesmo no desfavor, com um público mais elitizado, eu sinto que a mensagem não encontra muito eco. Mas se não dá pra ir pela base ideológica, vamos falar de um resultado prático dela, o que talvez seja mais fácil de visualizar. Compreensível a revolta das pessoas com a polícia (justamente a polícia, numa comunidade pobre) matando um cachorro por um motivo besta desses, mas existem outras formas de lidar com essa revolta que não incendiando ônibus e fazendo manifestações violentas.

Esse tipo de fúria popular soa como pura frustração, muito mais do que uma medida para se fazer ouvir e exigir resultados. A manifestação deveria gerar uma pressão, quase que como um ultimato de uma sociedade contra o que quer que estejam protestando. E nem precisa ser violenta, dá pra fazer resistência pacífica funcionar também, desde que… a manifestação tenha uma consequência se não tratada.

Como o brasileiro não se mexia para protestar até pouco tempo atrás, as primeiras geraram muito mais atenção, um medo das autoridades de haver uma consequência ali. Mesmo que as coisas não tenham mudado consideravelmente, havia peso nelas. Os governantes tinham medo do que acontecia e até mesmo perdiam a mão na hora de tentar reprimir. Mas com o tempo, o povo começou a ver esse caminho. O que eu acho excelente do ponto de vista ideológico, mas sem esquecer desse elemento básico da consequência. Se a manifestação acontece, tem que ter um preço não prestar atenção nela.

Atualmente o preço é depredação de patrimônio público e incômodo nas redes sociais. Essa é a linha de banalização da consequência. Fica cada vez mais fácil para quem está no poder não negociar com os desejos daquela parcela da população. A tática padrão agora é deixar rolar o máximo possível e torcer para o povo cansar e voltar pra casa, talvez com a sensação de um dever cumprido. Explicaram pro brasileiro que ele tinha que se manifestar mais, mas não que ele precisava tirar algum resultado disso. Por enquanto, está sendo explorável. Grevistas conseguem alguma coisa porque geram uma consequência… gente que queima ônibus chega atrasada no trabalho no dia seguinte.

E, por outro lado, que nos chama atenção agora, é a linha da banalização do motivo. Porque ainda resta a ideia de que se o povo foi pra rua, querendo alguma coisa, é porque aquilo merecia alguma atenção. Se o poder público já sabe que não precisa ceder ao pedido por falta de consequência, ainda não sabe se pode só ignorar a situação por completo com os mesmos resultados. No mínimo manifestações geravam alguma ação, paliativa mesmo, por parte de quem tinha o poder. Se tinha protesto, era importante.

Mas, quando o protesto vem da morte de um cachorro, por mais que possamos buscar motivos muito mais profundos como o descaso da força policial com comunidades pobres, não é como se o povo fosse muito ciente disso. É a empatia com um cachorro mesmo, tornada raivosa pela marginalização da comunidade, mas provavelmente até onde vai a noção das coisas de quem estava lá, o coração estava com o Bob mesmo.

E aí, o cerco começa a fechar. Porque se quem toma as decisões começa a não dar bola nem para os motivos das manifestações, podemos chegar a um ponto de completa indiferença com os desejos populares. Quando o caso não exige uma mobilização popular vultuosa, e esse não exige, por mais bacana que o Bob fosse, começa a parecer que o povo estava lá só por putez generalizada mesmo. E se as autoridades ligassem pra esse tipo de coisa, bom… Heliópolis não existiria da forma que existe.

Manifestações tem que nascer com um propósito maior e tem que cobrar muito mais das autoridades para serem desfeitas. Nem que seja por mera tática de negociação: pede muito e ganha algo de bom pelo menos ao negociar. Se virar algo banal, uma forma simples de expressar frustração, bom, aí é só um incômodo passageiro pra quem manda. E cada vez mais fácil de reprimir violentamente…

Fico feliz que o brasileiro esteja se manifestando mais, mas isso não quer dizer que tenha aprendido a fazer ainda.

Para dizer que cachorro merece muito mais que gente, para dizer que se fosse o Satanás eu estaria muito puto, ou mesmo para dizer que se lembrava que o Bob tinha atirado no xerife, não o inverso: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • é cachorros …
    o mundo é pet agora
    e infelizmente esse cenário (acho) não vai mudar, os anos vão passar e o brasileiro não saberá usar sua liberdade de expressão corretamente ,os protestos também não, exelente texto da sally!

  • Mas nem fecharam o comércio em luto ao finado?
    Cadê os direitos dos animais pra esculachar com os milicos e exigir a punição ? Bob era um cão. Cachorro não pensa. Só atenta.
    E a onça? Ninguém apagou a tocha por causa da onça, tacou fogo no VLT, mandou o Paes tnc*.

    Tadinho do Bob!
    Tadinha da Juma!
    Tadinho de nós…

  • Óbvio que a atitude é imensamente condenável, que o bicho tinha direito à vida e que houve uma reação dos milicos desproporcional à banalidade do ato (afinal, cachorro corre mesmo atrás de tudo que é veículo quando tem chance), mas isso é um sinal de que a cachorrização do BM cresce a olhos vistos. Daqui a pouco será socialmente inaceitável você não ter cachorro e dizer que não gosta desses bichos te fará ser tão mal visto ou pré-julgado quanto o pior dos suspeitos de um crime hediondo. Onde eu trabalho isso já está acontecendo. Medo do futuro junto aos BM’s!

  • Pois é, meus caros: aquele lobos espertos que descobriram que a vida podia ser bem mais mansa junto aos humanos, chegaram ao nível pet – o ápice evolutivo de uma espécie que em seus primórdios prestava serviços importantes em troca de sobras de seus donos, e hoje tem a devoção destes em troca de só fazer merda.
    Lojas de acessórios, rações pra todos os gostos, festas de aniversário, de casamento, e até cemitério: nada é demais pro melhor amigo (leia-se senhor) do homem, incluindo aí o melhor lugar no sofá, o direito sagrado de babar e espalhar pelos na casa e no carro, e de latir dia e noite sem que algum vizinho tenha a ousadia de reclamar.
    Daí, quando vejo alguém que teve seu filho morto pelo cachorro, mais preocupado em justificar a ação do bicho do que lamentar a perda, não me espanta as manifestações pelo finado Bob. Me surpreende não ter sido declarado luto oficial de três dias.

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