Unidade 731

Eu costumava brincar que o Japão era a Argentina da Ásia, todos os vizinhos tinham alguma birra com eles. Costumava, porque a coisa é extremamente mais grave que uma rivalidade pontual. Durante sua história, o império japonês cometeu diversas atrocidades contra povos próximos, e hoje eu vou me concentrar numa das mais terríveis, a Unidade 731.

Esse era o nome de um conjunto militar/científico instalado na parte da China ocupada pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Com tantas referências ao que os alemães fizeram com os judeus na mesma época, é fácil esquecer o que acontecia nas margens do Pacífico. Os EUA travavam uma guerra contra os japoneses por lá, mas não sozinhos. Russos e chineses também sofriam as consequências da guerra; os russos com a desvantagem de estarem do “lado errado” do país e seu maior esforço militar, os chineses com uma severa desvantagem tecnológica e operacional nas suas defesas.

Dois povos que pagaram preços altos nessa guerra, mas raramente são reconhecidos nesse sentido. O que talvez explique as décadas seguintes de polarização. E como vamos ver a seguir, de forma até compreensível considerando como casos como esse ficaram consideravelmente escondidos com o passar das décadas. Mas, vamos à parte difícil. Explicar o que acontecia no local…

Conhecida oficialmente pelo nome de Departamento de Prevenção e Epidemias e Purificação de Água, a Unidade 731 realizava experimentos com seres humanos, prisioneiros de guerra coletados pelos japoneses. Dentre eles, uma grande maioria de civis chineses e russos, além de alguns soldados americanos e europeus. Importante ressaltar que não existem muitos registros oficiais sobre os acontecimentos, a maioria deles resistindo ao tempo através de testemunhos de participantes e sobreviventes. Mas vamos chegar nessa parte mais pra frente.

O nome oficial era um eufemismo, na melhor das hipóteses. No campo principal de operações, um complexo com mais de seis quilômetros quadrados e mais de 150 prédios, os prisioneiros eram usados como cobaias para testes de armas biológicas e todo o tipo de teste de resistência humana. Militares e pseudo-cientistas japoneses criavam e aplicavam os experimentos, num misto de completa falta de ética científica e sadismo descarado.

Numa unidade próxima, eram criados ratos e pulgas para a cultivação da peste bulbônica, e esses eram soltos em regiões ainda não ocupadas pelos japoneses para analisar os resultados da infecção e até mesmo a capacidade de defesa e taxa de mortalidade nas populações chinesas locais. Aviões davam rasantes fazendo chover pulgas dos céus, ou mesmo lançavam suprimentos contaminados disfarçados de ajuda humanitária em localidades muito debilitadas pela guerra. Estima-se que quase meio milhão de pessoas morreram em decorrência das doenças disseminadas pelo exército japonês durante e até mesmo após a segunda grande guerra.

Nas dependências principais da Unidade 731, os relatos são de experimentos indiferenciáveis de tortura. Prisioneiros eram infectados com diversas doenças e agentes biológicos, dentre elas a peste supracitada, cólera, antraz… sem contar um foco enorme em doenças sexualmente transmissíveis, principalmente a sífilis. Fazer esse tipo de testes em seres humanos, mesmo nas condições mais “humanas”, já é considerado um crime terrível de guerra ou não por si só, mas as coisas eram ainda piores do que isso.

Segundo relatos de testemunhas e até mesmo alguns relatórios sobreviventes dos pesquisadores, a imensa maioria das vítimas era analisada em diversos estágios das doenças através de vivissecção, o termo usado pra definir abrir um ser vivo para estudar seu funcionamento. Pessoas infectadas eram abertas sem anestesia, pois segundo os pesquisadores isso poderia contaminar os resultados, seus órgãos retirados e estudados enquanto elas ainda agonizavam. Milhares de homens, mulheres e crianças foram submetidos a esses testes, incluindo recém-nascidos e mulheres grávidas (muitas pelos próprios oficiais japoneses propositalmente para os estudos).

Mas não parava por aí, longe disso. A mentalidade recorrente na Unidade 731 parecia ir bem além de estudar armas biológicas, cruzando uma linha para o campo do “vamos torturar e matar pessoas só porque podemos”. Outros testes incluíam derramar água nos membros de prisioneiros, coloca-los para fora num frio congelante e descobrir quanto tempo demorava para que braços e pernas congelassem e precisassem ser amputados. E muitas vezes, de forma progressiva, congelando pequenos pedaços por vez e repetindo o teste seguidas vezes. Muitos prisioneiros voltavam para o confinamento com pedaços faltando, ou deixados para morrer com a gangrena, ou reaproveitados para testes com armas biológicas.

