O gene da discórdia.

Sally e Somir concordam que filhos são mais do que códigos genéticos, mas discordam sobre o quanto valorizam o próprio. Considerando o uso de seu próprio DNA para fazer um filho sobre o qual estariam completamente isentos de obrigações legais, cada um vai para um lado. Os impopulares não geraram a polêmica, mas podem criar como se fosse sua.

Tema de hoje: Sem implicações legais, você se importaria de usarem seu DNA para fazerem um filho com o qual não vai ter contato?

SOMIR

Não. Óbvio que essa discussão depende da exclusão de obrigações legais como pensão alimentícia para valer. Se eu não tivesse a certeza que não tomaria um processo na cabeça no futuro para pagar pela criança, teria opinião completamente diferente. Mas, nesse caso, sobrando apenas a ideia de que meu DNA foi replicado e virou outro ser humano que não vai me gerar nenhuma responsabilidade e não foi minha escolha, então nem entra na categoria de filho pra mim.

Eu não quero ter filhos, e se fosse só o meu código genético usado para gerar uma nova vida nesses moldes, continuaria não tendo. Se a condição de eu não ter filhos é respeitada, então não, eu não me importo de usarem o meu DNA para isso. Eu me importaria pra caralho se fosse um filho que eu fizesse tendo ou não a vontade de engravidar a mulher, afinal, aí é um ato meu que gera a consequência desse novo ser humano no mundo. Aí sim eu acho sacanagem ignorar: a pessoa só existe porque você agiu para ela existir.

Mas nesse caso? Aí minha única escolha foi guardar meu material genético para o futuro. O que veio depois não está relacionado ao meu querer, é outra pessoa que usou algo meu (que eu não preciso mais) para fazer algo que ela queria fazer. Se roubam sua carteira e usam seu dinheiro para comprar uma arma que mata uma pessoa, você é um assassino? Ou mesmo: se você dá dinheiro para uma pessoa comprar comida e ela compra drogas com ele, você estava financiando o tráfico?

Intenção é muito maior que o mero elemento usado para aplica-la. Do mesmo jeito que acredito que armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas; acredito que genes não geram pessoas, pessoas geram pessoas. O meu DNA não passa de instruções genéricas para montar um ser humano, e mesmo assim, só é metade da equação. Seja como for, outro ser humano ainda vai ter que entrar com o resto (no caso, um óvulo) para efetivamente transformar aquilo numa pessoa.

O meu DNA sozinho no máximo geraria um clone. E mesmo assim, clone genético. Se criar ele diferente de como fui criado, os resultados vão ser consideravelmente diferentes, no máximo vai ter semelhança física. Aliás, são tantas variáveis para considerar que provavelmente até se você mesmo criar sozinho seu clone ele ainda não termina idêntico a você em personalidade. Se a genética fosse tão definitiva assim em criar novas versões de você, a psicologia teria falido como ciência há muito tempo. Somos muitos diferentes uns dos outros.

Sempre fui da opinião que pai e mãe são os que criam. A genética é um processo muito aleatório, transformando as crias em mutações da matriz original. E DNA não é tão mágico assim: durante sua própria vida, ele vai se alterando e degradando nas incontáveis cópias de si que é obrigado a fazer por causa de multiplicação celular. Pode apostar que no seu corpo agora é possível que nenhuma célula tenha EXATAMENTE o mesmo código de outra, só são extremamente compatíveis entre si. O sistema do DNA é pra lá de imperfeito. O código que usaram no exemplo desse texto é uma “foto” do seu DNA tirado de um ângulo de visão muito pequeno. Exames de DNA não são 100% perfeitos por um motivo…

Claro, não estou baseando meu argumento numa tecnicalidade como micro alterações no código genético, estou só exemplificando que nem mesmo a natureza se importa tanto assim com a perfeição desse processo. Seja como for, o objetivo da coisa toda é criar um ser humano o mais diferente possível das bases que lhe foram imputadas, mas que seja viável. O fato de ter meu DNA não faz da criança minha filha, só a faz ter uma compatibilidade grande nesse ponto.

Se você faz algo para ter esse filho, se você escolhe ele, ou se você decide cria-lo e passar seus valores e conceitos de vida para ele, aí sim é seu filho. Porque você está completando o processo. Se eu não tenho ação em nenhum desses elementos, não existe uma relação “mágica” entre nós dois que atravesse essa ponte. Gostar e cuidar de alguém é algo que se faz, que precisa de ação para ser possível. As nossas conexões nesse mundo nós que criamos, elas não são impostas por uma série de enzimas empilhadas.

