Contagem de corpos.

+Um ataque com um caminhão na cidade de Nice, no sul da França, deixou dezenas de mortos e feridos nesta quinta-feira (14), quando a multidão comemorava o feriado da Tomada da Bastilha, maior festa nacional. Segundo o último balanço divulgado pelo Ministério do Interior, ao menos 84 pessoas morreram, incluindo várias crianças, e há 18 feridos com gravidade.

Estava com cara de DS, mas logo depois…

+O primeiro-ministro turco anunciou neste sábado (16) o fracasso da tentativa de golpe militar nesta sexta-feira, que deixou pelo menos 265 mortos, mas o presidente Recep Tayyip Erdogan pediu a seus partidários para que permaneçam nas ruas prontos para qualquer “nova onda”.

Parece não haver relação entre os temas, até… até se prestar mais atenção no que está causando tudo isso. Desfavores da semana.

SOMIR

Hoje só tem eu mesmo. Pra falar dos horrores de ambas as situações temos a mídia tradicional, mas pra linkar as coisas dessa forma, só no desfavor mesmo. Então, eu começo falando dos avisos de três líderes do Oriente Médio, em fases diferentes dessa velada Terceira Guerra Mundial que vivemos.

Primeiro, Saddam Hussein avisou que mexer no Iraque ia desestabilizar a região toda. Os americanos sabiam desse risco, e mesmo assim invadiram o local, duas vezes. Saddam tinha um regime aceitável sob o ponto de vista do desenvolvimento humano? Não, claro que não. Ele, pelo o que se passa por justo no mundo civilizado, deveria continuar sendo um ditador sanguinário no seu país? Não, claro que não. Mas, Saddam estava certo nesse ponto, bagunçar o Iraque sem um plano muito bom para modernizar suas instituições era criar um novo Afeganistão. Aconteceu.

Algum tempo depois, Muammar al-Gaddafi avisou que ele era uma das últimas linhas de defesa da Europa contra tudo o que estava represado no Oriente Médio e no Norte da África. Se Gaddafi era um ditador tão sanguinário assim já há mais controvérsias, mas do ponto de vista de sociedades democráticas modernas, ainda era uma excrescência. A Líbia tentava se tornar a “cabeça” da África, principalmente a islâmica, enviando muito dinheiro em ajuda e tentando organizar o comércio local. Gaddafi disse que sem ele, a “tampa” da África ia se abrir e a Europa ia pagar o preço. Aconteceu.

Mais ou menos na mesma época, Bashar al-Assad, ditador clássico, filho de ditador e regente com mão de ferro da Síria, avisou também que com tudo o que já tinha acontecido, se ele perdesse o controle do seu país, algo muito ruim ia acontecer para o mundo todo, mas, novamente, que a Europa ia pagar o maior preço. Assad tinha legitimidade como líder democrático e respeitador dos direitos humanos? Nenhuma. Em tese era correto defender o povo contra alguém assim? Era. Mas, junte Síria e Iraque completamente virados do avesso e você tem uma gigantesca terra de ninguém que virou terreno fértil para o aparecimento do Estado Islâmico. Assad disse o que ia acontecer… aconteceu.

E como isso se relaciona com as duas notícias escolhidas hoje? Bom, a França virou o saco de pancadas da Europa com violência de radicais islâmicos e imigrantes em geral, criando por lá uma situação que agora parece que já se tornou auto-sustentável: os radicais cometem atentados, o país reage endurecendo a linha contra os muçulmanos e imigrantes, esses ficam cada vez mais suscetíveis a comprar o discurso radical que “subiu” do Oriente Médio sem suas ditaduras minimamente seculares para segurar o tranco. Saddam, Gaddafi e Assad foram no alvo: aquela era a merda que eles lidavam, e sem eles, ela começaria a vazar.

Se faz sentido acreditar que o cidadão que cometeu o atentado em Nice era um maluco que não precisava de muito para fazer algo do tipo, o clima criado no país só facilitava as condições necessárias para isso acontecer. O “clima” deteriora sim com tanta desgraça acontecendo, tirando malucos do armário. Os tiroteios frequentes nos EUA que não me deixam mentir, quando começaram a pegar fama, aumentaram em frequência. E parecem ter chegado pra ficar. O sinônimo francês de tiroteio é atentado.

Na Turquia, que historicamente vive uma crise de identidade entre Europa e Oriente Médio, as coisas vinham se complicando também pela instabilidade entre os vizinhos. Estado Islâmico no seu quintal, não só mandando terroristas como tropas para incomodar a soberania nacional. A Turquia estava sendo “protegida” de excessos islâmicos há muitas décadas pelo seu exército, que, como de costume, também nunca foi flor que se cheirasse. Assim como o Egito, são países que andam numa finíssima linha entre a truculência militar e a teocrática, numa primeira marcha eterna rumo ao desenvolvimento humano democrático.