Outros relatos mencionam amputações com o único propósito de recosturar o membro ao contrário ou do outro lado. Sem contar testes como colocar pessoas em câmaras altamente pressurizadas e centrífugas até elas morrerem, deixadas sem água ou comida por longos períodos de tempo para saber quanto demorava para morrerem num caso ou outro, estudos sobre severidade de queimaduras e capacidade de sobrevivência nos mais diversos graus e coberturas delas, prisioneiros expostos a doses letais de radiação, injetados com diversos produtos químicos, sangue de animais, água do mar… além disso, testes com granadas e lançadores de chamas foram feitos com os prisioneiros, com análises de danos em diferentes distâncias e cenários.

Além disso, muitos e muitos relatos de violência sexual, principalmente contra mulheres. Estupros são crimes frequentes em guerras, mas havia um novo grau de especialização na Unidade 731. Sob a desculpa de fazer testes, prisioneiros eram obrigados a fazer sexo diante de oficiais, sendo que um deles havia sido contaminado com uma doença sexualmente transmissível, quase sempre sífilis, antes do ato. As pessoas eram forçadas sob a mira de armas, sabendo que se não fizessem aquilo, morreriam. Muitas prisioneiras eram forçadas a engravidar para os testes, e embora os vários relatos de partos acontecidos lá dentro, não há nenhum sobrevivente conhecido. Algumas crianças nasceram e cresceram lá dentro.

Chama a atenção a falta de atenção que o caso recebeu nas décadas seguintes, e a explicação para isso só completa o absurdo: quando o exército russo chegou para liberar a área onde a base ficava, na China, a maioria dos oficiais de mais alta patente e cientistas já tinham voltado para o Japão. Antes de fugir, eliminaram a maioria das provas que conseguiram, incluindo suas cobaias. Os soldados russos capturaram alguns dos japoneses que permaneceram por lá, e os julgaram nos anos seguintes, ainda debaixo da cortina de ferro, com pouca repercussão mundial.

Já os outros, que voltaram para o Japão, ficaram sob controle dos americanos após a rendição japonesa. Foram perdoados em troca dos resultados dos testes e colaboração com o programa de armas biológicas americano, tendo garantida a liberdade desde que não dividissem os dados com outros países. Tanto que alguns desses oficiais foram envolvidos em outros escândalos de abusos nos anos seguintes. O assunto foi abafado por muito tempo, sendo mais conhecido por chineses e russos, e mesmo assim, alguns poucos com acesso a informação.

Em 1988 foi lançado um filme chinês chamado “Men Behind the Sun”, que gerou alguma controvérsia na época pelo realismo com o qual relatou a história, mas que também acabou ficando meio perdido na cultura ocidental, ao contrário dos inúmeros filmes, séries e materiais sobre os crimes alemães. Não recomendo o filme pra ninguém, é um festival de tortura e brutalidade em câmera lenta num roteiro confuso, mas talvez dê uma cara para a história descrita neste texto. Existe outro filme, russo, chamado “Philosophy of a Knife”, sobre o mesmo tema, mas esse além de ter quatro horas de duração e ser ainda mais focado em chocar o espectador, parece mais um projeto de estudantes de cinema do que propriamente um filme.

Ambos estão disponíveis na internet, o chinês no Youtube, o russo (sério, esse é basicamente pornografia de tortura metido a artístico) em outros lugares, procure por sua conta e risco. A Unidade 731 já foi tema de músicas do Iron Maiden e do Slayer, e foi referenciada até em algumas séries, inclusive no Arquivo X. Mas nada que tenha realmente colocado alguma luz sobre o caso.

Ainda hoje o assunto não tem muito destaque, e até mesmo as representações dele na mídia são apelativas, explorando até a memória das vítimas. O governo japonês até hoje nega que tenha existido dessa forma, mas se desculpa “em linhas gerais” pelos seus crimes de guerra. E esse foi o caso que vazou.

O pior dessa história toda é a noção final de que o crime compensou.

Para dizer que adora esses assuntos felizes, para reclamar que eu descrevi demais as torturas, ou mesmo para reclamar que eu não descrevi mais as torturas: somir@desfavor.com

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Comments (17)

  • Eu assisti o filme chinês e, sem brincadeira, não assisto de novo nem que me paguem, é simplesmente a coisa mais horrível que já vi. Agora entendo porque o Japão e os EUA se dão tão bem. Muito esclarecedor seu texto, somir.