Acho estranho que uma opinião como a minha seja taxada como insensível… na verdade, estou dizendo que acredito muito mais na entrega e na vontade de uma pessoa se relacionar com outra do que em elementos intangíveis. Eu não preciso odiar a criança para ver esse distanciamento, é o simples fato de que se uma relação não é cultivada de alguma forma, ela não existe. Não estaria renegando uma criança, estaria fazendo o mesmo que eu faço com 99,9% da população mundial: não tendo contato suficiente para formar um laço. Se o DNA dessa criança é parecido com o meu, o de bilhões de pessoas também é! Aliás, se é pra ser específico: chimpanzés tem basicamente o mesmo código genético que o meu… bactérias, quase a metade.

O DNA não gera conexões nesse sentido. Fazer um filho ativamente e colocar ele na sua vida gera, e gera provavelmente a mais poderosa de todas as conexões entre pessoas. Dizer que DNA é a pessoa é dizer que farinha é bolo! Então, não, eu nem me sinto desnaturado por dizer que me seria irrelevante saber que alguém tem o meu DNA andando por aí e não ter nenhuma relação com essa pessoa… nesse caso, pelo menos. Essa criança foi feita sem a minha escolha, ela é fruto do desejo e do planejamento de outros seres humanos. Tão minha quanto outras que tem características físicas parecidas.

Eu não sou meu DNA, eu tenho ele.

Para me chamar de pessoa horrível, para dizer que eu só penso assim para não acreditar que meus defeitos são inevitáveis, ou mesmo para me dizer que o seu DNA importa mais que o dos outros: somir@desfavor.com

SALLY

Excluindo qualquer implicação legal, você se importaria que usem seu DNA para fazer um filho sem seu consentimento?

Sim. Certamente. Por mais que eu estivesse isenta de qualquer obrigação legal para com essas crianças, eu ficaria arrasada se soubesse que tem filhos meus por aí no mundo sem saber quem estava cuidado, como estavam cuidando. Eu tenho direito no uso do meu DNA e estragaria minha vida saber que tenho filhos sem querer tê-los.

Não quero dizer que pai ou mãe seja apenas aquele que fornece o material genético, sem dúvidas, quem cria, educa e dá amor também é pai e mãe independente de genética mas, quem fornece os genes também é pai e mãe, independente de consentimento. Há um dever moral. Tanto é que quando um homem engravida uma mulher, todo mundo lhe imputa responsabilidade por essa criança, independente dela ter sido planejada ou não. A criança não tem culpa: se ela está no mundo, quem deu origem a ela tem responsabilidade automática.

Há duas questões aqui: o desrespeito de usar meus genes sem meu consentimento e a responsabilidade que eu sentiria para com essa criança. Ainda que você não sinta um, provavelmente sentirá o outro.

O desrespeito não deve ser difícil de entender: se, pelo simples fato de usar sua imagem se autorização a pessoa já se emputece e existem desdobramentos legais, imagine usar seu DNA para criar uma vida? Com que direito alguém cria outro ser humano usando seu material genético sem o seu consentimento? Percebam que, por ser mulher, nesse caso eu não teria nem sequer assumido o risco: homem que faz sexo sem camisinha sabe que pode acabar em gravidez e, consequentemente, em filhos. Mulher não, mulher, no fim das contas mulher sempre tem a palavra final. Seria um choque sem precedentes me deparar com filhos meus no mundo. Francamente, eu fico puta até quando usam minhas coisas sem pedir, quem dirá material genético.

A responsabilidade por um filho meu existir independe de consentimento, de sentimento ou de qualquer outro fator. Por questões pessoais éticas e morais, se eu souber que existe uma criança com meus genes me sinto automaticamente responsável por ela, ainda que opte por não assumir essa responsabilidade. E sim, existem coisas que essa criança só vai poder obter de mim, como por exemplo ajuda em caso de doenças que dependam de compatibilidade de doação (medula, órgãos, etc) e ter informações sobre sua genética. Mais do que ciência, é questão de consciência: não durmo em paz se souber que tem um filho meu no mundo, mesmo que eu nunca tenha sequer olhado para a cara dele.

Além dessas questões mais graves, mais sérias, existiria também a curiosidade em saber como está sendo criado, como está sendo tratado, como está se saindo na vida. Tem várias coisas que eu poderia dizer a essa criança para tornar sua vida mais fácil: controle sua ingestão de açúcar, você pode se tornar diabético um dia, por exemplo. Não seria capaz de negar a uma criança um histórico de saúde que certamente a ajudaria a se entender e planejar um futuro melhor.