Com a crise ao seu redor, a Turquia se torna candidata ao aumento do autoritarismo de seus líderes, tempos de guerra sempre causam esse desejo entre aqueles que estão no poder. Sim, o exército turco tenta um golpe a cada 10 ou 20 anos sem falta, mas a oportunidade dessa vez está novamente relacionada com os avisos dos ditadores do começo do texto. A situação no Oriente Médio foi bagunçada de tal forma que agora tudo o que ficou “curtindo” lá dentro desde o século passado está fedendo para quem está próximo.

Não nego que talvez na análise final desses acontecimentos o saldo possa ser positivo. O Oriente Médio era uma Caixa de Pandora que tinha que ser aberta eventualmente para que as pessoas de lá pudessem eventualmente alcançar o desenvolvimento do resto do mundo, mas o processo é muito feio de se ver. Ainda mais considerando que cada vez que a tampa é levantada, o mundo parece não saber lidar com o que sai lá de dentro. Podem demorar muitas e muitas gerações para desfazer as cagadas feitas por lá, e isso sendo otimista com uma importância dada ao local por causa das riquezas naturais, riqueza que pode acabar antes do povo local ser devidamente integrado ao mundo moderno.

No final das contas, o que me preocupa é a ideia de que mexeram no local, fizeram tudo isso vazar para o resto do mundo… só pra aceitar que o melhor era ter deixado uma série de ditadores malucos por lá mesmo, mantendo as coisas sob controle para o resto de nós. Péssima mensagem. Mas, a vida pode ser péssima mesmo, ainda mais quando ninguém quer lidar mesmo com o problema.

Para dizer que eu deveria ter escrito como a Sally também, para dizer que os meus desfavor da semana são confusos, ou mesmo para dizer que está na hora de banir os caminhões de assalto: somir@desfavor.com

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Comments (13)

  • Em tese os muçulmanos deviam ser os primeiros a condenar publicamente o terrorismo dizendo que isso não representa a religião deles.

    Tolerar o intolerante gera a destruição da tolerância a longo prazo.

    Só dizendo…

  • Excelente texto, Somir.
    Estudo Relações Internacionais e meu professor de história passou aulas e aulas dizendo isso pra gente. Que interferir militarmente em qualquer lugar sem levar em conta fatores como a carga cultural, os ânimos como fanatismo e humilhação reprimidos e a história de ocupação de algum território é pedir por um desastre em futuro próximo. O absolutismo europeu acabou por conta disso, só que o sentimento vigente era o nacionalismo, não o fanatismo religioso. Basta dar uma olhada nos antecedentes e nas consequências das duas guerras mundiais.
    O problema é o que o Oriente Médio é um barril de pólvora desde a Antiguidade e começou a dar sinais de explosão exatamente agora que tem recursos para afetar o mundo inteiro. Não tem outro jeito, é preciso mesmo “corromper” todos (no sentido capitalista) para que alguma estabilidade seja conseguida.
    É horrível ver tudo isso acontecendo, matando inocentes e principalmente destruindo sítios arqueológicos e vestígios de civilizações antigas, mas historicamente, quase nenhuma mudança drástica na estrutura sociopolítica de qualquer região do planeta veio através da paz.

  • Ótima análise Somir.
    Eu acrescentaria apenas que não podemos ignorar a mão da Arábia Saudita nisso tudo. Eles são os mais radicais e os mais ricos, pra não sujar as mãos de sangue financiam a distância os malucos do EI. Isso para antagonizar com o Irã, que tende a ser o mais light da região. Só que o Irã é inimigo do Tio Sam, que por sua vez chegou ao cúmulo de apertar a mão dos sauditas por causa da briguinha com o Irã.
    Resumindo, temos Arabia Saudita aliada dos EUA e bancando o EI, do outro lado Europa e os ideais democráticos sendo atingidos, ideais estes tão duramente defendido pelos EUA.
    Não to demonizando os EUA por esporte não… É só mais uma surpresinha da caixa de pandora.

    • Já li e ouvi muita coisa sobre o papel da Arábia Saudita no desastre que é o Oriente Médio. Um país que conseguiu fazer a maldição do ouro negro se espalhar para todos seus vizinhos de forma espetacular, pra muita gente os sauditas são o câncer matando o Oriente Médio. Mas enquanto a doença estiver dando combustível pra economia mundial…

  • Concordo com a análise, infelizmente fracassamos em nosso processo evolutivo e temos dificuldade de entender as diferenças abissais que existem entre os povos e suas culturas. Incrível como uma região que é praticamente o berço da civilização, guardado muitas ressalvas, ainda seja tão desumana com seus semelhantes.

    • Eu já até tinha escrito esse texto antes, se quer vencer essa cultura atrasada tem que corromper até a última fibra do ser deles, capitalismo style.

  • melhor não ter mexido e ter deixado eles em seu curral, mais cedo ou mais tarde iam se auto exterminar de tanta violencia e guerra.

    • Eu nem seria contra ir mexer, se fosse por um motivo humanitário. Mas ir lá, causar essa zona toda e só ver o circo pegar fogo tem suas consequências.

      • Pois é, Somir, concordo tanto (!); porém (“ainda”) “apenas” ficaram (muito mais) arriscados “os grandes IDHs” …

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