  • Aos poucos vão aparecendo os podres das guerras do passado. Cada campo de concentração teve seus horrores, fatos não contados. A pior parte é que a humanidade não aprendeu nada com a história.

  • Pior do que saber que esse tipo de coisa aconteceu é saber que o crime compensou, como foi dito.
    E sinceramente, não duvido que torne a acontecer se houver outra guerra de escala semelhante. Aliás, creio que talvez ainda aconteça em alguns lugares.
    Parece muito cruel e chocante quando os métodos são detalhados, mas torturas a prisioneiros de guerra acontecem desde a Antiguidade. Acho difícil que algum dia haja avanço real nesse sentido, de ver seu inimigo como um ser humano igual a você. Há os direitos humanos hoje, mas todos os países os desrespeitam por baixo dos panos. Se o que nós sabemos é tão duro, imaginem o que não foi revelado…

  • E o crime compensou tanto, que até hoje, o Japão é visto como “o país bonzinho” pela bomba atômica dos americanos, enquanto os podres ficam pra debaixo do tapete.

    • (…) Foram perdoados em troca dos resultados dos testes e colaboração com o programa de armas biológicas americano, tendo garantida a liberdade desde que não dividissem os dados com outros países. Tanto que alguns desses oficiais foram envolvidos em outros escândalos de abusos nos anos seguintes. (…)

      Pois é, “a troco de politicagens”, até mesmo vítimas “pós-731″…Crime mais que compensado !

  • Somir, bravíssimo pelo seu texto. Eu mesma não sabia que tinha acontecido tamanha brutalidade. São coisas assim que fazem a gente enxergar o quanto esta noção de povos mocinhos x povos bandidos “do mal” não cabem quando o assunto é história. Terríveis atrocidades perpetradas pelo 731 japonês, pena que não tenham tido o mesmo destaque que o nazismo alemão.

    P.S: Sugestão para desfavor da semana – aquela moça que destratou um gringo da maneira mais horrorosa possível e compartilhou nas redes sociais, achando que tava “lacrando” (e muitos acharam que ela “lacrou” mesmo, esse país tá perdido.)

  • É como os campos de concentração americanos.
    Parece que não houve inocentes na segunda guerra, nesse quesito.
    Mas é impressionante como essa época é rica em fatos obscuros.

      • Concordo tanto com vc, Somir… Eu penso exatamente assim, parece pior hoje porque temos redes sociais, ficou muito mais fácil saber dos fatos – bem como das crueldades – do mundo inteirinho, é só filmar, tirar uma fotinho no celular, jogar na rede e pronto. Como antigamente não tinha isso, fica mais fácil achar que era melhor, ou que era menos violento, menos insalubre, que a família era melhor (como?) e por aí vai.

    • E os brasileiros também, que criaram um campo de concentração para alemães no interior de São Paulo durante a segunda guerra…

      De resto, os americanos aproveitaram para sua indústria aeronáutica e para a corrida espacial as experiências de despressurização nazistas feitas por médicos da Luftwaffe em Dachau e em outros campos, para ficarmos em um só exemplo. Não surpreende terem feito vista grossa com os crimes dos japoneses…

  • Alguns anos atrás, eu já tinha lido alguma coisa a respeito da famigerada unidade 731 e das barbaridades que eles cometeram, mas até hoje nunca tinha tido muito acesso sobre o porquê disso tudo ter ficado “nas sombras” por tanto tempo. Muito esclarecedor o que você contou, Somir. Quando se lê as descrições das torturas praticadas pela unidade 731, é impossível não chamá-los de “monstros”. Difícil de acreditar que seres humanos possam fazer esse tipo de coisas com outros seres humanos. Se pensar muito nisso, eu acabo nem conseguindo dormir. Às vezes, eu me pergunto se somos mesmo todos da mesma espécie…

    • Eu tinha visto os dois filmes e não tinha nem me tocado que poderia ser um tema pra cá até a Sally me levantar essa lebre. Até porque, mesmo vendo o material, a ideia soa fantasiosa pelos excessos. Mesmo sabendo que é baseado em fatos reais…

  • Adriana Truffi

    Com certeza não teria estômago pra assistir esses filmes. Fico sempre arrasada quando assisto filmes de guerra baseados em fatos reais, não consigo entender e aceitar tanta maldade.

    • Sempre o perigo da desumanização. Quando um povo começa a ver o outro como algo diferente e perde qualquer limite.

    • Também não, já me impressionei (tanto !) quando cheguei a assistir (uma cena de) tiros certeiros em civis (camponeses – ? – e) desarmados, com uma deles que ainda olhou nos olhos de “seu fuzilador”…

      DSVS

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