Me explica como pode alguém saber que tem um filho seu no mundo e ser indiferente a isso? Juro que não consigo entender. Sobretudo se for homem, que desde cedo sabe que existe essa possibilidade concreta, já que nenhum método anticoncepcional é 100% seguro. É assim que vocês homens crescem pensando? “Se eu não consentir, mesmo assumindo o risco, não vou considerar meu filho e não vou querer saber da criança”. Desculpa, mas não dá. Genética não é tudo, mas é sim um fator importante. Querendo ou não, consentindo ou não, nada muda o fato de que aquele filho é seu. Nem digo assumir ou registrar, falo apenas de se importar.

Durante a vida passamos por inúmeras situações onde não temos culpa sobre determinado resultado porém acabamos tendo responsabilidade sobre ele. Se você atropela alguém mesmo sem ter culpa alguma, responde por isso (não criminalmente, que fique claro) e certamente vai se importar de ter atropelado uma pessoa, ainda que a culpa seja toda do atropelado, não? Alguém fica indiferente a isso? Responsabilidade nem sempre depende de culpa. Existem responsabilidades que todos temos, pelo simples fato de estarmos vivos. E, sabendo que a responsabilidade existe, você consegue ficar indiferente?

O sentimento perante um filho seu, o incômodo por usarem eu material genético e uma possível indiferença a isso tudo não estão ligados à forma como essa concepção de seu e sim à forma como você encara esta nova realidade. Independente da forma bizarra como tenha ocorrido, será mesmo que dá para ficar indiferente a esse desrespeito e indiferente à realidade de existir um filho seu no mundo? Você conseguiria não sentir nada ao saber desta notícia?

Felizmente ou infelizmente, coisas injustas e que não escolhemos tem o poder de nos afetar, pois se deixar abalar por um evento não guarda qualquer relação com a justiça ou a injustiça dele, e sim com o resultado gerado. Não consigo imaginar um resultado mais impactante do que um filho.

Se você não se impacta, não se incomoda e fica indiferente a uma coisa dessas, então, francamente, acho que nada nesta vida tem o poder de te abalar ou de te emocionar. Se você não se importa com um filho seu andando pelo mundo só por não ter escolhido fazê-lo, bem, procure terapia para deixar de ser tão egoísta e autocentrado.

Para dizer que o tema é profundo demais para o seu gosto, para confundir se importar com registrar e criar uma criança ou ainda para questionar a validade de um tema que nunca vai acontecer na vida real: sally@desfavor.com

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Comments (15)

  • Achei a argumentação do Somir um pouco imprecisa, e a da Sally um pouco muito focada no aspecto emocional. É fácil criticar, eu sei, mas algumas informaçōes sobre o assunto para apimentar a discussão. Hoje o genoma de individuos pode ser sequenciado completamente a partir de amostras de saliva em poucos dias e a baixo custo. O material genetico de qualquer individuo pode ser reconstruido a partir dessa informacao. A informacao genetica é publica e nao pode ser patenteada (decisao EUA que vem discutindo o assunto a serio ha muito tempo). As caracteristicas de um individuo sao grandemente determinadas pelos padroes de alteracao do DNA, como metilacoes e oxidacoes (alteracoes epigeneticas). Desculpem, estou sem tempo pra elaborar e sem paciencia pra acentuar. Beijos no coracao de todos voces.

      • Ja usam pra uma cacetada de coisas, se voce considerar que seus genes sao iguais aos de boa parte da populacao e sao marcadores de doenças, compatibilidade, paternidade, etc.

          • No nivel de fazer filho nao, mas no nivel de diagnostico sim. Nao é dificil prever o uso terapeutico da informacao genetica. Ja existem terapias genicas em andamento no Reino Unido para sindromes mitocondriais e na China sera feito um teste para cancer. Se o seu material genetico for interessante ele podera ser usado para curar alguem. Nao chega a ser como um transplante de orgao ou transfusao de sangue, mas eh uma transferencia de algo “seu” para outra pessoa.

  • Em um mundo cada vez menor por conta da maior mobilidade, não, uma criança sem meu consentimento jamais. Quem garante que alguém de sua família eventualmente jamais tenha alguma relação com essa criança. Ou então eu mesma (#suzanavieirafeelings).

  • Não vejo lógica em quem faz unseminação artificial/ fabricar bebê com genes de desconhecidos, em vez de adotar uma criança que precisa de família. Eu não daria o MEU dna pra um desconhecido. Se eu estivesse precisando muito de dinheiro e alguém com grana comprasse eu venderia. Pelo menos o MEU filho/a seria cuidado com mordomia financeira.

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